Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pedro Dias Leite

‘Na semana em que acabou um dos maiores segredos da história do jornalismo, uma das peças-chave do escândalo de Watergate disse que a identidade do ‘Garganta Profunda’ -codinome da fonte central do jornal ‘The Washington Post’ na cobertura do caso- era uma questão menor.

‘Nem gastei muito tempo tentando descobrir. Não foi muito importante’, disse à Folha Gordon Liddy, 74, o homem que arquitetou a invasão da comitê do Partido Democrata em 1972, ação cuja repercussão levaria à renúncia do presidente republicano Richard Nixon dois anos mais tarde.

Ex-agente do FBI, Liddy era um dos integrantes da unidade de investigações especiais da Casa Branca e estava a poucas quadras do prédio quando os cinco invasores foram presos. Julgado, ficou quase cinco anos na prisão, mais de cem dias na solitária.

Passados mais de 30 anos do escândalo, Liddy mantém sua versão dos fatos, considerada por muitos uma teoria da conspiração.

Segundo ele, seu grupo invadiu o comitê democrata não para grampear o local, mas em busca de provas de uma rede de prostituição que teria elos no local e serviria a políticos do partido. De acordo com ele, não havia nenhuma intenção política.

Para Liddy, a atitude do ex-número dois do FBI W. Mark Felt -que era o ‘Garganta Profunda’- ‘foi desonrosa naquela época, é desonrosa agora’.

Crítico da mídia norte-americana, o ex-assessor de Nixon hoje tem um popular programa de ‘talk-show’ de extrema direita que é retransmitido por mais de 200 estações de rádio nos Estados Unidos. Leia a seguir a entrevista que Liddy concedeu à Folha, por telefone.

Folha – Como o senhor vê a discussão sobre se o ‘Garganta Profunda’ era um herói ou um traidor?

Gordon Liddy – Acho que traidor seria uma palavra muito forte. O que ele fez foi desonroso, foi errado, e se alguém ler o texto [que revelou sua identidade] fica claro que foi desonroso. Foi por isso que ele não queria que seu nome viesse a público. Aparentemente, velho, fraco, com um infarto e a mente confusa, sua família o levou a isso pelo dinheiro.

Folha – Mas, passado tanto tempo, ainda é desonroso?

Liddy – Foi desonroso naquela época, é desonroso agora.

Folha – Sua vida mudou completamente desde então. E em relação a Watergate, alguma coisa mudou?

Liddy – Não é nada diferente agora do que era então. O grande problema é que o público não sabe do que Watergate se tratou na verdade. [Bob] Woodward e [Carl] Bernstein [jornalistas que fizeram as reportagens do ‘Post’] escolheram não contar sobre o que de fato era.

Folha – E o que era?

Liddy – O FBI estava investigando uma rede de prostituição, que estava vindo do Columbia Plaza, que ficava do outro lado da rua do complexo de Watergate. E o FBI achou uma ligação entre a rede de prostituição e o quartel-general do Partido Democrata.

O FBI disse que o elo era uma mulher, que era uma secretária ou assistente administrativa. Tanto que, quando o aparelho de escuta foi encontrado pelos democratas, foi achado no telefone de uma mulher que era uma secretária, assistente administrativa, não tinha nada a ver com o comando do Partido Democrata. E toda essa informação está disponível, nos arquivos, mas eles escolheram manter essa ficção de que era uma intriga política. Não era.

Folha – Então toda a história era uma mentira, e o FBI estava certo ao fazer a investigação em Watergate?

Liddy – Sim, com certeza. É o que o FBI encontrou.

Folha – E o senhor acha que esse seu ângulo da história pode ganhar novo fôlego agora?

Liddy – A mídia não vai publicar, a mídia continua mantendo esses segredos.

Folha – O senhor já comparou uma vez a mídia àquele tio indesejado, ‘uma coisa infeliz que acontece’, na sua expressão.

Liddy – Porque ela não conta a verdade às pessoas. Mantém em segredo, por exemplo, a real motivação do caso Watergate.

Folha – E agora, em relação ao presidente George W. Bush, de direita como o senhor, também mentem sobre ele?

Liddy – A imensa maioria da mídia está muito descontente com o presidente Bush, porque ela é muito à esquerda neste país. Há alguns veículos que não, como o ‘Washington Times’, que é um jornal justo, a Fox News, que é balanceada. Mas a maioria é de esquerdistas.

Folha – O senhor alguma vez pensou que Felt fosse a fonte?

Liddy – Não sabia quem era. E realmente também nem gastei muito tempo tentando descobrir.

Folha – Por quê, isso era uma questão menor?

Liddy – Sim, nós sabíamos que eles tinham várias fontes, as identidades de algumas delas, só não sabíamos quem era aquela lá. Não foi muito importante. O editor do ‘Washington Post’ naquela época, num aniversário do caso, escreveu um artigo dizendo que a contribuição do ‘Garganta Profunda’ foi muito supervalorizada, era marginal. E ele era o editor, deve saber do que estava falando. Não ia gastar meu tempo tentando descobrir quem era.

Folha – E essa revelação trouxe à tona alguma lembrança?

Liddy – Não, só que era um homem desonrado, fazendo algo desonrável.’





Ruth Costas

‘‘Sou o Garganta Profunda’’, copyright Veja, 8/06/05

‘O sociólogo alemão Max Weber, um dos fundadores da ciência social moderna, escreveu em 1918 que duas motivações podem levar alguém a se dedicar à política: a vontade de atingir um objetivo específico – um ideal ou um interesse pessoal – e o deslumbramento pelo poder como fim em si mesmo. Foi essa ambição que derrubou, há 31 anos, o presidente americano Richard Nixon, protagonista de uma trama que só foi desvendada por completo na semana passada. Mark Felt, vice-diretor do FBI durante o mandato de Nixon, revelou à revista americana Vanity Fair ser a fonte secreta que forneceu aos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal The Washington Post, informações que ligaram a Casa Branca à invasão da sede da campanha eleitoral do Partido Democrata no edifício Watergate, em Washington – daí o nome pelo qual o escândalo é conhecido. Woodward e Bernstein apelidaram sua fonte de ‘Garganta Profunda’ e mantiveram o segredo de sua identidade desde 1972, quando publicaram a série de reportagens que culminou com a renúncia de Nixon, em 1974. O combinado era que o nome da fonte só seria revelado depois de sua morte. Felt, aos 91 anos, resolveu sair do anonimato agora porque seus filhos e netos estão endividados e esperam ganhar algum dinheiro com a história.

Watergate teve repercussões profundas para a democracia americana. Foi a primeira vez que um presidente dos Estados Unidos abandonou o cargo para evitar um impeachment. Basicamente, o que aconteceu foi o seguinte: os espiões foram presos dentro da sede democrata com os bolsos cheios de notas de 100 dólares. O dinheiro, descobriu-se nas investigações, vinha dos fundos de campanha do presidente. Para completar, Nixon e seus assessores tentaram obstruir a investigação que o FBI, a polícia federal americana, estava fazendo sobre o caso. Felt, a par dos detalhes dessa investigação e ressentido porque havia sido preterido pelo governo Nixon para ocupar a direção do FBI, entregou a história a Woodward. Seja qual tenha sido sua motivação, o Garganta Profunda prestou um serviço à democracia americana. ‘Os crimes de Nixon foram resultado de sua incapacidade de aceitar os limites legais para as ações de um presidente’, disse a VEJA o cientista político David Karol, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. ‘Seu objetivo era tão-somente o de concentrar poder a qualquer preço, já que nunca chegou a receber benefício financeiro nenhum com isso’, ele continua.

Felt ajudou a destruir o sonho de Nixon de passar para a história como um grande estadista, um visionário com perfeito domínio do futuro de seu país e do mundo. O escândalo de Watergate ofuscou três legados importantes de seu governo, com reflexos nos dias atuais. O primeiro foi a iniciativa de tirar a China comunista do isolamento internacional. Em 1969, o presidente americano aproveitou as rixas entre Moscou e Pequim e começou a reatar os laços diplomáticos com a China, rompidos com a vitória comunista em 1949. A normalização com a China abriu caminho para o segundo legado: o início da distensão entre a União Soviética, que temia a amizade americana com a China, e os Estados Unidos. Em 1972, Nixon assinou com o soviético Leonid Brejnev os primeiros acordos para conter a corrida nuclear entre os dois países. O terceiro legado de Nixon foi o fim do padrão dólar-ouro – que estabelecia o lastro do dinheiro americano no metal, enquanto as moedas dos outros países mantinham seu valor fixado em dólares. Com o fim dessa paridade, Nixon acabou dando origem ao sistema monetário atual, em que o valor das moedas varia de acordo com sua oferta e procura e os governos devem ter responsabilidade fiscal para garantir sua estabilidade. Por fim, não se deve esquecer, foi Nixon que pôs fim à Guerra do Vietnã.

Depois da renúncia e até sua morte, em 1994, Nixon tentou descobrir, sem sucesso, quem o havia alijado do poder. Os jornalistas do Washington Post foram fiéis à promessa de manter o sigilo da fonte. ‘O Watergate nos ensinou que um jornalismo ativo e persistente pode ser um ótimo antídoto contra abusos de poder cometidos por políticos’, diz David Greenberg, professor de jornalismo da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, e autor de um livro sobre Nixon. As reportagens de Woodward e Bernstein reforçaram o recurso da fonte em off – que dá informações com a condição de permanecer anônima – e deram impulso ao jornalismo investigativo, inaugurado durante a Guerra do Vietnã. Foi um furo do concorrente The New York Times – a publicação, em 1971, de documentos do Pentágono revelando detalhes ocultos sobre a guerra – que incentivou o Washington Post a apostar na investigação do Watergate. A era Nixon marcou o início da imprensa como um cão de guarda, lembrando aos altos escalões da política que seu poder acaba onde começa a lei.’



Dorrit Harazim

‘O caso Watergate em dois tempos’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/06/05

‘Naquele verão americano de 1974, Washington atingiu temperaturas sufocantes no mês de agosto. E a quinta-feira dia 9, data da renúncia do presidente Richard Nixon, não foi diferente. Ainda assim, o vestido florido usado por sua filha caçula Julie na derradeira aparição do pai perante a imprensa na Casa Branca pareceu particularmente absurdo e destoante. Nada conseguiria alegrar aquele ambiente. A começar pela própria Julie, trêmula de exaustão emocional. Sua irmã Tricia, a loirinha de pele de pêssego que poderia ter saído de um cartoon dos anos 50, se mantinha ereta para não desabar. E Pat Nixon, a primeira-dama que os jornalistas passaram décadas chamando de Plastic Pat, pôde ser observada em outra dimensão: a de guardiã de uma família em estado de choque.

Curiosamente, aquele momento de triunfo absoluto da imprensa sobre um presidente conspiromaníaco e execrado transcorreu sem estocada final. Simplesmente não houve a habitual disputa entre repórteres para emplacar as perguntas mais demolidoras. Por desnecessário. O Richard Nixon postado à frente da malta com quem viveu às turras já estava reduzido à própria sombra. Não havia mais o que perguntar. O desfecho do chamado caso Watergate, com a inédita renúncia de um presidente dos Estados Unidos para escapar do impeachment, começava a adquirir sua verdadeira dimensão. E o significado de um Richard Nixon eviscerado de qualquer poder, procurando manter o característico ricto de sorriso forçado na despedida, encheu a sala de silêncio. Dali o presidente implodido seguiu direto para a História.

O pulso dos repórteres aquartelados na Casa Branca se normalizou logo que o vice-presidente Gerald Ford emergiu na sala, recém-empossado pelo chefe da Suprema Corte, Warren Burger, para liderar o país durante os 895 dias que ainda restavam do mandato de Nixon. Foi um prato cheio. Ford, de quem se dizia ser incapaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo – como mascar chiclete e pensar -, mal deu dois passos e se enroscou no cipoal de cabos de tevê espalhados pelo chão. Choveram perguntas. Começava a era pós-Watergate, com seus mitos, heróis, desdobramentos. Ela durou 33 anos e encerrou-se na terça-feira, com estrondo. A revelação da identidade de Deep Throat, o mítico informante secreto que permitiu a uma dupla de intrépidos repórteres do Washington Post desvendar a teia de maquinações montada na Casa Branca, retrata bem mais do que a solução de um enigma. Ela permite olhar com crueza para os tempos de hoje.

Boa parte da geração americana com menos de 30 anos guarda pouco do que aprendeu na escola sobre Watergate. Não muito mais do que sobre Waterloo, para ficar só na letra ‘w’. Hoje, a notoriedade do prédio de linhas sinuosas em Washington que deu nome ao escândalo não passa mais pelo fatal arrombamento da sede do Partido Democrata por uma quadrilha de trapalhões a serviço do governo Nixon.

– Este é o edifício Watergate, onde mora a secretária de Estado Condoleezza Rice – apontam os guias.

Para esta geração, a descoberta de que um segredo que vale milhões de dólares pudesse ter sido guardado esse tempo todo é quase incompreensível. Quase tão incompreensível quanto a decisão de W. Mark Felt de permanecer anônimo até os 91 anos de idade, podendo ter sido celebridade – e lucrado com ela – há tantos anos. Aplaudem, com gosto, a decisão da família de finalmente vir a público como forma de investimento para a educação dos netos. Nestes tempos em que a televisão vive da exposição diária das entranhas do privado e do público, e que blogueiros dessacralizam ininterruptamente qualquer segredo, o espaço ficou estreito para pactos sigilosos de qualquer natureza. As biografias dos próprios personagens-ícones da era Watergate, atualizadas no arrastão da revelação da identidade de Felt, mostram um constrangedor nivelamento para pior.

As irmãs Tricia e Julie, casadas e com filhos crescidos, não se dirigem a palavra há quase oito anos. O desentendimento começou em torno da divisão dos US$ 18 milhões pagos à família pelo governo americano pelos papéis presidenciais privados de Nixon. Segundo o jornalista Daniel Shoor, veterano da era Watergate, boa parte desse dinheiro já foi consumida para pagar advogados. Uma segunda disputa envolveu a administração da Biblioteca Richard Nixon, em Yorba Linda, na Califórnia. Tricia queria que ficasse em mãos da família, Julie defendia a contratação de um conselho independente. Prevaleceu. Por fim, continuam brigando sobre o que fazer com os US$ 19 milhões doados à biblioteca por Bebe Rebozo, o amigo de última trincheira do ex-presidente.

O perfil de Carl Bernstein e Bob Woodward, a dupla de repórteres que pode se gabar de ter destronado Richard Nixon, também se adaptou aos novos tempos. Na mutação, perdeu boa parte do brilho. ‘Deep Throat e toda a cobertura de Watergate galvanizaram o jornalismo como nada antes’, sustenta a colunista mais irreverente do país, Molly Ivens. ‘Eu via desembarcar levas e mais levas de jovens querendo ser repórteres investigativos nas minhas salas de aula e tentava explicar que a modalidade é bem menos charmosa e romântica do que eles imaginavam. Na maioria das vezes, ela depende de ficar horas sentado numa cadeira dura lendo relatórios antigos de alguma companhia de seguros.’

Inútil. Todo mundo queria se tornar um Carl Bernstein ou Bob Woodward, e ganhar um Prêmio Pulitzer, se possível. Sobretudo depois que Dustin Hoffman e Robert Redford interpretaram os dois heróis no filme Todos os Homens do Presidente, baseado no livro homônimo por eles publicado. Embora formassem uma dupla quase indissolúvel no jornalismo – chegou a ser criado um neologismo, os ‘Woodstein’, para facilitar a conversa -, Bernstein sempre pareceu mais cativante para os padrões da época. Cabelão solto, modos arrojados, loquaz e atrevido. Sempre saía melhor nas fotos e entrevistas. Woodward era menos colorido. Carl fez investidas em Hollywood, desgarrou-se temporariamente do jornalismo, casou três vezes, faliu e se reergueu de um período de alcoolatria. Desentendeu-se com Bob durante a feitura do segundo livro e retornou à profissão que o celebrizou, como redator freelance. Sua escrita não perdeu o estilo. No ano passado, juntou sua assinatura à de Woodward para a venda de todo o material que acumularam do caso Watergate (exceto o referente a Deep Throat). Valor pago pela Universidade do Texas: US$ 5 milhões.

Passados 30 anos, Bob Woodward foi quem melhor soube investir no capital inicial chamado Watergate. Autor de 12 livros que freqüentaram com assiduidade a lista dos mais vendidos, está milionário. É um dos jornalistas de maior peso da imprensa americana atual e ocupa lugar de destaque no expediente do Washington Post. Nos últimos anos, vinha preparando meticulosamente o bote maior de sua carreira: revelar a identidade de Deep Throat no instante em que a promessa de segredo caducasse pela morte do personagem. Woodward sairia com uma operação de marketing insuperável: o derradeiro furo de reportagem de uma era, simultaneamente em páginas de jornal e formato livro. Considerando-se a estatura mítica que o enigma em torno de Deep Throat continuava mantendo, a aposta de Bob Woodward parecia imbatível.

Descarrilhou, como se sabe hoje, pela gula do repórter em não querer dividir os louros. Sondado pela família de W. Mark Felt para publicarem um relato a quatro mãos – leia-se, receita dividida -, esquivou-se e não parece ter advertido a chefia do Washington Post para o risco de ser furado. Confrontado com a revelação do segredo pela revista Vanity Fair, sonegou ao leitor do Washington Post o que lhe era devido: a reportagem máxima do jornalista Bob Woodward sobre o último mistério da era Watergate. Esquivou-se uma segunda vez. O texto que leva sua assinatura, instigante como sempre, mais parece o pedaço inicial do próximo livro do autor Bob Woodward. As revelações mais pertinentes, e salivosas, porém, continuam guardadas. A editora Simon & Shuster anuncia o lançamento relâmpago do livro para julho.

Ao longo de toda a semana, a dupla ‘Woodstein’ se refez às pressas para dar conta da interminável demanda de aparições na tevê, debates, entrevistas. Embora todos os históricos encontros secretos de W. Mark Felt tivessem sido apenas com Bob Woodward – Carl jamais viu o informante de ouro -, a indústria de celebridades está eufórica com a reedição de um mito. Para a geração que viveu a era Watergate, os desdobramentos desse último capítulo reservam alguns consolos. Enquanto durou, foi bela a noção de um Deep Throat anônimo para sempre, por honra a um pacto de confiança entre homens de palavra. Para a história do jornalismo investigativo, é oportuno ficar claro que Deep Throat não foi uma fabricação de repórter, nem um amalgamado de fontes transformadas em mito. Foi, exatamente, o que o Washington Post e seus repórteres sempre disseram ser: um homem com acesso a informação privilegiada.

Numa época em que se tornou fluida a definição do que é ilegal, abuso de poder, corrupção, perjúrio, ou motivo para impeachment, não custa relembrar que o mundo – e o jornalismo – já passou por momentos melhores. Como explicar a um candidato a repórter que um presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, quase foi submetido a um pedido de impeachment por ter tentado acobertar suas licenciosidades eróticas com uma estagiária da Casa Branca, enquanto seu sucessor e atual presidente, George W. Bush, levou o país a uma guerra baseado em informações deliberadamente falsas, e ninguém se mexeu?

Faz tempo que o jornalismo caiu do pedestal que ocupou na era Watergate. E faz tempo que os rigorosos métodos de apuração da dupla Bernstein e Woodward vêm sendo imitados de forma catastrófica, por superficial, por repórteres e manipulados à exaustão pelo poder. William Safire, o último dos grandes colunistas conservadores, enfureceu-se tanto com uma sessão em ‘off’ com o então secretário de Estado Henry Kissinger que ameaçou passar a designá-lo como ‘uma fonte do governo com forte sotaque germânico’.

Nos Estados Unidos de George Bush, o cerco à fonte anônima se intensificou consideravelmente, com processos e ameaças de prisão a jornalistas que a protegem. A campanha conta com o apoio popular num país onde 45% da população acredita em pouco ou nada do que lê na imprensa, segundo levantamento do Pew Research Center. Também já obteve eco entre alguns donos de jornal. ‘A fonte anônima é um mal do jornalismo’, decretou em janeiro deste ano o fundador do USA Today, Al Neuharth. Mas vale lembrar que foram fontes anônimas que disseminaram as primeiras fotos e relatos de tortura na prisão de Abu Ghraib. O legado maior de Watergate não está no uso de uma fonte que exige anonimato para falar. Está no uso que se faz dessa informação.’



José Paulo Lanyi

‘Em busca do garganta profunda’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 3/06/05

‘Enfim, o Deep Throat deu as caras. A fonte mais misteriosa, glamourosa e, dadas as relações de causa e efeito, mais poderosa do mundo ajudou a derrubar Richard Nixon e fez a glória do Washington Post e de seus repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward.

Os bastidores da série de reportagens são relatados pelos dois jornalistas no livro ‘Todos os Homens do Presidente’ – como de praxe, se é que é lícito comparar, muito superior ao filme homônimo, dirigido por Alan J. Pakula e estrelado por Dustin Hoffman e Robert Redford.

O Deep Throat, em português Garganta Profunda, codinome que faz menção a um filme pornô famoso na época, fornecia pedras para o grande quebra-cabeça que, por fim, revelaria um Nixon enforcado pelas ‘fitas de espionagem’ do escritório democrata no complexo imobiliário Watergate, em Washington.

Era lá que funcionava o comitê de campanha presidencial do partido que fazia oposição ao presidente. Com o Garganta na retaguarda, reforçou-se a convicção de que Nixon orquestrara a instalação de um sistema de escuta para bisbilhotar os seus adversários.

Deep Throat, sabe-se hoje, é o ex-número dois do FBI Mark Felt, 91 anos. Ele mesmo assumiu a informação para a revista Vanity Fair, depois de mais de trinta anos de anonimato e negação do fato. O Post confirmou a fonte, com os depoimentos de Woodward e do ex-editor-executivo Ben Bradlee.

Quando comecei no ofício, fiquei pensando em encontrar um Deep Throat para mim (frase esquisita, hã…). Achava aquilo fundamental. Em uma determinada época, a ambição de deparar com a fonte da ‘grande reportagem da minha vida’, uma espécie de Graal do jornalista, levou-me a fuçar aqui e ali, cheio de segundas intenções de glória – o que, hoje, reconheço, me soa fútil e dispensável.

Até que um dia… Ah, um dia achei que a havia encontrado. Estava indo de táxi para o Morumbi assistir a um Vasco e São Paulo (o Vasco ganharia do freguês). Papo vai, papo vem, falo com o motorista sobre o assassinato do PC Farias, caso que eu adoraria ‘resolver’. Nisso, o outro me diz que a sua ex-mulher, policial federal, tem todas as informações, sabe de tudo, é uma fonte generosa, praticamente mítica (essa foi de doer…).

O motorista, um ‘nipodescendente’, mais conhecido como japonês, ficou de conversar com ela, que estaria disposta a abrir o jogo. Alguns telefonemas misteriosos depois, conheci-a em Osasco. Recebeu-me em sua própria casa, junto às suas filhas. Garantiu-me o acesso às provas, deu detalhes, confirmou hipóteses, rogou-me sigilo, mostrou-se insegura, testou-me a discrição.

Num certo momento, intrigado com alguns fatos da sua vida, que pareciam não bater, pedi a uma fonte do Judiciário para checar as informações que me chegavam. A resposta foi negativa, não havia na PF uma policial com aquele nome.

Tentei entender o enredo. ‘Bom, se não é policial, é o quê, então? Como pode mentir, se me leva para dentro de casa, na companhia das filhas? E o ex-marido taxista?’.

Descobri depois que aquela família estava enrolada, soterrada por uma montanha de cheques devolvidos. Sempre que podia, a moça me pedia algum dinheiro, fosse para ‘pagar a viagem’ que faria para buscar os documentos, fosse para ‘comprar uma bolsa grande para carregar os papéis’. Devo ter gastado, entre gasolina, táxi e uns trocados, o equivalente a uns 150 reais.

Tratava-se, é claro, de uma família de golpistas kamikazes. Quanto tive certeza, peguei o telefone e soltei o verbo. Ela reagiu com agressividade. Decepcionado comigo mesmo, numa autocrítica que realçou a ingenuidade, deixei para lá.

Eu fizera papel de otário. Um otário desconfiado, mas, ainda assim, otário. Nunca se deve desprezar o poder da cegueira, diante de uma ambição quixotesca, no sentido mais pobre dessa imagem. Em minha inexperiência, gravei essa lição na pele.

Dali em diante, depois de me debater na minha própria rede de insensatez, parei de pensar na ‘grande fonte’.

Não muito tempo depois, faria uma reportagem-bomba que motivaria o afastamento de um diretor de presídio, de um delegado-titular e de alguns agentes carcerários. Desta vez, ‘a informação me procurara’. Repercussão nacional pela Rede Manchete. Mas me rendeu muita dor-de-cabeça. Matéria de denúncia dá audiência, mas testa a paciência e o estômago de quem a produz.

Hoje estou na minha… Mas, caro Garganta brasileiro, ainda sou jornalista. Se o senhor aparecer, não o rejeitarei. Sabe-se lá… Mas, tenha certeza, se não for um conhecido número dois de um FBI, vou investigá-lo também…’



Eduardo Graça

‘Quando a imprensa derruba um presidente’, copyright Direto da Redação (www.diretodaredacao.com), 2/06/05

‘Ele não podia ter aparecido em melhor hora. Garganta Profunda era W.Mark Felt, o número dois do F.B.I. na segunda metade dos anos 70. Foi ele quem ajudou os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do The Washington Post, a iniciar a queda irreversível do governo Nixon. Poderia hoje a imprensa repetir com qualquer membro do alto-escalão do governo Bush a seqüência de denúncias e provas incontestáveis de sérias irregularidades que levaram à renúncia daquele outro governo republicano? Provavelmente não.

Nas últimas semanas a Casa Branca vem batendo na tecla de que a reportagem da Newsweek sobre a utilização de métodos nada ortodoxos – incluindo jogar o Corão privada abaixo – para conseguir informações de prisioneiros muçulmanos na base naval de Guantânamo, na ilha de Cuba, é o tipo de história que deveria ser banida do jornalismo sério e responsável. Principalmente porque a fonte principal da reportagem pediu que seu nome não fosse revelado. Ironia ou não, a Newsweek é a revista do mesmo grupo que publica o The Washington Post. E atinge novamente um governo extremamente conservador, comandado pela linha-dura do Partido Republicano.

A reportagem de Michael Isikoff e John Barry – dois sérios e premiados repórteres – gerou protestos em todo o mundo islâmico, notadamente no Afeganistão e no Paquistão. Uma das funções mais importantes – e raramente alcançada – das boas histórias jornalísticas é justamente a de mexer com os leitores, chacoalhar o status quo, tornar-se o ponto de partida para a modificação da realidade para sempre imperfeita. O governo Bush acha que este ‘jornalismo irresponsável’ apenas representa uma ‘propaganda negativa’ para os Estados Unidos em uma região tão estratégica para o país como o Oriente Médio.

Propaganda política e jornalismo não devem se misturar, a não ser em casos extremos. São como água e vinho. Mas tanto a denúncia da tortura de seres humanos praticada sistematicamente por soldados que representam um país reconhecido pela O.N.U. quanto a revelação do esquema fraudulento da eleição do principal mandatário da nação são traduzidos pelo neo-cons como anti-patriotismo. Não por acaso neste exato momento 18 jornalistas respondem a processos em todos os Estados Unidos por conta de reportagens com graves denúncias em que o informante ajudou o trabalho do repórter com a condição de que permaneceria anônimo. Na maior parte dos casos acredita-se que a fonte faz parte do establishment governamental – exatamente como no caso do Garganta Profunda.

Neste mês os donos dos principais jornais do país, incluindo o The New York Times, concordaram em diminuir progressivamente as reportagens que não apresentem todas as fontes ‘on the record’. O ‘U.S.A. Today’ chegou ao cúmulo de banir para sempre de suas páginas histórias baseadas em informantes anônimos. Pena. Histórias como a do Garganta Profunda dependem de os capitães da imprensa confiarem mais em seus empregados do que nas benesses do governo federal. Mas também não deixa de ser revelador o motivo final pelo qual Felt decidiu, quase três décadas depois, revelar sua identidade. Glória e dinheiro. Busca de reconhecimento e de segurança financeira. Duas metas mais do que enraizadas na receita batida de se encontrar a felicidade ao modo norte-americano. (Foi repórter do Jornal do Brasil, O Dia, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico. Em TV, foi editor, roteirista e repórter dos canais Brasil e Multishow. Vive atualmente em Nova York, de onde colabora para jornais e revistas brasileiros.)’