Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Para uma comunicação de massa do século 21

Os ilustrados atuais adoram declarar o fim de tudo que está, pelo bem ou pelo mal, mais vivo do que nunca: o fim da história, o fim da luta de classes, o da metafísica, o da alienação. Adoram dizer que o maniqueísmo não existe mais; essa mania que temos de dividir o mundo em duas metades: opressor versus oprimido; Ocidente versus Oriente, Norte versus Sul e assim por diante.

Esquecem que o maniqueísmo não é uma questão de achar, mas de relações concretas de forças vivas que atuam no mundo, determinando os lugares sociais, econômicos, simbólicos, étnicos e de gêneros, além dos de espécie, humanos e não humanos, de modo a dividir o mundo em duas metades opostas, ainda que de forma piramidal, tal que uma profusão gradativa de maneiras de viver muitas vezes mais serve é para esconder o óbvio: a estrutura profundamente maniqueista da sociedade que produzimos. O maniqueísmo não constitui uma simples questão de vontade individual ou teórica: acabou!

É verdade, por outro lado, que necessário se faz atuar no mundo com o objetivo maior de suplantar os maniqueísmos, mas isso não é possível senão através de lutas conscientemente coletivas, as quais, em processo, devem acumular forças capazes de agir sobre a estrutura profundamente desigual de nossa atual civilização, por meio de escolhas comprometidas com aqueles perfis sociais que são realmente prejudicados por todas as formas de maniqueísmo, o que só é possível através de uma sociedade pós-capitalista, já que esta é inextricavelmente excluidora, posto que se constitui a partir de sistemas opositivos como opressor e oprimido, colonizador, colonizado, valor, não-valor, proprietário, não proprietário e assim por diante.

Com qual ficamos?

Eis a única maneira de fazer emergir verdadeiros multiculturalismos e diversidades/liberdades expressivas. Todo o resto é mistificação, acomodamento ou simplesmente má-fé.

Entre esquerda e direita; pobres e ricos, colonizados e colonizadores, com quem ficamos? Ou é mais tranquilizador, para não dizer covarde, dizer que tudo isso já não existe mais; é coisa da década de 60 e 70; ou de supostas anacrônicas épocas fabris, ligadas à Segunda Revolução Industrial, na qual e através da qual Marx e Engels analisaram com precisão, no Manifesto Comunista de 1848, o movimento desse longo pesadelo que tem sido a trans-história da humanidade desde sempre, pelo menos tendo em vista as grandes civilizações, marcada pela tradição do oprimido, a qual, segundo Walter Benjamin, é uma exceção que, na verdade, é regra geral, pela simples razão de que é sempre uma exceção, meia dúzia de humanos, que têm se beneficiado do trabalho coletivo, deixando a maioria a ver navios.

É por isso que é preciso fazer escolhas maniqueistas, além de nossas abstratas percepções e constatações.

Por exemplo, entre uma TV, como a Rede Globo, a serviço da opressão e da concentração de renda, claramente submetida aos interesses do imperialismo americano, cuja programação é montada (e não apenas a TV Globo) autoritariamente, sem que possamos contribuir, como se fôssemos idiotas; e uma TV realmente aberta às forças vivas de nossa sociedade; e vivas porque não aceitam ficar na posição passiva de meros telespectadores; porque não querem receber informação, entretenimento, cultura, de cima para baixo, em nome de uma transcendente liberdade de expressão para poucos; porque sabem que é direito delas produzir, como sujeitos coletivos, uma TV que esteja a serviço da cooperação, da inteligência crítica, da solidariedade, da justiça, da liberação dos povos oprimidos, enfim, entre uma TV montada para submeter o povo brasileiro e uma outra que construa sua programação a partir do ponto de vista crítico, criativo e libertário de nossa diversidade populacional, com qual ficamos?

Uma forma de privado é mais privada que outras?

São questões concretas pela simples razão de que o inconstitucional, escandaloso e inaceitável é o que ocorre: a ausência total da segunda opção, a que diz respeito a um sistema de comunicação dos trabalhadores urbanos e rurais, dos índios, do movimento feminino, negro, gay; da maioria de nós, enfim. E nem adianta responder que a segunda opção é aquela que diz respeito às TVs públicas, que o privado é privado, isto é, pode fazer o que quiser, e o público, por consequência, é que deve contemplar minorias e oprimidos. Esse argumento é uma trapaça e o cúmulo do absurdo é que mesmo setores da esquerda caíram nessa ladainha que nos levou à situação atual do neoliberalismo no Brasil e no mundo.

Os mesmos meios de comunicação a serviço dos interesses de multinacionais e do imperialismo americano passaram a década de oitenta e noventa nos dizendo que o privado é eficiente e o público é ineficiente; que a dimensão privada tem total liberdade de ação e o público não, através de uma estratégia claramente maniqueista, que dividia ( e divide) opositivamente o privado do público, então confundido, estrategicamente, com o Estado, de sorte que o público passou a ser concebido como tudo aquilo que é gerido pelo Estado.

E ainda são basicamente os mesmos que dizem que o maniqueísmo acabou!

A oposição maniqueista entre uma suposta esfera privada e outra pública/estatal é uma tolice, se pensada por ela mesma, É ridícula e não aguenta algumas singelas perguntas, a saber: por acaso a dimensão privada é só aquela fundada no auto-interesse e no objetivo de dar lucro para meia dúzia de pessoas? Uma TV confessional, de alguma Igreja, é privada ou é pública? Uma TV aberta, produzida por índios, por sindicatos, pelo Movimento dos Sem Terra, é privada ou é pública? Será que uma forma de privado é mais privada que outras? Quer dizer que o Movimento Social dos sem Terra, MST, constituído de milhões de trabalhadores rurais, não pode expressar sua visão de mundo, através de um sinal aberto, de alcance nacional, de TV, mas meia dúzia de pessoas, em nome da livre iniciativa, podem?

Iniciativa privada/religiosa versus meios estatais

Será que a dimensão privada não deve ter obrigações públicas bem claras, evidentes, sem que isso signifique diminuição da liberdade privada de expressar? O privado é mesmo absolutamente privado? Qual empresa privada acumularia fortunas em Marte? Por acaso uma empresa privada, qualquer que seja, atuando no planeta Terra, não obtém seus lucros a partir de um intenso, complexo e trans-histórico trabalho coletivo, braçal, intelectual, técnico-científico? Qual empresa privada realmente paga os custos desse trans-histórico trabalho coletivo? A atuação privada, qualquer que seja, não deve ter limites ecológicos, sociais, epistemológicos, econômicos? Por que, em todos os canais de TV, inclusive o estatal-público, é possível ver/ouvir pastores e padres, falando em alma de outros mundos, em encarnação, possessão, Deus versus Diabo; contra o comunismo, e nunca, nunca mesmo, tivemos um único programa de TV que nos explicasse, a partir de uma perspectiva outra, o que é luta de classes, o que é votar com consciência, alienação, mais-valia, esquerda, direita, e assim por diante?

Liberdade de expressão só vale para a iniciativa privada e para algumas religiões? E a liberdade política só deve aparecer, da forma hierárquica como aparece, nas épocas de eleição?

Tendo em vista essas questões, é possível perceber como nossa estrutura midiática é absolutamente surrealista, razão pela qual é necessário, para democratizá-la, mais que eliminar o escandaloso oligopólio que a caracteriza, embora o fim desse oligopólio seja o princípio básico para democratizá-la, pela evidente razão de que liberdade de expressão e concentração de poder são duas perspectivas irreconciliáveis: outro maniqueísmo nefasto que inviabiliza – e existe para isso – qualquer tentativa real de realização de uma verdadeira justiça comunicativa, social.

Democratizar para valer os meios de comunicação, no Brasil e no mundo, não passará de demagogia, mitificação, ingenuidade ou trapaça, se não desbaratamos o seguinte maniqueísmo: iniciativa privada/religiosa versus meios estatais de comunicação, confundidos com a esfera pública.

A serviço de oligarquias corruptas

E só existe um meio para nos desembaraçamos dessa armadilha: tornar a dimensão pública transversal, de tal sorte que seja o referencial tanto das chamadas iniciativas privadas quanto das redes estatais de comunicação.

Para isso, para que a esfera pública seja duplamente transversal, é indispensável que abandonemos de vez o cinismo que infestou os meios de comunicação privados e estatais. O cinismo do ministro de propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, autor da sentença de morte que se tornou onipresente na comunicação de massa no Brasil e no mundo, a saber: ‘Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade’.

O cinismo e oportunismo golpistas, resumidos na mencionada frase de Goebbels, constituem a única ‘manifestação de dimensão pública’ das mídias de massa, razão pela qual tal manifestação é ao mesmo tempo uma farsa e uma tragédia, quando não é igualmente uma tragicomédia.

É essa frase de Goebbels que se tornou uma caricatura da inexistente esfera pública nos meios de comunicação de massa, porque tem sido cinicamente utilizada para denunciar supostas corrupções, tragédias e violências diversas, sempre tendo em vista interesses ocultos, ligados ao polo dominante do maniqueísmo, iniciativa privada versus estatal, com o nítido objetivo de dominar o Estado, sequestrá-lo, a fim de que possa estar integralmente a serviço de oligarquias corruptas e entreguistas.

O fetichismo das mercadorias

Democratizar os meios de comunicação de massa sem tomar emprestado a sentença de Goebbels, invertendo-a, não é, pois, possível. E invertê-la consiste numa operação muito simples, bastando que seja doravante escrita, experimentada, vivida desta maneira:’ Pequenas verdades repetidas mil vezes transformam o mundo.’

Diante dos desafios enormes que a humanidade enfrenta e enfrentará cada vez mais neste século, o 21, é inadmissível um sistema de comunicação de massa comprometido com o cinismo, cujos supostos proprietários têm a cara de pau de repetir mentiras mil vezes, segundo seus interesses corruptos, chamando-os ‘de interesses públicos’.

Enquanto essa situação persistir, cada vez mais será mais comum tragédias como as ocorridas recentemente na região serrana do Rio de Janeiro, por mais que os meios de comunicação de massa as noticiem, pela simples razão de que o cotidiano da população brasileira está tomado pela mistificação, pelo cinismo de mentiras mil vezes repetidas, pelos mesmos meios de comunicação de massa, como as mentiras da competição, da inveja, da beleza anoréxica, do egoísmo, do obscurantismo religioso, de hipócritas caridades de programas de auditório, do fetichismo das mercadorias e tantas outras que impedem que a população brasileira assuma seu destino, não aceitando, por exemplo, morar em péssimas condições, em áreas de risco, ou igualmente não permitindo que regiões vulneráveis, como os bosques das serras, sejam tomadas pela especulação imobiliária, colocando toda uma cidade em perigo de extinção de uma hora para outra.

Especulação imobiliária é crime

Mais que depender de decisões governamentais, sempre urgentes e necessárias, é a própria população que deve tomar seu destino nas mãos, organizando-se conscientemente, o que não é possível com um sistema de comunicação que temos: programado para mentir mil, duas mil, um infinitésimo de vezes.

Se quisermos uma sociedade realmente preparada para os desafios do atual século, eis o mínimo que é preciso exigir dos meios de comunicação de massa: a garantia legal de que pequenas verdades, mil vezes repetidas, sejam a verdadeira esfera pública transversal dos meios de comunicação de massa.

Verdades escolhidas democraticamente e incessantemente revisadas, sempre tendo em vista o interesse público.

Para tal, é preciso uma Lei dos Meios que obrigue os meios de comunicação privados e estatais repetirem, com alegria, sedução, poesia; de manhã, à tarde e à noite (e não apenas em horários pouco vistos, como fazem alguns canais de televisão) pequenas verdades sociais, econômicas, culturais, ambientais, tais como: não suje praias, não jogue lixos em encostas, vias públicas, rios, lagos; seja solidário, coopere sempre, respeite as diferenças étnicas e de gênero, etárias; todo pobre é roubado, injustiçado; resolva conflitos através do diálogo e da compreensão; todos somos políticos; não reifique; a fome é inadmissível, depõe contra cada um de nós; não existe quem fale errado a sua própria língua materna; tenha autonomia; a paz, mas não a dos cemitérios, é o único caminho da prosperidade; todos têm o direito à saúde e educação de qualidade; todos têm direito a morar com dignidade; especulação imobiliária é crime, juros altos causam pobreza e fome; seja inteligente; seja digno e, para parafrasear Che Guevara: ‘Seja capaz de sentir,como se fosse com você, qualquer injustiça sofrida por qualquer pessoa,em qualquer lugar do mundo’.

É querer demais?

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Poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo