Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reinaldo Azevedo

‘Houve algumas reações indignadas à capa da revista Veja desta semana, que traz sete motivos para que se vote ‘não’ no referendo que vai decidir sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munição no Brasil. Afirma-se, e ouvi isso até de gente que me é muito próxima, que a revista cometeu um grave erro ao assumir uma posição e, supostamente, não dar peso igual às duas correntes de pensamento. É claro que discordo. E discordo no mérito e na circunstância.


Não ouvi essas mesmas pessoas reclamando do apoio explícito que o ‘sim’ recebe da TV Globo, por exemplo. Há muito tempo, desde a campanha do desarmamento, que previa a troca de armas por dinheiro, a emissora faz uma campanha aberta em favor da causa. Seus artistas de primeiro time estão todos eles na propaganda do ‘sim’. A emissora restringe, por exemplo, a participação de seus contratados em propaganda política. Acho que faz bem. Não entravam na campanha política como cidadãos, mas como artistas, cuja visibilidade é garantida pela emissora. Nesse caso, a Globo deve considerar que se trata de uma causa pública, acima dos interesses de facções e de partidos. E é mesmo. Em princípio, o alinhamento não ideológico.


Pois bem. Defendo radicalmente tanto o direito que a Veja tem de fazer o que fez como o da TV Globo de defender o que defende. Há muito tempo tenho insistido que uma das desgraças deste país é o consenso e o espírito ‘nem-nem’, o que chamo de ‘isenção administrada’, que distribui equanimemente as críticas para que o noticiário não possa ser acusado de desequilíbrio. Jornalismo não se faz com régua, estatística e tabela contábil. É um caso em que se usa a aritmética para praticar obscurantismo.


De maneira geral, concordo com a linha de argumentação da Veja, não com a da TV Globo. Mais do que o direito, os dois veículos têm o dever de dizer o que pensam. Se algum desequilíbrio tem havido na mídia, obviamente ele conta a favor da turma do ‘sim’. Se a Veja for lida por quatro pessoas, não chega a 5 milhões os que terão acesso à sua argumentação. Quantos são aqueles que vêem todos os dias na TV Globo as virtudes do desarmamento?


Posso até não concordar integralmente com os argumentos de Veja – embora eu já tenha deixado claro que voto ‘não’. Acho, por exemplo, um exagero associar esta campanha àquelas empreendidas por expoentes do totalitarismo para desarmar a população. Parece-me que corresponde a lembrar que Hitler era ecologista e antitabagista, o que tornariam suspeitas todas as pessoas que combatem o cigarro e tentam proteger focas e baleias. Podem não ser preocupações minhas – e não são -, mas é claro que a origem da campanha em curso, entendo, não remete a experiências de Estados totalitários. Já disse aqui quais são as minhas restrições, ligadas ao direito de escolha e ao risco de que a vitória do ‘sim’ seja contraproducente e só amplie o espaço da marginalidade. A revista, com correção, aborda tal aspecto largamente.


Na verdade, até já me desviei do objetivo deste artigo. Acho que a Veja exerceu o jornalismo o mais legítimo ao fazer a reportagem que fez e ao dar a capa que deu. Costumamos chamar de ‘manipulação’ aquilo que vai contra a nossa opinião. E de manifestação da obviedade e da racionalidade as coisas com as quais concordamos. Se jamais ocorreu a um militante do ‘sim’ enviar uma cartinha à TV Globo cobrando isenção na cobertura, diria que esta mesma pessoa está eticamente impedida de enviá-la à Veja. Ambas estão exercendo o sagrado direito de ter uma opinião – à diferença do que pensam alguns autoritários de plantão, elas têm direito a uma.


Mau jornalismo, quero crer, teria sido fazer uma reportagem com dados tendenciosos, que levassem à necessária conclusão de que o melhor é votar ‘não’, sem deixar claro ao leitor os critérios com os quais a publicação estava lidando e, pior, omitindo que ali estava uma reportagem, sim, mas também uma análise e uma opinião. A Veja não escondeu isso de ninguém.


O debate, de todo modo, é salutar. A mídia é parte constitutiva das sociedades democráticas, livres, e sempre haverá reclamações contra as suas supostas – às vezes, reais – manipulações. Mas nenhum remédio é tão salutar quanto a liberdade, o debate aberto, a clareza. Eu poderia aqui submeter a uma análise algumas reportagens de TV sobre o desarmamento, não só da Globo, e demonstrar que as pessoas bacanas, articuladas e até bonitas votam ‘sim’, e que são escolhidos para se expressar em favor do ‘não’ alguns seres que parecem estar pouco acima dos batráquios na escala evolutiva.


É óbvio que vai aí uma dose de manipulação. Fazer o quê? Censurar? Não, é claro. É preciso, isto sim, que se aponte o desvio e que se faça o debate. Os males da liberdade se corrigem com mais liberdade. É uma lição de Tocqueville, que os autoritários jamais vão acatar. A primeira coisa que pensam é logo em censura, em recolher revistas, em punir quem pensa de forma diferente.


Ademais, os que defendem o ‘sim’ deveriam se dar por satisfeitos de que contam com praticamente toda a opinião pública politicamente correta que é mobilizável. Até agora, não vi um só artista, dos muito queridos pelo público, que tivesse a coragem de mostrar a cara para defender o ‘não’. Não sei se é efeito da luz dos estúdios, não sei se é alguma estranha conseqüência de o sujeito trabalhar em frente às câmeras, mas o fato é que a conclusão parece ser a seguinte: se o cara é artista, ele é do ‘sim’.


É evidente que faço blague. A questão é de outra natureza. O Brasil não é a ‘América’, que é como os Estados Unidos chamam a si mesmos. Lá, um Charlton Heston liderando um clube de armas ou um Bruce Willis se dizendo do Partido Republicano são coisas corriqueiras. Reconhece-se como legítimo o direito de escolha. O sujeito que vai contra o consenso politicamente correto não é tratado como um gorila. Não lhe vai faltar trabalho, por exemplo. E, como sabem, eles fizeram aquele ‘inferno’ que são os Estados Unidos, não é? Já por aqui, no nosso ‘paraíso’, ai de um artista ou de uma pessoa pública se cismarem que ela pode ter um perfil dito conservador ou de ‘direita’. Estarão condenados ao inferno.


Entre nós, todas as pessoas ‘decentes’ têm de ser progressistas e a favor de causas definidas como libertárias, como se supõe ser a do desarmamento e a do ‘sim’. Vejam que beleza de democracia social fizemos por aqui… E a questão, no país, é antiga. Há um caso famoso: o do cantor Wilson Simonal. Ele foi vítima de um boato de que era dedo-duro durante a ditadura. Nunca houve comprovação. Nunca mais se levantou. Morreu no esquecimento. Seus filhos tentam agora recuperar a sua memória.


Já disse e reitero. Há pessoas decentes dos dois lados dessa questão. Já expliquei por que voto ‘não’ na edição anterior (Clique aqui se quiser ler). Não vou repetir os argumentos. Mas não custa à turma do ‘sim’ ser um pouco mais tolerante. Não é só revólver com bala que ameaça o outro. Pode-se também matar a reputação. A Veja e a TV Globo, pois, já se posicionaram nessa questão com todo o direito que têm de fazê-lo. E é evidente que a turma do ‘sim’ está em flagrante vantagem, tanto nas pesquisas como nos cabos eleitorais que conseguiu arregimentar.


Satanização


Uma das evidências de que se criou um clima típico das satanizações politicamente corretas está no fato de que o eleitor do ‘sim’ nunca precisa se explicar. Basta jogar algumas estatísticas, e tudo está bem. Se, no entanto, você votar ‘não’, está quase intimado a explicar, como fiz, que não gosta de armas, que nunca pôs a mão em uma, que não pretende fazê-lo, que não quer matar ninguém etc. Vale dizer: ter um princípio para votar ‘sim’ esbarra em certas generalidades humanistas, das quais ninguém discorda; é fácil. O princípio do ‘não’, que, entendo, tem a ver com a maioridade do cidadão, toca em franjas quase etéreas, de difícil explicação e tradução.


A Veja, a Globo, eu e o Zé da Esquina temos uma opinião a respeito e devemos exercer o direito de explicitá-la. É claro que os veículos de comunicação sabem que são formadores de opinião. Assim, nada melhor do que o eleitor/leitor/espectador não estar submetido a uma visão única do mundo, e essa é outra das glórias e das graças da sociedade de mercado – aquela que Marilena Chaui acredita criar uma imprensa mercadista. Ela que não chore. Há edições do velho Pravda encontráveis na internet. Aquilo sim é que era jornalismo, não é mesmo, Madame?’



Rui Nogueira


‘Veja, Trip e Bang Bang: excelentes precedentes ‘, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 3/10/2005


‘Chegam em boa hora as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), recusando-se a desempenhar o papel inconstitucional de mandar recolher as revistas Veja e Trip e a tirar do ar a novela da Globo que estreou nesta segunda, Bang Bang. Imaginem o império do politicamente correto que seria construído a partir de uma proibição da novela, e a que tipo de exercício paranóico a Globo teria de se submeter para não ofender até os defensores dos direitos das baratas! Se não existem, podem ter a certeza de que esses defensores apareceriam!


A Justiça Eleitoral cumpriu o que reza a Constituição, pois é terminantemente proibido qualquer tipo de censura prévia ou artifício que impeça a livre circulação das informações. O TSE não fez mais do que o dever, mas é bom que esse dever tenha sido cumprido com uma repulsa à altura da insistência com que certos grupos políticos e sociais deram para recorrer ao Judiciário atrás de ordens que conciliem o inconciliável: a extensão da liberdade de informação dependente do que é dito ou de quem é atingido pelos fatos divulgados. É como acreditar que alguém pode ficar mais ou menos grávido.


Há nesses episódios, ainda que a questão constitucional seja suprema, algo mais em jogo. Vá lá que, para efeitos didáticos, os professores vendam aos alunos dos primeiros semestres, nas escolas de Comunicação, a idéia da ‘neutralidade’ do noticiário e do comportamento dos profissionais da mídia. Funciona como uma espécie de domesticação da prática da reportagem e do texto. Uma didática estratégica para que os alunos aprendam a ouvir e a desconfiar ou confiar dos muitos lados e fontes que compõem um fato. Fora daí, não vale tratar o leitor como idiota e achar que ele precisa das almas caridosas dos lobbies organizados para se defender das ‘más influências’ do noticiário. E nem achar que jornalismo bom é o que procura o consenso entre fatos que não têm nada de consensual.


É curioso, mas não menos caricato, o quanto a má consciência instruiu as ações dos defensores do comércio de armas contra a revista Trip, porque ela fez longa reportagem em defesa da proibição do comércio de armas, e dos defensores da proibição contra a Veja porque a revista fez igualmente uma reportagem de uma dúzia de páginas com uma defesa pontual do voto ‘não’, isto é, contra o desarmamento obrigatório da população. As duas partes, claro, são a favor da liberdade de expressão, mas propuseram, cada uma à sua maneira, que essa liberdade fosse violada. A origem dessa má consciência está na certeza que elas têm de que o leitor/eleitor é um ser desamparado, que precisa ser protegido.


As interpretações totalitárias sobre os efeitos do noticiário são típicas dos descrentes da liberdade de imprensa e do efeito multiplicador da informação sobre as opiniões. Não faltarão eleitores que comprarão Veja e Trip, e eles só têm a ganhar em ler algo que não se esconde por trás de um jornalismo falsamente neutro. Haverá quem formará opinião para a o referendo por meio de uma das duas reportagens, além de muitas conversas no ambiente de trabalho, na rua, no bar, na igreja etc. Nada é definitivo na formação de uma opinião. Assim como haverá os que lerão as duas reportagens e nem assim se sentirão satisfeitos e suficientemente esclarecidos. Enfim, a multiplicidade de informações e de chaves para decidir o voto é o que incomoda os falsos arautos da liberdade, gente sempre pronta a pedir uma ação de censura. Essas pessoas propõem-se a participar de um debate nacional, mas não acreditam no poder do convencimento. E é por isso que elas recorrem ao judiciário para ver se garantem não a liberdade de debate, mas uma reserva de votos de opinião supostamente imunes a influências que não sejam as delas.


Estamos diante de um debate aberto em que o eleitor/eleitor só tem a ganhar. Quando menos falsamente neutras forem as reportagens sobre o referendo, mais o cidadão será obrigado a ler para formar opinião. Quanto mais abertamente as reportagens tentarem convencer o eleitor com fatos e opiniões, mais os jornalistas serão obrigados a expor objetivamente a origem das suas fontes, em vez de produzirem aqueles textos ‘neutro-cretinos’ com o mesmo espaço para os dois lados do referendo, o mesmo tamanho das entrevistas, jamais uma entrevista do ‘sim’ desacompanhada de uma entrevista do ‘não’, a mesma diagramação de fotos, enfim, o jornalismo a serviço de um desserviço que é a camisa-de-força da uniformização de algo que não é uniforme.


Como podem ser tratadas de maneira uniforme duas posições tão díspares, sintetizadas em um referendo que será decidido pelo que de menos uniforme existe, o ‘sim’ e o ‘não’. São mais do que desiguais, são absolutamente contrários.


Eu não quero jornalismo neutro, mas opiniões sinceras e fatos esclarecedores.’



O Estado de S. Paulo


‘Negada liminar em representação contra revista Veja’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/10/2005


‘O ministro José Delgado, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), negou liminar à Frente Parlamentar ‘Por um Brasil Sem Armas’, que queria suspender a veiculação da revista Veja desta semana por publicar ampla reportagem com as razões para votar não no referendo de 23 de outubro próximo. O TSE já havia indeferido uma representação contra a revista Trip, que se posicionou a favor da proibição do comércio de armas. Uma outra decisão rejeitou a suspensão exibição da novela Bang Bang, da Rede Globo. Em seu despacho sobre o caso da revista Veja, o ministro Delgado observou que ‘o direito de informar não se confunde com o de propaganda’. De acordo com informações do site do TSE, na representação ajuizada no Tribunal, a Frente alegou que o espaço ocupado pela reportagem viola resolução do TSE e que a matéria favorece a frente parlamentar ‘Pelo Direito da Legítima Defesa’. internet O ministro substituto José Delgado, também negou liminar à representação ajuizada pela Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa, contrária a proibição da venda de armas no Brasil, que pretendia suspender propaganda veiculada na página do Senado, na internet. A advogada Angela Cignachi alegou ao TSE que a propaganda é irregular por favorecer a Frente adversária Por Um Brasil Sem Armas, a favor da proibição, no referendo do próximo dia 23. A Frente pediu também a igualdade de tratamento na veiculação de propaganda no jornal e na rádio do Senado. O ministro José Delgado determinou, em despacho, que a representação seja encaminhada para parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral. Logo após o pedido será submetido a julgamento do plenário do Tribunal. As informações são do site do TSE.’



Consultor Jurídico


‘Defensores do sim não conseguem barrar revista Veja ‘, copyright Revista Consultor Jurídico (www.conjur.com.br, 3/10/2005


‘A edição da revista Veja desta semana, que defende ostensivamente o comércio legal de armas de fogo, continuará a ser veiculada. A Frente Parlamentar por Um Brasil Sem Armas não conseguiu retirar a revista das bancas.


O ministro José Delgado, do Tribunal Superior Eleitoral, negou liminar pedida pela frente alegando que ‘o direito de informar não se confunde com o de propaganda’. As informações são da Agência Estado.


A Frente Parlamentar alegou que o espaço ocupado pela reportagem viola resolução do TSE e que a matéria favorece a Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa, que defende a venda de armas.


A Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa também tentou barrar propaganda veiculada na página do Senado na internet. Também pediu a proibição da novela Bang Bang, que a seu ver, transmite uma idéia negativa sobre o comércio de armas. A frente do não fez também uma representação contra a publicidade e a reportagem de capa da revista Trip sobre o comércio de armas. Todas as demandas foram rejeitadas.’



FSP vs. SARNEY


Marco Antonio Villa


‘A crise política e o coronelismo ‘, copyright Folha de S. Paulo, 4/10/2005


‘A República vive a crise política mais grave dos últimos 40 anos. Se a crise tem múltiplas facetas, uma delas se deve à permanência no Congresso Nacional do lobby coronelístico. O poder dos oligarcas mantém a República ‘sub judice’. Levou à formação de uma estrutura estatal petrificada, imune às mudanças, imobilizando os governos e fraudando a vontade dos eleitores. Como comandam politicamente boa parte do Congresso Nacional, entra governo, sai governo, e os oligarcas continuam dando as cartas.


Um caso exemplar de oligarquia com destacada presença nacional é o da família Sarney, no Estado do Maranhão. Neste mês, completam-se 40 anos da eleição de José Sarney para o governo estadual. O jovem governador, então com 35 anos de idade, representava a modernidade; contudo acabou criando uma máquina política tão eficaz que permitiu se manter por quatro decênios no poder do seu Estado -no sentido mais lato da expressão. Desde então, nenhum governador foi eleito sem que tivesse o ‘nihil obstat’ de José Ribamar Costa. E se, no exercício do cargo, o governador eleito rompe com o padrinho, na próxima eleição a família Sarney retoma o controle político.


Domínio tão longevo é caso único na história brasileira. Diversamente de outros oligarcas, os Sarneys são politicamente plurais. O pai é peemedebista, a filha é pefelista e o filho é verde. Se os filhos são eleitos pelo Maranhão, o pai é representante do Amapá, apesar de não ter domicílio naquele Estado. Se, na esfera federal, o clã representa o papel de defensor das instituições democráticas, na província exerce o poder total, avassalador, sem ceder o menor espaço à oposição, no estilo dos mandões locais. Na definição de Euclides da Cunha, são ‘os senhores do baraço e cutelo’.


O historiador francês Lucien Febvre escreveu o clássico ‘O Problema da Descrença no Século 16: a Religião de Rabelais’. Analisou cuidadosamente o domínio ideológico da Igreja Católica na Europa Ocidental: ‘O nascimento, a morte. Entre esses dois limites, tudo o que o homem realiza, vivendo normalmente, fica com a marca da religião’. Se Febvre vivesse no Maranhão, substituiria a religião pela família Sarney.


O maranhense, desde o nascimento, toma conhecimento da existência deles. Em São Luís, a capital, há a maternidade Marly Sarney. Para residir, pode escolher os bairros Sarney, Roseana Sarney, Dona Kiola (mãe de Sarney) ou Sarney Filho. Quando for entrar na escola, pode escolher os colégios Roseana Sarney, Marly Sarney, José Sarney, Sarney Neto ou Fernando Sarney. Para realizar um trabalho escolar, irá procurar a biblioteca José Sarney e, se quiser alguma informação sobre as contas públicas, pode se dirigir à sede do Tribunal de Contas Roseana Sarney Murad. Nas férias, caso queira conhecer outra cidade do Estado, pode se encaminhar à rodoviária Kiola Sarney, seguindo, é claro, pela avenida José Sarney. Ao tomar um ônibus para sair da bela ilha de São Luís, tem de atravessar a ponte José Sarney.


Ele pode visitar, no interior do Estado, o município de Presidente Sarney, de pouco mais de 13 mil habitantes, segundo o IBGE. A cidade é um bom e triste exemplo do domínio oligárquico: 5% dos domicílios têm esgoto sanitário e 0,6%, água encanada; 38% dos habitantes acima de 15 anos são analfabetos (no Brasil, são 13%). O rendimento médio da população é de R$ 159. No ranking do IDH dos municípios brasileiros, a cidade está em 5.268º lugar.


Nestes 40 anos, o Maranhão, que já era um Estado pobre em 1965, transformou-se na vanguarda do atraso. Dos Estados brasileiros, é o que tem os piores indicadores sociais. Vivem abaixo da linha da pobreza dois terços da população. Todavia, se os recursos são escassos para a educação, saúde ou o saneamento básico, são fartos quando pagam obras não realizadas, como a estrada ligando os municípios de Arame a Paulo Ramos. Os 133 quilômetros nunca saíram do papel, mas o pagamento foi efetuado. As ‘construtoras’ receberam US$ 33 milhões, apesar dos insistentes protestos da oposição local. Com certeza, a estrada mereceria um romance que poderia ser escrito por algum acadêmico local, seguindo o realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez.


Romper o poder coronelístico por dentro, ou seja, na própria província, é tarefa quase impossível. Os coronéis controlam o Estado e seus braços repressivos. As apurações das eleições são, no mínimo, duvidosas. Apelar para o Poder Judiciário? Parentes dominam a Justiça. Optar pelos meios de comunicação? No Maranhão, os Sarneys têm a concessão -direta ou indireta- de mais de duas dúzias de emissoras de rádio e TV, além de vários jornais.


A única saída é destruir a fonte do seu poder: as relações privilegiadas que o clã mantém com a União. É de lá que emanam os recursos e o poder que permitem segregar da cidadania milhões de brasileiros. O fim do coronelismo é uma espécie de etapa necessária da nossa revolução burguesa, pois poderemos ter um Congresso Nacional mais representativo e relações efetivamente republicanas entre o governo da União e os Estados federados.


Marco Antonio Villa, 49, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de, entre outras obras, ‘Vida e Morte no Sertão: História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20’ (Ática).’



Painel do Leitor, FSP


‘Maranhão ‘, copyright Folha de S. Paulo, 5/10/2005


‘‘Lamento profundamente que um dos espaços mais nobres deste jornal, a seção ‘Tendências/Debates’, tenha acolhido ontem artigo do senhor Marco Antonio Villa, no qual, em vez de discutir idéias ou propostas, segundo o espírito dessa página, faz um verdadeiro libelo, desrespeitoso e agressivo, contra meu pai, o senador e ex-presidente da República José Sarney, que, no momento, está ausente do país. Com o pretexto de discutir tema tão complexo como o sugerido pelo título (‘A crise política e o coronelismo’), o autor simplesmente ataca José Sarney, que governou o Maranhão de 1965 a 1970, ignorando a sua contribuição para a consolidação democrática e o seu papel em defesa das instituições no país. O autor do artigo está a serviço de interesses político-partidários, uma vez que é fortemente vinculado ao PSDB. Não por acaso, a sua coleção de livros ‘Sociedade e História do Brasil’ é financiada pelo Instituto Teotônio Vilela, órgão do PSDB, dirigido pelo deputado federal Sebastião Madeira, nosso adversário político no Maranhão.’ José Sarney Filho, deputado federal, líder do PV (Brasília, DF)’