Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Renato Galeno

‘Em cinco dias, 155 mil pessoas participaram de mais de 3.500 oficinas e reuniões durante o Fórum Social Mundial (FSM), semana passada, em Porto Alegre, a alternativa criada por movimentos sociais de todo o planeta para se contrapor às idéias do Fórum Econômico Mundial. Com o crescimento da estrutura do FSM, como decidir qual o rumo que ele deve tomar para a conquista de um novo mundo possível, frase símbolo do encontro? Deixar discussões intermináveis de lado e partir para a ação, realizando fóruns menores e aumentando ações concretas? Ou manter a riqueza da diversidade de opiniões e tentar mudar a realidade com pequenas mas contundentes ações?

Para ouvir diferentes opiniões sobre o presente e o futuro do FSM, O GLOBO e a Editora Record reuniram ontem no auditório do jornal expoentes do encontro, como parte da série Encontros O GLOBO. Participaram do debate, que teve como mediador o colunista Luiz Garcia, o escritor paquistanês Tariq Ali, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos e três brasileiros, o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, o padre Ricardo Rezende Figueira e o jornalista Flávio Tavares.

Tariq Ali afirma que FSM deve se tornar mais concreto

A principal divisão do debate se deu entre a corrente que defende que o FSM deve se tornar ‘mais concreto’ e que é preciso tomar o poder para promover as mudanças e quem prefere reuniões descentralizadas e distância de governos, pelo menos como estabelecidos hoje.

Ali propôs a realização de fóruns continentais a cada ano para ‘discutir alternativas concretas’ e, depois, um encontro internacional a cada cinco anos para reunir as informações. E criticou o fato de o FSM ser normalmente hostil a partidos políticos.

— Há um debate atual entre os que afirmam que não é possível mudar o mundo sem tomar o poder e aqueles que acreditam que é possível. Na minha opinião, as pessoas estão percebendo que não é possível fazer qualquer coisa a não ser quem esteja no poder queira fazer reformas, mudanças estruturais.

Ele citou como exemplo o movimento zapatista.

— A marcha deles até a Cidade do México foi muito legal, muito emocionante, mas não mudou coisa alguma.

O sociólogo Boaventura de Souza Santos discordou. Segundo ele, a estratégia arriscada de tornar o FSM de 2005 ainda mais fragmentado do que os anteriores trouxe mais eficácia. Para ele, a divisão do fórum em 11 temas fez com que grupos se juntassem, discutissem e descobrissem formas de ação.

— Houve uma aglutinação, obrigou-se os movimentos a se juntarem para criar ações concretas.

Mesmo reconhecendo que não houve um êxito total na estratégia, citou exemplos de ações que foram acordadas: uma ação mundial para o perdão da dívida externa dos países pobres e uma campanha contra a privatização da água. Para ele, grande parte das ações do FSM não são visíveis, pois muitas lutas que ganham os holofotes depois de anos começaram em reuniões no FSM.

Porto-Gonçalves fala de falência do eurocentrismo

Ele disse que o os movimentos sociais ‘precisam do poder para abolir este poder.’

Porto-Gonçalves ressaltou as duas visões distintas de Ali e Boaventura, chamando-as de ‘tensão criativa’, que, segundo ele, aumentou com o novo militarismo americano (um dos poucos pontos pacíficos do debate). Ele utilizou exemplos de movimentos sociais equatorianos que já tomaram o poder, pelo menos no nível municipal.

Porém, criticou a idéia de que é preciso união para mudar o mundo.

— Desde pequeno aprendi que a união faz a força. Mas depois descobri que este era o símbolo fascista — disse ele, descrevendo o símbolo formado por gravetos frágeis que unidos se tornam fortes, mas apenas quando amarrados por um laço, ‘uma força externa.’ — Este é o desafio do Fórum: construir uma unidade que não seja externa.

Para ele, estaria ocorrendo hoje uma ‘falência do eurocentrismo’ que indica uma só forma de organização do Estado:

— Por que todo lugar tem que ter Executivo, Legislativo e Judiciário? A gente já experimentou como uma autoridade indígena elege suas autoridades? Será que essa diversidade que é o planeta não inventou diferentes formas de fazer política?

O padre Ricardo Rezende frisou a luta contra a escravidão contemporânea, sua área de trabalho, dizendo que a experiência do FSM foi importante. Ele citou o exemplo de grupos maranhenses, que para explicar o problema utilizam o teatro, numa forma que surpreendeu grupos como a Organização Internacional do Trabalho.

O jornalista Flávio Tavares ressaltou que a principal área de luta dos movimentos sociais deveria ser a sociedade de consumo, que, segundo ele, está deteriorando os valores éticos e morais das pessoas.’



Zuenir Ventura

‘Lula lá e Lula cá’, copyright O Globo, 2/2/05

‘À primeira vista, pode parecer má vontade da mídia — e às vezes é mesmo — mas o fato é que Lula se encontra numa situação em que apanha pelo sim e pelo não. Apanha por ter sido vaiado no Fórum Social Mundial, onde foi tratado como dissidente, ou melhor, como traidor, e por ter sido aplaudido no Fórum Econômico Mundial, onde teve recepção de estrela.

Em Porto Alegre, foi acusado de reagir com intolerância aos protestos dos ‘filhos rebeldes do PT’ que não queriam ‘ouvir a verdade’. Em Davos, teria se portado com soberba e deslumbramento, cantando vitória pelos apoios que conquistou. Lula estava mal acostumado. Receber uma vaia de seus aliados tradicionais onde era um herói soou tão estranho quanto ser aplaudido por seus históricos inimigos de classe na Meca do neoliberalismo.

Em um caso, pelo menos, entende-se sua reação. Pode não ter mudado sozinho a agenda de Davos, como ele próprio e seu fã, o roqueiro Bono Vox, alardearam. Na verdade, os ricos não se interessaram pelo tema por humanitarismo ou porque foram induzidos por alguém, mas sim porque descobriram que a miséria é um mau negócio. É inegável, porém, que Lula venceu a desconfiança internacional e contribuiu decisivamente para que o fórum econômico tenha se convertido num quase fórum social.

Há dois anos, o todo-poderoso milionário Bill Gates não seria esnobado por Lula, que lhe recusou encontro, assim como certamente não se veria Tony Blair anunciando a doação de US$ 85 milhões para o combate à malária na África ou Jacques Chirac defendendo a criação de uma taxa sobre transação internacional para a pobreza.

Seria implicância negar o sucesso que o carisma de Lula obteve em Davos, incluindo a tietagem de celebridades e a simpatia dos empresários, por mais que haja marketing nisso — e onde não há? Não é por aí. Digamos que ele tenha marcado um grande tento, e isso é bom para a auto-estima nacional e também para as vendas. O problema não é esse, mas a possibilidade de acontecer com o governo o que acontece com nosso futebol, que só é bom lá fora. Para ver os melhores craques brasileiros jogando, é preciso ligar a televisão em campeonato da Espanha ou da Itália.

Essa é mais uma das muitas ambivalências de um governo meio esquizofrênico. A economia vai bem e o povo vai mal; os juros lá em cima e o crescimento cá embaixo; as finanças em festa e a indústria cheia de queixas; Lula lá, um, Lula cá, outro. Se ele se empolgar com essa vitória na Suíça e não melhorar o desempenho aqui dentro, corre o risco de acabar fazendo um bom governo. Para o exterior.’



Demétrio Magnoli

‘Os fetichistas’, copyright Folha de S. Paulo, 3/2/05

‘Lula qualificou o Fórum Social Mundial de ‘feira de produtos ideológicos’. A cúpula de Porto Alegre reagiu. Pela primeira vez, emitiu uma declaração política final, intitulada ‘Manifesto de Porto Alegre’. O documento não é assinado pelo próprio Fórum Social, que conserva para consumo público a ficção de que ‘não tem cúpula nem direção’, nas palavras de Francisco Whitaker, um de seus dirigentes. Mas os signatários do manifesto -Bernard Cassen, Frei Betto, Emir Sader, Ignácio Ramonet, José Saramago e Eduardo Galeano, entre outros- expressam, de fato, as posições majoritárias da cúpula.

A última das doze exigências do manifesto é a reforma da ONU, acompanhada pela transferência da sua sede ‘de Nova York para outro país, preferencialmente do Sul, (…) caso persistam as violações do direito internacional por parte dos EUA’. A antepenúltima é o desmantelamento das bases militares estrangeiras em todos os países, ‘salvo quando estejam sob mandato expresso da ONU’.

Immanuel Kant, no ‘Paz Perpétua’, de 1795, formulou a idéia de um governo mundial. O ‘segundo artigo definitivo para a paz perpétua’ propunha a formação de uma ‘liga da paz’ (foedus pacificum), que se distinguiria de um tratado de paz (pactum pacis) por sua natureza permanente e pelo desígnio de extinguir definitivamente a guerra. No quadro dessa ‘federação de nações soberanas’, todos os conflitos entre Estados seriam resolvidos pela negociação e arbitragem legal.

A Liga das Nações, criada em 1919, inspirou-se no idealismo kantiano. Contudo seus patrocinadores não eram filósofos, mas estadistas, e a idéia do governo mundial foi limada sob o aço do realismo. Assim, no lugar da federação de nações, surgiu um diretório de grandes potências, representado pelo Conselho da Liga. A ONU é fruto desse mesmo modelo. Durante a Segunda Guerra Mundial, Franklin Roosevelt imaginou o futuro Conselho de Segurança como um diretório dos ‘Quatro Policiais’. Na ONU, como na sua antecessora, o que vale é o poder, não a arbitragem legal.

O ‘Manifesto de Porto Alegre’ é um exercício fetichista que, ignorando a história, projeta na ONU a imagem virtuosa do governo mundial kantiano. Seus signatários, intelectuais de esquerda que um dia confiaram aos povos a missão de mudar o mundo, voltam-se agora para a ONU em busca da redenção da humanidade. Engraçado é que, ao mesmo tempo, critiquem as eleições no Iraque ocupado e a operação militar em curso no Haiti, que contam com a aprovação santificadora da ONU. E que, repercutindo inconscientemente um desejo dos neoconservadores americanos, sugiram uma ONU sem os EUA, o que equivale à virtual dissolução da ONU.

A ‘feira de produtos ideológicos’ esgotou sua capacidade de gerar imposturas e, para continuar servindo aos propósitos de seus promotores, deve encontrar um lugar respeitável na política mundial. Lula engajou-se na construção de uma ponte entre Porto Alegre e Davos. O Fórum Social está destinado a exercer a função de caixa de ressonância do ‘combate mundial contra a fome’, uma bandeira comum a Lula, à ONU e a Davos. A mudança já começou: em 2007 o Fórum Social acontece na África. Um outro Fórum é possível.’



Luis Fernando Veríssimo

‘Nós, os bananas’, copyright O Globo, 3/2/05

‘Você sabia que duas empresas dominam todo o comércio de bananas no mundo? Que trinta empresas controlam um terço de todo o processamento de comida, cinco controlam 75% do comércio de grãos e seis controlam 75% do mercado de pesticidas do planeta? Que 84% do comércio de chá do mundo está nas mãos de apenas três empresas e só no México 40% do varejo de comida pertencem à americana Wal-Mart? Isso sem falar na Monsanto, que sozinha controla mais de 90% do mercado internacional de sementes geneticamente modificadas.

Esta concentração de poder sobre a produção e o consumo globais de alimento é resultado direto das políticas de liberalização do comércio no setor impostas pelos países ricos, típicas do que é discutido e decidido quando eles se reúnem em Davos. O relatório expondo os perigos do domínio crescente de poucos conglomerados não só sobre o mercado mas sobre o destino de populações inteiras, com seu poder de liquidar pequenos produtores e determinar preços e regras de produção que lhes convêm, foi publicado pela ActionAid e é típico do que se discute seriamente no Fórum Social Mundial. E não se trata só de birra antibigbizines. O efeito maior da monopolização trazida pela liberalização, piada cruel, é que aumenta a fome e a miséria em países que não têm como enfrentar gigantes interessados apenas no lucro máximo e evitar a desvalorização do que produzem, como vem acontecendo, segundo o relatório, com o chá, o café, o leite, o trigo — e a banana.

Outra leitura recomendada para quem ainda acha melhor confiar em crises de consciência dos fatiotas em Davos do que ouvir esses esquisitos do Fórum Social é o que escreveu o Rubem Ricupero — que em nada se parece com o Hugo Chávez — no caderno de Economia da ‘Folha’ neste domingo, sobre a história da nossa pauperização pelo capital predatório lá de cima. Uma assustadora história de vampiros e vítimas indefesas.

Os mundos de Davos e do Fórum Social podem conviver, sim. Mas será sempre eles como comerciantes de bananas e nós como bananas.’