Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Estado de S. Paulo

PALAVRA
Fernando Henrique Cardoso

O gesto e a palavra

‘Andou na moda falar de decoupling para dizer, em simples português, descolamento entre a economia brasileira e a internacional. Os efeitos da crise em nossa economia fizeram o termo sair de moda. Foi substituído por termo mais terno, ‘marolinha’. Com o bicho-papão corroendo o mercado financeiro lá fora (na verdade, o sistema financeiro central quebrou) há certo aturdimento. Não se sabe com que palavras qualificar o que anda pelo mundo: recessão prolongada, depressão, fim do unilateralismo americano na política, multipolaridade, não-polaridade, etc. Por aqui o governo prefere passar em marcha batida sobre o que nos azucrina. Em vez de desenhar quadros sombrios ou róseos para o mercado, faz o decoupling à moda brasileira: descola a economia da política, precipita o debate eleitoral e, nele, vale o discurso vazio.

É verdade que não somos os únicos a encobrir as angústias apelando para gestos sem conotação, sequer alusiva, aos fatos e circunstâncias. Basta mencionar a campanha bolivariana pela reeleição perpétua, uma quase-caricatura da política. O significado da democracia se esboroou na ‘consulta popular’. Se o povo quer o bem-amado para sempre, pois que o tenha e, como disse nosso presidente Lula, se a prática ainda não é boa para o Brasil, é questão de tempo. Quando a cidadania amadurecer, encontrará a fórmula de felicidade perpétua…

Assisti na TV, por acaso, ao último comício eleitoral do presidente Chávez em Caracas e, confesso, fascinei-me. Ele chegou, simpático como sempre, um pouco mais gordo que o habitual, vestindo camisa-de-meia vermelha, abraçando toda a gente, sorrindo, e foi direto ao ponto. ‘Hoje não falarei muito, vamos cantar!’, disse. E entoou uma canção amorosa de melodia fácil, repetindo o refrão ‘amor, amor, amor…’ Conversou com um ou outro no palanque, incitando-os a também cantar, falou familiarmente com a plateia e finalizou: amor é votar sim no domingo! Por mais que no plano pessoal possa sentir até estima pelo personagem, não pude deixar de reconhecer no estilo algo que nos é habitual: o modelo Chacrinha de animação de auditório. Funciona, e como!

O descolamento entre a política e a realidade das pessoas (não só a economia), a repetição simbólica de gestos que guardam pouca relação com um ambiente racional, mas ‘ligam’ o ator com a plateia e com a ‘sociedade’, está se tornando regra nas atuais democracias de massas. Há algo de encantatório no modo como a política do gesto sem palavras (ou em que as palavras contam menos do que a forma) funciona, substituindo o discurso tradicional. Quando me recordo do ‘sangue, suor e lágrimas’ dito por Churchill ao se tornar primeiro-ministro em plena guerra contra o nazismo, do discurso em Fulton, quando disse que uma ‘cortina de ferro descia sobre a Europa’, ou de vários pronunciamentos de Roosevelt, como o de posse em plena Depressão, célebre pela frase ‘nada há a temer, exceto o próprio medo’, ou ainda de Getúlio Vargas no estádio do Vasco da Gama apelando aos trabalhadores, e comparo com a retórica atual, há um abismo a separá-los.

E não se diga que é fenômeno de países de ‘democracia pouco amadurecida’. A entronização de Obama como imperador de todos os americanos, na magnífica posse no Capitólio, assemelhava-se a uma grande cena romana. O cenário era tão expressivo, a fusão simbólica do recém-eleito com os founding fathers e com os valores fundamentais da democracia americana eram tão fortes que obscureceram o conteúdo do discurso inaugural. E isso no caso de alguém que, por sua cor e mesmo por sua campanha, trouxe um significado imenso de renovação. Ainda na semana passada, na primeira visita presidencial ao Congresso, o que foi dito sobre a crise econômica e sobre o futuro foi menos importante do que o reafirmar o ‘yes, we can’, num cenário da pátria unida para perpetuar sua glória. Mesmo que o castelo financeiro esteja desabando, a América vencerá, era a mensagem. No caso, nada que ver com Chacrinha, o símile é outro: a invocação do pastor, a reafirmação da fé, e não a troca simbólica de favores, do bacalhau, da Bolsa-Família ou da canção de amor.

Faço estes comentários despretensiosos porque me preocupa o que possa vir a ocorrer no Brasil. A mídia e a sociedade cobram um discurso de oposição. Diz-se, e é certo, que ela deve unir-se se quiser vencer. Mas que discurso fazer? O racional, da crítica ao desmanche das instituições, do enlameamento cotidiano da política, deveria ganhar mais vigor, dizem. O grito de Jarbas Vasconcelos estava parado no ar e sua entrevista na Veja deu-lhe um sopro de vida. Mas foi o próprio senador quem mostrou os limites desse tipo de protesto: o governo e o próprio presidente banalizaram o dá-cá-toma-lá. É como nos computadores, quando se envia um e-mail e surge o aviso: a caixa está cheia. A caixa da revolta dos brasileiros contra o mau uso da política parece estar cheia. Temo que qualquer discurso ‘político’ seja logo desqualificado pelos ouvintes.

Quer isso dizer que as oposições devem silenciar sobre a perda de substância das instituições, sobre o clientelismo e a corrupção larvar, tudo com a leniência de quem manda? Não. Mas precisam inventar uma maneira de comunicar a indignação e as críticas que toque na alma das pessoas. Este é o enigma da mensagem política, de governo ou de oposição. Tanto o modelo Chacrinha como o do discurso de pregador chegam à alma das pessoas. Não estou dizendo que a comunicação política se resolve pela supressão do discurso analítico. Isso seria rendermo-nos à ideia da política como mistificação (o que, aliás, não é o caso de Obama). Mas quando se dispõe de um ícone, como o Plano Real, por exemplo, ou quando o próprio candidato é um ícone, tudo fica mais fácil.

Em nosso caso, as oposições, além de articularem um discurso programático, condição necessária para quem se respeita e acredita nas instituições, deverão expressá-lo de forma a sensibilizar o eleitorado. Para tal não bastam a crítica convencional e a discussão da política, tal como ela ocorre no Congresso, nos partidos e na mídia. É preciso buscar os temas da vida que interessem ao povo. Ademais, a comunicação emotiva requer ‘fulanizar’ a disputa para atribuir ao candidato virtudes que despertem o entusiasmo e a crença. Sem eles, a ‘caixa de entrada’ das mensagens da sociedade continuará a dar o sinal de estar cheia e os ouvidos continuarão moucos aos conteúdos, por melhores que sejam. Pior ainda se não os tivermos. Mas só eles não bastam. Programa político só mobiliza a sociedade quando é vivido por intermédio do desempenho de personagens que tratam como próprias as questões sentidas pelo povo.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República’

 

 

RÚSSIA
Aydar Buribayev, Reuters

Presidente aposta em talk show anticrise

‘Para convencer a população de que o Kremlin está tomando as medidas necessárias para combater a crise econômica, o presidente russo, Dmitri Medvedev, decidiu se lançar num programa de televisão.

Trechos exibidos na sexta-feira pela TV estatal Rossiya mostraram Medvedev sentado num estúdio cheio de livros, onde conversa informalmente com o apresentador – um novo formato para um líder cuja imagem é cuidadosamente controlada pelo Kremlin.

Os políticos russos estão tentando afastar a pior crise econômica em pelo menos uma década. Os críticos dizem que as autoridades estão demorando demais para se dar conta da verdadeira extensão da crise.

‘É muito importante que falemos a verdade e expliquemos as dificuldades pelas quais o mundo está passando, bem como nosso país’, disse Medvedev no piloto do programa.

‘Acredito que as autoridades têm o dever de falar franca e diretamente sobre as decisões que estão sendo tomadas para superar a crise e sobre as dificuldades que estamos enfrentando.’

A rápida reviravolta na sorte econômica da Rússia lançou dúvidas sobre a estabilidade do maior produtor mundial de recursos naturais como gás e petróleo.

No trecho exibido do programa de TV, Medvedev, um ex-advogado corporativo de 43 anos, era filmado num plano extremamente próximo enquanto um repórter o entrevistava.

Durante seus oito anos de governo no Kremlin, o ex-presidente russo e atual premiê, Vladimir Putin, instituiu na televisão gigantescos eventos transmitidos ao vivo durante os quais ele recebia telefonemas dos espectadores, além de conceder entrevistas coletivas que às vezes duravam horas.

‘Acho que, de uma maneira geral, as autoridades deveriam se expressar com regularidade sobre a situação atual, e acho que o contato do governo com o público deve acontecer regularmente’, disse Medvedev.

A principal porta-voz de Medvedev, Natalya Timakova, disse que as entrevistas serão marcadas a cada três ou quatro semanas. Ela acrescentou que o formato do programa não está definido, mas certamente não se tratará de um monólogo do presidente.

Analistas do Kremlin observam a nova iniciativa à procura de sinais de que o sistema duplo de governo, dentro do qual Medvedev divide o poder com Putin esteja desgastado.

Medvedev deu a impressão no mês passado de criticar o presidente sobre a resposta do país à crise, um gesto sem precedentes numa Rússia em que as críticas dirigidas a Putin se tornaram um tabu.

Apesar de não mencionar Putin, Medvedev disse a líderes empresariais que as medidas de combate à crise estavam sendo adotadas com demasiada lentidão.’

 

 

PORTABILIDADE
Renato Cruz

Guerra de ofertas para troca de telefone

‘A portabilidade numérica, que permite trocar de operadora e manter o número, começou a chegar ao País em setembro do ano passado. A partir de amanhã, estará disponível na Grande São Paulo, completando 100% do território nacional. Com a portabilidade valendo para todos, as operadoras resolveram anunciar promoções para atrair clientes. Esse movimento pode fazer com que a possibilidade de trocar de prestadora e levar o número do telefone tenha um impacto maior no mercado.

‘A gente vê a portabilidade como uma grande oportunidade, principalmente em São Paulo’, diz João Silveira, diretor de Mercado da Oi, última empresa de celular a chegar a São Paulo. A operadora adotou, há algum tempo, um modelo de negócios diferente dos concorrentes, voltado para a venda de chips sem subsídio de aparelhos. Com isso, oferece planos pós-pagos sem contrato de fidelidade: o cliente pode desistir quando quiser, sem pagar multa, porque a empresa não precisa recuperar o subsídio do aparelho.

‘Esta indústria é cheia de pegadinha’, afirmou Silveira. ‘Fidelização é um eufemismo para manter o cliente preso por uma multa.’ O executivo acredita que os aparelhos bloqueados (que não funcionam com chips de outras operadoras) e os contratos de fidelização têm reduzido o alcance da portabilidade. Para atrair clientes, a Oi resolveu devolver parte do que o consumidor paga na conta do celular em crédito no cartão de crédito do Banco Santander.

Mas por que não dar esse desconto direto na conta do celular? ‘Também existe essa opção’, explicou o diretor da Oi. ‘Fizemos uma pesquisa que mostrou que o consumidor enxerga mais valor se o crédito vier no cartão.’

Sem deixar de oferecer aparelhos subsidiados, a Claro, segunda maior operadora celular do País, criou uma nova opção de plano pós-pago, chamado Claro Teste, em que o cliente pode desistir quando quiser, sem pagar multa. ‘Se ele optar por ficar, ele pode escolher um aparelho e assinar um contrato de 12 meses’, apontou Erik Fernandes, diretor de Marketing da Claro. ‘Não acreditamos na ditadura de uma promoção só.’

Segundo Fernandes, ‘a portabilidade é um projeto vitorioso do ponto de vista técnico, que culmina com São Paulo’. Ele disse que a empresa fez uma pesquisa para conhecer as principais dúvidas dos clientes sobre a portabilidade, e identificou o temor de poder mudar de operadora somente uma vez.

Na verdade, não existe limitação. O consumidor pode mudar de operadora quantas vezes quiser. Se tiver contrato de fidelidade por vencer, precisa pagar a multa. ‘Com o Claro Teste, o consumidor fica o tempo que quiser’, disse o executivo.

A TIM , terceira maior na telefonia móvel, está apostando no produto TIM Fixo, serviço de telefonia fixa que usa a infraestrutura celular. ‘Nós estamos muito confiantes’, disse Roger Solé, responsável pelo Marketing para Consumidores da empresa. A TIM está oferecendo o aparelho de graça para quem levar seu número fixo para ela. O telefone custa R$ 99.

‘No celular, temos uma estratégia de ataque e de defesa’, disse Solé. A empresa está entrando em contato com os clientes pós-pagos com mais de 12 meses de contrato para oferecer aparelhos com mais desconto do que antes da portabilidade.

Para os clientes que trazem o número de outra operadora, a TIM está oferecendo R$ 150 de desconto no aparelho, em cima da tabela promocional normal, que depende do plano.

‘Acreditamos que a portabilidade pode nos beneficiar no médio prazo’, disse Solé. ‘Até agora, não foi um grande assunto. Acho que precisa de alguns meses para acertar os canais de vendas e informar o consumidor. No meio do ano, deve estar 100%.’

A Vivo, maior operadora celular do País, criou promoções especiais para o lançamento da portabilidade em São Paulo, que incluem mil minutos mensais gratuitos para chamar outros telefones da Vivo, durante três meses.’

 

 

LITERATURA
Janet Maslin, The New York Times

É difícil achar uma escritora como ela

‘O fascinante livro Flannery, uma obra que podemos considerar definitiva, é a primeira importante biografia de uma escritora que morreu há 44 anos. Onde está todo o outro abundante material biográfico sobre esta mística escritora sulina, uma personalidade excêntrica, ardentemente admirada?

Houve pelo menos outro relato da vida de O?Connor (de autoria de Jean W. Cash que foi considerado apenas ‘um passo na direção certa’ pela revista Publishers Weekly, em 2002). E também muitas obras críticas, em livro, sobre sua obra, mas há muito tempo a autora merecia a extraordinária biografia escrita por Brad Gooch. Flannery – A Life of Flannery O?Connor (ilustrado, Little, Brown & Company, 448 págs., US$ 30) revela não apenas por que um tema excepcionalmente repleto de minúcias justifica tanta atenção, mas também o motivo pelo qual demorou tanto para aparecer.

Aqui estão alguns dos fatos mais notórios a respeito da autora de Wise Blood (Sangue Sábio), A Good Man Is Hard to Find (É Difícil Encontrar Um Homem Bom) e outros contos. Ela criava pavões, sofria de lupus, e morreu aos 39 anos por causa da doença, tendo vivido exclusivamente com a mãe em Andalusia, a fazenda da família em Milledgeville, Georgia, no sul dos Estados Unidos.

Seus sentimentos a respeito da questão racial eram, na melhor das hipóteses, nada caridosos, e aparecem em sua obra. Ela combinou sua compreensão do sexo de menina de 12 anos na fusão, que já prenunciava a época em que a mulheres assumiriam papéis masculinos, de sensibilidades góticas sulinas, escandalosamente medievais, em sua maneira mordaz de contar histórias, carregadas de inspiração teológica.

Nenhuma dessas coisas se presta facilmente à indagação biográfica. Mas Gooch, reafirmando o gosto inteligente que demonstrou em sua biografia do poeta Frank O?Hara, de 1933, é um acólito inusitadamente paciente.

O autor conta que quando manifestou pela primeira vez interesse em escrever uma biografia de Flannery O?Connor (1925-1964), há cerca de 30 anos, foi esnobado por uma amiga da escritora, Sally Fitzgerald, que planejava escrevê-la, mas acabou deixando um manuscrito inacabado ao morrer, em 2000.

Gooch, que começou a trabalhar no livro em 2003, viajou pelo mundo na esperança de penetrar na mística de O?Connor. Flannery talvez transmita uma ideia da artista como um personagem meramente caseiro, entretanto Gooch foi da Georgia ao Iowa e depois para Lourdes, seguindo a trilha de migalhas de pão que ela deixou atrás de si.

Além disso, pôde consultar uma correspondência extremamente esclarecedora, recém-revelada, entre O?Connor e sua amiga Betty Hester, que tinha por ela uma paixão arrebatadora. E encontrou ainda cartas não publicadas da escritora e Erik Langkjaer, o raro personagem masculino que, ao que se saiba, se sentiu romanticamente atraído por ela.

O livro de Brad Gooch carece da dimensão de uma vigorosa crítica literária. A obra de Flannery O?Connor não surge vívida nas páginas desta biografia, salvo quando Gooch procura as origens de incidentes e de ideias. Mas a voz áspera, espirituosa e irreverente de O?Connor, imune à vaidade, está muito em evidência. Flannery conquista o espírito da mulher que descreveu a Betty Hester seu talento do seguinte modo: ‘Pertenço a uma família em que a única emoção respeitável que se podia manifestar era a irritação. Em alguns esta tendência produz urticária, em outros literatura, em mim produziu ambas as coisas.’

Como às vezes se agarra a minúcias, o livro começa dando grande importância a um incidente da infância que influiu consideravelmente em sua formação: um pedacinho de noticiário cinematográfico da Pathé, de 1932, intitulado ‘Unique Chicken Goes in Reverse’ (Galinha peculiar anda para trás), em que aparecia a pequena Mary Flannery O?Connor com uma de suas primeiras amigas com penas. O que isso poderia prenunciar a respeito da escritura adulta? Como foi que a galinha a levou aos pavões? Que ligação se estabeleceu em sua mente devotamente religiosa entre as penas das aves e as asas dos anjos? Gooch não responde a essas perguntas, mas escreveu um livro provocador sobre uma mulher excêntrica que costurava roupas para as suas aves.

Sacrificando seu primeiro nome à carreira literária (‘Quem compraria os livros de uma lavadeira irlandesa?’, brincava aludindo ao fato de não querer ser Mary O?Connor), trabalhou por algum tempo, mas com resultados memoráveis, como cartunista nos primeiros anos de faculdade. Costumava assinar M.F.O.C. e usava a forma corriqueira, M.F. O?Connor’ ao assinar os álbuns de fotos da classe.

Entrou com sucesso na Oficina de Escritores de Iowa e na Yaddo, a colônia de artistas de Saratoga Springs, Nova York, numa época em que a vida em ambos os lugares era consideravelmente movimentada, mas conseguiu evitar os problemas. Quando seu amigo Robert Lowell começou a mostrar um comportamento muito estranho em Yaddo, lembrou mais tarde: ‘Eu era demasiado inexperiente para perceber que ele estava louco; achava que os poetas se comportavam assim.’

Era muito amiga de casais, como Lowell e sua resposta Elizabeth Hardwick, e outros, sem ter ela própria um par. Mas parecia mais à vontade em sua reclusão em Andalusia, cercada de pássaros e recebendo a visita de literatos ocasionais. ‘Mr. Giroux, o sr. não poderia fazer com que Flannery escrevesse sobre pessoas boas?’, sua mãe pediu certa vez ao editor Robert Giroux, mas ela as próprias ideias a respeito do significado de boas.

‘É um maravilhoso livro para crianças’, falou do lançamento de To Kill a Mockingbird (O Sol É para Todos), de seu colega sulino Harper Lee. Quando indagou sobre os filmes ‘deste Ingmar Berman’, quase chegou a identificá-lo como um espírito afim ao seu, imerso no rigor espiritual. ‘Parecem medievais’, disse, analisando o que aproximava suas obras das dele.

O?Connor falou a Hester de um cinema de Milledgeville no qual estava sendo exibido Wild in the Country, com Elvis Presley, sobre ‘o trabalho de reabilitação de um jovem delinquente interiorano’. ‘Então se dedicou com grande prazer a criar o seu jovem personagem do interior, Rufus, requebrando em um corredor vestido com o espartilho da falecida mãe de Norton, berrando Shake, Rattle and Roll, de Elvis Presley’, escreve Gooch em The Lame Shall Enter First (O coxo entrará primeiro).

O que torna Flanney uma obra tão valiosa é o grau de intimidade com o qual capta a sensibilidade da escritora nesta história. O que cria um vácuo é o emprego de Gooch da palavra ‘so’ (assim, desse modo, então, tão). Neste ‘so’ há algo que ele não consegue compreender. Há ainda uma parte de O?Connor que realmente não conhecemos.

Todos os Contos

VALE A PENA CONHECER: Todos os 31 contos de Flannery O?Connor foram reunidos no ano passado, num único volume, pela editora Cosac Naify: Contos Completos (tradução de Leonardo Fróes, 720 págs., R$ 79). A autora é um dos maiores nomes da literatura moderna do Sul dos Estados Unidos, representada por ninguém menos do que William Faulkner, William Styron e Truman Capote. Seu repertório temático envolve fanáticos religiosos, racistas irrecuperáveis e tipos grotescos. A atualidade dos contos de Flannery é assustadora o bastante para seduzir tanto acadêmicos como cantores pops: Bruce Springsteen e Tom Waits fizeram versões musicais de seus contos. Ambos, por exemplo, criaram canções baseadas no conto Um Homem Bom É Difícil de Encontrar, que está no volume da Cosac Naify. O escritor Cristóvão Tezza, autor do posfácio desta edição brasileira, ressalta a violência dos contos de Flannery, o que, segundo ele, mostra o quanto a escritora, conservadora e católica, não deixou a crença religiosa influenciar sua arte.’

 

 

REVISTA
Luiz Zanin Oricchio

Che, de Steven Soderbergh, na capa da Cahiers du Cinéma

‘É um número especial este dos Cahiers du Cinéma de janeiro. Seu diretor de redação, Jean-Michel Frodon, anuncia o que todos já sabiam – a compra da mais famosa revista de cinema do mundo pelo grupo Phaidon, da Inglaterra. Até 2008, a Cahiers pertencia ao Le Monde. Mas, ao que parece, a revista é deficitária e o Le Monde, ele próprio (como toda a imprensa mundial) enfrentando dificuldades, resolveu livrar-se desse título de prestígio, porém dispendioso. Frodon anuncia a compra da revista pela Phaidon com otimismo: ‘É uma tripla garantia de qualidade estética, ambição intelectual e independência financeira.’

Outro fato digno de registro é a capa deste número ser dedicada ao Che, de Steven Soderbergh, tipo de épico em geral esnobado pela revista, que prefere se dedicar a obras de outro tipo. Ou alternativas ou americanas, obedecendo à inspiração primeira dos Cahiers de garimpar autores em plena meca da indústria.

Soderbergh é cineasta respeitado, no entanto seu díptico sobre Ernesto Guevara parece um empreendimento de risco. Primeiro pela figura do guerrilheiro, ícone da esquerda e do espírito dos anos 60, mas detestado por quem pensa de maneira oposta. Segundo, a opção do diretor, de imprimir um tom clássico a seu filme, uma narrativa límpida que nunca resvala para o academismo. De novo: política e classicismo. Não são características que mais agradam aos críticos dos Cahiers. No entanto, a recepção ao filme é das mais positivas.

No artigo escrito por Enzo Renzi, alguns pontos são discutidos. Como o da sugestão de que o encontro de Guevara com Fidel no México se deu sob um misto de loucura e paixão pela revolução. Condições sem as quais ninguém embarcaria num precário iate de turismo para derrubar um governo protegido por um exército. Assim, o êxito dessa aliança teria sido levar essas duas características até as últimas consequências. A cena da conversa entre Fidel e Guevara está em O Argentino, título da primeira parte. Dessa maneira, A Guerrilha, título da segunda parte, não seria a história de uma derrota, mas ‘o contracampo de um triunfo’. Na lógica proposta pelo filme, e flagrada pelo crítico, o fato de Guevara abandonar uma revolução àquela época triunfante para embrenhar-se na aventura boliviana, seria apenas a consequência lógica da premissa inicial. Tivesse o Che se acomodado aos cargos que chegou a ocupar na estrutura de poder da revolução cubana e trairia aquela intuição inicial. Não seria o ícone que hoje ainda é. O que lhe dá força é a paixão. E, por que não?, também a loucura.

Essa é uma maneira de entender a personalidade do personagem e traçar um projeto de filme em consonância com essa compreensão. Pode-se discordar, mas tem lá sua lógica interna.’

 

 

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