Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Globo


EVANGELHO DE JUDAS
Luiz Paulo Horta


Cristo em novas versões


‘O ‘Evangelho de Judas’, que acaba de ser lançado com grande publicidade nos
Estados Unidos, joga mais lenha numa fogueira que vem aumentando: a da
reinterpretação da vida de Cristo. É como se, de novo, houvesse interesse na
velha história, base da nossa civilização, mas contada agora de maneiras
diferentes. O escritor Nikos Kazantzakis foi por esse caminho e daí surgiu um
filme: ‘A última tentação de Cristo’ (dirigido por Martin Scorsese). Saramago
fez o mesmo. ‘O Código Da Vinci’ vai beber na mesma fonte: a dos evangelhos
apócrifos, que contam a vida de Cristo de maneiras que se afastam da visão
tradicional.


Neste sentido, o ‘Evangelho de Judas’ é dos mais drásticos. Começa na Páscoa
que precedeu a Paixão. Os discípulos rezam, oferecendo o alimento, e Jesus ri-se
deles. ‘Por que você está rindo?’ – eles perguntam. E Jesus responde que não
está rindo deles, e sim daquela estranha idéia de agradar a Deus. Os discípulos
se zangam; menos Judas, que parece saber de alguma coisa. ‘Eu sei quem você é,
de onde você veio’, ele diz, postando-se na frente de Jesus. ‘Você é do reino
imortal de Barbelo’. Aparentemente surpreso com a afirmação, Jesus diz a Judas:
‘Afasta-te dos outros, e eu te contarei os mistérios do Reino’.


O mistério que Jesus relata é que, para além das estrelas, existe um
território divino, livre da materialidade. Jesus não é filho do Deus do Antigo
Testamento, mas um descendente do terceiro filho de Adão, Set. Sua missão é
indicar aos que ainda possuem uma centelha divina o caminho de volta ao Reino.
Ele explica a Judas que estava rindo dos discípulos porque eles ainda rezavam ao
Deus do Antigo Testamento, que de fato não é amigo da Humanidade, e é antes
causa dos seus sofrimentos.


Voltando ao tempodos evangelhos apócrifos


Entra aqui a ‘missão’ de Judas: Jesus quer voltar a Barbelo, e neste sentido
precisa sacrificar ‘o homem que me envolve’, isto é, a sua aparência terrena. A
única maneira de fazer isso é aceitar a morte, e ele pede a Judas que seja o
agente desse desfecho.


Judas argumenta que poderá adquirir, assim, má reputação eterna, e descreve
um sonho: numa visão que ele teve, os outros discípulos o apedrejavam. Jesus o
tranqüiliza: ‘Levanta os teus olhos para a nuvem, para a luz e as estrelas que a
rodeiam. A estrela que indica o caminho é a tua estrela’. Judas aceita o
desafio, e concorda em entregar Jesus aos sumos sacerdotes.


Parece complicado? Para um leitor moderno, talvez. Mas cada vez mais estamos
voltando a climas que lembram os séculos III e IV da era cristã – quando as
divergências teológicas eram grandes, e pululavam interpretações sobre a vida e
a pessoa de Cristo.


É o clima dos chamados evangelhos apócrifos. ‘O Código Da Vinci’, engenhoso
best-seller, entronca nos apócrifos que falam de um Cristo muito humano,
carnalmente ligado a Madalena – a ponto de ter filhos com ela e de entrar
(segundo o ‘Código’) na linhagem dos reis franceses!


A imaginação humana não tem limites; e, em toda a história do Ocidente, não
há nada que se pareça com a história de Jesus Cristo. Mas a corrida ‘para fora’
da interpretação tradicional tem um outro motivo: a visão ortodoxa romana é a
mais difícil de entender, ou pelo menos de explicar sob um ponto de vista
racional. Em que explicação racional, com efeito, cabe a idéia de que Jesus
Cristo foi (ou é) ao mesmo tempo Deus e homem? Como acreditar num deus que se
deixa crucificar entre dois ladrões? E na doutrina da Trindade?


Face a essa história implausível, era tão mais fácil entender e aceitar
outras interpretações! Como a que diz que a humanidade do Cristo era só uma
aparência externa: ele apenas pedira emprestada uma figura de homem, pronto a
livrar-se dela quando chegasse a hora. No extremo oposto fica a ‘Vida de Jesus’
de Ernest Renan, grande sucesso do século XIX – Jesus como um homem
extraordinário, modelo de ética, mas sem nada de divino.


Um mistério que não cabe numa explicação racional


E no entanto, a linha que acabou predominando, pelos séculos afora, foi a
mais difícil de todas: o Cristo simultaneamente Deus e homem.


Alguém dirá que isso aconteceu porque a Igreja reprimiu as ‘heresias’. Mas
não havia Igreja repressora no tempo em que foram escritos os primeiros
evangelhos. E ali, naqueles quatro textos, há um mistério que se recusa a ser
amarrado pela lógica.


O fascínio daqueles textos talvez resida nisso: o contraponto entre a
humanidade do Cristo e alguma coisa que vai além do humano. Às vezes ele se
comporta da maneira mais prosaica – sente sede, cansaço. Outras vezes, faz parar
uma tempestade no mar. Do fundo dos tempos, ele continua a nos
desafiar.’




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