Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Paulo Renato Souza

‘A proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) vem provocando justificada reação dos brasileiros comprometidos com os ideais de liberdade e democracia e os princípios e costumes republicanos. A meu modo de ver, entretanto, o debate público tem-se desviado dos aspectos mais perigosos nela contemplados. A possibilidade de haver um suposto controle do Estado sobre os jornalistas não é o centro da questão. O exame do texto do projeto de lei revela que o caráter paraestatal do CFJ não implica que haveria uma interferência do governo de turno na profissão dos jornalistas.

Significa, isso sim, que se está pretendendo outorgar aos dirigentes de uma corporação profissional o poder de interferir na liberdade de imprensa por meio da regulamentação profissional. O governo estaria, assim, usando instrumentos para criar instâncias de poder que se estenderiam para além de seu tempo, beneficiando um grupo específico de aliados políticos.

Todos sabemos que, em grande parte dos casos, os órgãos dirigentes das corporações profissionais têm importante presença na vida pública brasileira, o que se reforçou com o papel importante que essas organizações tiveram na resistência ao regime militar e no processo de redemocratização do País. Nem por isso as corporações profissionais brasileiras perderam sua visão necessariamente parcial dos problemas da sociedade, fruto de sua perspectiva centrada nos interesses profissionais. Com o tempo, muitas dessas organizações pretenderam ampliar ainda mais a sua presença política na sociedade, passando o seu controle a ser objeto da estratégia política de vários partidos políticos, em especial dos que tiveram sua origem nos antigos segmentos da esquerda. É notório, por exemplo, que alguns dos partidos de menor expressão nos embates eleitorais gerais têm presença expressiva na direção de entidades sindicais ou corporativas.

Enquanto defensores dos interesses de uma determinada categoria ou vigilantes do exercício profissional de médicos, engenheiros, economistas ou advogados nada a objetar ao caráter político-partidário eventual dos dirigentes das corporações profissionais. Faz parte do jogo democrático numa sociedade moderna. O caso dos jornalistas é totalmente diferente. Aqui o exercício profissional está associado visceralmente a um dos pilares da democracia: a liberdade de informação. É temerário, para dizer o mínimo, outorgar a qualquer corporação profissional o poder, ou mesmo a possibilidade remota, de interferir no que a sociedade pode ou não pode saber pela imprensa, ainda mais considerando os interesses político-partidários que inegavelmente dominam muitas de nossas corporações profissionais. A idéia de regular por um conselho a atividade profissional dos jornalistas é tão antidemocrática quanto seria a de adotar mecanismo semelhante em relação a filósofos ou escritores.

No caso em questão, hoje o CFJ seria obviamente dominado amplamente por um determinado segmento político. Poderia no futuro vir a ser diferente, com a dominância de outros partidos políticos. Não importa. A consideração dessa hipótese apenas comprova que não deve ser outorgada a um colegiado desse tipo nenhuma possibilidade de intervenção em temas de interesse geral da sociedade e que tenham que ver com o funcionamento da democracia.

A pergunta que nos assalta a todos é o porquê dessa iniciativa e do enorme empenho do governo em aprová-la. A leitura do projeto de lei nos fornece algumas pistas: mostra claramente que a nomeação dos primeiros dirigentes, bem como as regras de sua renovação, levaria a um domínio permanente do conselho por militantes dos partidos que integram o núcleo da base do governo atual. O projeto, assim, é mais diabólico e antidemocrático do que parece à primeira vista. Significa que se pretende o controle ideológico e político – e não apenas o estatal – sobre a profissão dos jornalistas. As autoridades e os assessores responsáveis pela iniciativa insistem na justificativa de que estão apenas encaminhando ao Congresso a proposta de uma entidade profissional. Isso não diminui sua responsabilidade no atentado à democracia, apenas a agrava. Significa que um segmento da sociedade com notória participação política quer utilizar a presença episódica de seu partido no governo para criar e perpetuar o poder de exercer uma influência ilegítima sobre o conjunto do País.

Ter clareza sobre a distinção entre estar no governo e participar do poder real na sociedade é muito útil para qualquer pessoa que participe da vida pública. Ela nos ajuda a entender o projeto em questão como a manifestação de uma clara estratégia política do Partido dos Trabalhadores: usar seu tempo de permanência no governo para tentar aumentar de forma permanente seu poder político real na sociedade brasileira. Pelo que já se sabe, assistiremos a tentativas semelhantes quando forem enviados ao Congresso os futuros projetos das reformas trabalhista e universitária. A conferir e estar atentos e vigilantes. Paulo Renato Souza, consultor, foi ministro da Educação no governo Fernando Henrique Cardoso, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e secretário de Educação de São Paulo no governo Montoro’



Ancelmo Gois

‘Coleguinhas’, copyright O Globo, 24/09/04

‘O natimorto projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo sofreu mais um revés.

A revista ‘Imprensa’ ouviu 21 mil coleguinhas de todas as redações do país. Veja só: 53% são contra a criação, 27% favoráveis e 17% estão indecisos.’



José Nêumanne

‘Dom Luiz, o magnânimo’, copyright O Estado de S. Paulo, 22/09/04

‘Engana-se quem vislumbrar alguma contradição entre o discurso apaixonado de defesa da liberdade de imprensa que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez na posse do novo presidente da Associação Nacional de Jornais, Nelson Sirotsky, na semana passada em São Paulo, e sua decisão de apoiar proposta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) de criar o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), que, na prática, negará tudo quanto ele próprio disse. No fundo, o tal discurso apenas confirma sua atitude – e, mais que ela, sua firme determinação de não recuar na tentativa de impor à sociedade o grotesco mostrengo institucional.

Ao discursar para os proprietários de jornais, o chefe do governo se comportou como um monarca absolutista que se considera magnânimo por aceitar que os jornalistas, esses profissionais da intransigência, lhe façam críticas. Ao fazê-lo, o titular do Poder Executivo cometeu engano idêntico ao que tem sido amiúde cometido por vários de seus ilustres antecessores no posto, a começar pelo pioneiro de todos, o imperador dom Pedro I: o de que a liberdade é a suprema graça concedida por um chefe de Estado a seus súditos.

E é claro que não é por aí. Vamos aqui repisar à exaustão, até o presidente e seus áulicos ufanistas que vivem a escrever nos jornais (como antes já viveram disso) entenderem: o direito à ampla informação e ao conhecimento da pluralidade das opiniões é sagrado (e não ‘quase’, como definiu Lula na ocasião), pelo menos nas democracias dignas desse nome, como pretende ser a nossa. Ele só pode ser exercido pela sociedade se a imprensa gozar de liberdade e não cabe ao chefe do Estado democrático de Direito outorgá-lo, mas, sim, cingir-se a seus limites, resistindo à tentação totalitária de suprimi-lo ou até de reduzi-lo.

Em vez de recorrer à velha lábia do tirano esclarecido, que ele não é (nem, esperamos todos, pretende sê-lo), o presidente deveria ter comunicado aos participantes do 5.º Congresso Brasileiro de Jornais a retirada de seu apoio ao projeto estapafúrdio cuja autoria seus áulicos atribuem à Fenaj. E ouvir com muita atenção o que disse no mesmo encontro um subordinado dele, de terceiro escalão no governo. Com a autoridade de quem produziu teorias a respeito, o presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, lamentou a mistura de assessores de imprensa com jornalistas do batente nos mesmos sindicatos, et pour cause, na mesma federação. Foi essa mistura que permitiu o erro fatal do presidente de pensar que a Fenaj, por representar quem apenas divulga, também representa quem, por ofício, duvida.

Lula errou, pois, no texto, no tom e no contexto de seu discurso. Mas não se enganou sozinho: erro ainda mais grave cometeu o presidente de outro poder, o Judiciário. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, perante a mesma platéia, pisou feio na bola, ao negar à liberdade de imprensa a condição de absoluta, da mesma forma como na ditadura o general Ernesto Geisel havia definido a democracia. Liberdade de imprensa e democracia não podem ser relativas, assim como o estado de gravidez. O máximo magistrado tentou corrigir o equívoco no dia seguinte, dizendo-se mal interpretado. Ou seja, tentou transferir seu erro para aquele que desempenha papel semelhante ao dos mordomos em romance policial: o repórter que cobriu a notícia – e, em última análise, a imprensa.

Esse equívoco específico do presidente do STF, contudo, poderia até ser aceitável, se comparado com o conceito absurdo que ele também enunciou, mas nunca negou: o da existência de uma incompatibilidade entre o direito à informação, assegurado pela ‘relativa’ liberdade de imprensa, de um lado, e outro direito também de importância capital, aquele que protege a honra, a privacidade e a imagem do cidadão. Foi aí que o juiz número um meteu de vez os pés pelas mãos, pois tais direitos nunca foram nem são ou serão incompatíveis, mas, ao contrário, devem ser complementares. Ou seja: um Estado democrático de Direito que se preze tem a obrigação de zelar para que a cidadania goze do direito de ser informada de tudo e conhecer todas as opiniões sobre o assunto, enquanto a cada cidadão isoladamente deve garantir que ninguém enxovalhe sua honra, invada sua privacidade ou atinja de forma indevida sua imagem. Se cabe ao presidente da República não ceder à tentação totalitária de violar a liberdade de imprensa, garantindo assim à sociedade seu pleno direito à informação livre e à opinião plural, o dever precípuo da maior autoridade do Judiciário é assegurar que nunca falte ao cidadão comum reparação de danos produzidos por eventuais abusos contra a honra, a privacidade e a imagem.

Será de bom alvitre, pois, que assessores bem informados esclareçam esses pontos aos chefes dos Poderes Executivo e Legislativo para evitar que eles continuem incorrendo em enganos tão elementares como os que andam repetindo por aí. Pois esse tema é crucial para a saúde da democracia, de que ambos são fiéis garantes. José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde’