Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Renato Rovai

‘Há algum tempo a revista Veja vem se esmerando em publicar pseudo-reportagens que desancam personalidades públicas, movimentos sociais e partidos políticos que tenham qualquer viés progressista e de esquerda. Para isso, vale tudo. Porque isso é liberdade de imprensa, sustentam seus editores.


Na edição (1.925) desta semana, Veja decidiu fulanizar o debate a respeito do desarmamento fazendo de sua capa um cartaz pelo voto no ‘não’.


Entre os ‘sensacionais’ argumentos para defender tal tese, o panfleto semanal dos Civita diz que ‘Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, listou o desarmamento da população entre as providências essenciais para garantir o controle totalitário’ e que ‘Hitler desarmou os alemães e os povos dos países ocupados, mas distribuiu armas entre milícias fiéis ao regime’. Ainda: ‘Nas zonas rurais brasileiras, longe dos postos policiais, [as armas] servem para sitiantes e fazendeiros defenderem suas propriedades de assaltos, invasões do MST e dos ataques de animais predatórios a seus rebanhos e criações. É por isso, com certeza, que os sem-terra apóiam o desarmamento’. Evidente que não vale a pena polemizar com argumentos de impressionante nível, mas por outro lado, é preciso começar a fazer algo para combater esse tipo de jornalismo farsante e sangue azul de Veja.


Quem perde credibilidade com isso não é só o veículo. Ao aceitar silenciosamente que o senhorio use a seu bel-prazer um título, desconsiderando os princípios legítimos que permitem recortes de posicionamento à publicação, mas não autorizam a invenção pura e simples de aspas ou teses, quem perde mais é o profissional jornalista.


É por isso que me darei ao trabalho de tratar de dois exemplos desta edição, deixando de lado a aberração maior que foi a capa pelo não ao desarmamento.


Quando um Otávio Cabral compara membros do governo à turma do Sítio do Pica Pau Amarelo e escreve assim: ‘o governo vendeu a mãe, o pai e a mulher no primeiro turno’, descreveu um dos coordenadores da campanha de Rebelo, num surto de franqueza. ‘No segundo turno, ofereceu a irmã mais nova.’ Não só ele se demoraliza. Ridicularizamo-nos todos. Se esse Otávio Cabral tem coragem de assinar uma matéria cujo enredo é ridicularizar personalidades públicas sem o menor constrangimento e direito à defesa para as partes envolvidas, por que não publicaria o nome de um ‘dos coordenadores da campanha de Rebelo’. Explico: porque inventou a frase para dar suporte ao texto.


Da mesma forma como faz Diogo Mainardi, na mesma edição. Ele conta sua viagem a Brasília e narra a cobertura da eleição da presidência da Câmara e, ao fim, registra: ‘Aldo Rebelo acaba de ser eleito. Os mensalistas atiram-no para o alto. Todos os deputados com quem falei hoje – foram mais de trinta – o consideram um perfeito idiota. Por isso estão tão felizes. Por isso não o deixam se espatifar no chão’.


Por que a covardia de Mainardi não lhe permite dar nome àqueles que consideram Aldo um perfeito idiota? Porque mente. Ele não só não ouviu isso de trinta deputados, vou além, nem falou com quinze enquanto por lá esteve. Por motivos óbvios, eu e tantos outros colegas jornalistas, também estávamos em Brasília no dia das eleições da Câmara. Espero que outros também o digam. Vi esse Mainardi como um ratinho, encostado no fundo do plenário, por horas, falando baixinho e olhando pro chão. Parecia ter medo que alguém lhe fosse cobrar honestidade ou coisa do gênero. Algo ridículo. Deu umas zanzadas pelo salão verde e voltou para o seu esconderijo. Depois dessa sensacional ‘missão jornalística’, foi para o seu laptop e ‘corajosamente’ escreveu aquilo que o chefe adoraria ler. E ofendeu a quem o chefe gostaria de ofender. Sem ter compromisso com o real, só com sua corajosa missão de agradar a quem lhe garante a coluna.


Esse jornalismo farsante e sangue-azul de Veja não atenta apenas contra os valores da democracia e da ética profissional. Ele ainda abre o caminho para que outros veículos passem a fazer o mesmo e expõe ao ridículo a imprensa enquanto instituição e o jornalismo como profissão. Os tiros do padrão Veja de jornalismo estão sendo dados enquanto o silêncio acomodado da maior parte dos jornalistas segue impávido. Parece que é assim mesmo, que faz parte do jogo. Não é. Não se pode deixar que seja. Os profissionais mais jovens ainda merecem um desconto. Os mais experientes, calados, são cúmplices. Estão ajudando a desmoralizar a profissão. E pagaremos todos por isso.’




Veja


‘Jornalismo sem fronteiras’, copyright Veja, 04/10/05


‘A capa de VEJA que desvendou a máfia do apito repercutiu em dezenas de países


Na história de VEJA, foram muitas as reportagens que alcançaram repercussão internacional. Entre elas, estão as que detonaram a crise política ora em curso. Na semana passada, a revista voltou a ser destaque na imprensa internacional. Uma entrevista do diretor de redação Eurípedes Alcântara com o ex-presidente americano Bill Clinton foi reproduzida no jornal inglês The Independent, no espanhol El País e nos americanos Los Angeles Times e New York Daily News. A reportagem sobre a máfia do apito, da editora Thaís Oyama e do repórter André Rizek, ganhou o mundo por meio da internet, da televisão e das páginas de publicações importantes da América do Sul, Ásia, Europa e dos Estados Unidos. Os argentinos Clarín e La Nacion, o espanhol El País e o americano The New York Times foram alguns dos diários que reproduziram a história sobre a quadrilha que fraudava resultados de jogos do Campeonato Brasileiro e do Paulista, principalmente, para lucrar com apostas. A repercussão internacional obtida pelas reportagens de VEJA mostra que, quando um trabalho é bem feito e tem relevância, não existem fronteiras para o seu reconhecimento. Isso vale tanto para o jornalismo como para qualquer outra atividade. Excelência, rigor e originalidade são as chaves para conquistar terreno na era da globalização.


No caso específico da reportagem sobre a máfia do apito, há que ressaltar ainda que foi a primeira vez que um escândalo futebolístico ganhou contornos tão precisos. Recentemente, duas CPIs sobre denúncias de corrupção no futebol brasileiro – uma na Câmara e outra no Senado – não deram em nada, por falta de foco e objetividade. Mas uma única reportagem bem formatada bastou para desbaratar um esquema que ameaçava a grande paixão nacional.’




30 ANOS SEM VLADO
Mônica Bergamo


‘‘Já dei mil entrevistas sobre o Vlado’’, copyright Folha de S. Paulo, 3/10/05


‘Paulo Egydio Martins era governador de São Paulo quando o jornalista Vladimir Herzog foi torturado e morto, em 1975, nas dependências do DOI-Codi. O ex-governador já deu várias entrevistas sobre o assunto, mas decidiu se calar. Ele recusou o convite do cineasta e secretário estadual de Cultura, João Batista de Andrade, para dar um depoimento que seria incluído no filme ‘Vlado – 30 Anos Depois’, em cartaz nos cinemas. Numa rápida conversa com a coluna, Egydio expôs seus motivos:


Folha – Por que o senhor não quis dar depoimento?


Paulo Egydio Martins – Eu já dei umas mil entrevistas sobre o Vlado. Primeiro foi uma entrevista longa, para o Paulo Markun [autor do livro ‘Vlado’]. E então falei para todo mundo. Ele [João Carlos Batista] queria que eu repetisse tudo. É uma repetição muito enfadonha. Eu não posso passar 30 anos falando do Vlado.


Folha – É que o senhor falou em outras oportunidades.


Paulo Egydio – Então, meu Deus do céu… Passa a ser um problema classista. Os jornalistas querem fazer um mártir. Ele [Vlado] é de fato um mártir. Mas e o Manoel Fiel Filho [operário torturado e morto em 1976 nas dependências do DOI-Codi]? Por que não me entrevistam sobre ele? E os PMs que foram torturados? E o Rodolfo Konder [jornalista que também foi torturado]? Tem uma porção de outros, né? Trinta anos só falando sobre o Vlado, eu acho um exagero. Não quero desmerecer nada. Mas eu fiquei cheio e não quero mais falar.


Folha – É que a data é simbólica. São 30 anos da morte dele.


Paulo Egydio – Eu falei duas horas para a TV Globo e só colocaram 30 segundos no ar. O único governador que tem retrato na sala de imprensa do Palácio dos Bandeirantes [sede do governo estadual de SP] sou eu. Isso ninguém fala. Sempre conversei de maneira absolutamente aberta e transparente com os jornalistas. Mas eu te confesso que está na hora de mudarmos de assunto.’




Marco Antonio Rocha


‘Vlado, democracia, PT, economia…’, copyright O Estado de S. Paulo, 03/10/05


‘Há exatos 30 anos, neste mês que se inicia, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado numa masmorra digna da Idade Média, instalada pela ditadura militar aqui, em São Paulo, na esquina das Ruas Thomás Carvalhal e Tutóia. Naquele antro de barbárie, uma súcia de vagabundos, desempregados, ferrabrases de subúrbio e indisfarçáveis facínoras, estipendiados pelas contribuições de empresários fascistas à sinistra Operação Bandeirantes (Oban), havia sido cooptada para o trabalho macabro de torturar cidadãos brasileiros e arrancar deles não o que porventura tivessem para dizer, mas sim o que os chefes do bando queriam que dissessem.


A tarefa transcorria impune, sob o olhar cúmplice de alguns psicopatas que, na época, trajavam – deploravelmente para a gloriosa História das nossas Forças Armadas – elegantes fardas de oficiais – majores e capitães. Seus superiores haviam decidido que aquela era a melhor estratégia para blindar o Brasil contra o comunismo internacional (já em plena decadência, então).


No dia 25 de outubro de 1975, um sábado, Herzog tombou vítima da estupidez ideológica herdada da guerra fria, já velhusca, mas exacerbada sete anos antes no Brasil, em 13 de dezembro de 1968, pelo Ato Institucional nº 5, que uma chusma de servis-civis nos cargos de ministros de Estado assinara.


Vlado tombou, sim, mas acendeu uma vasta onda de indignação popular. O profundo silêncio de milhares de pessoas que acorreram ao culto ecumênico na Catedral da Sé teve a eloqüência de um ensurdecedor grito de ‘BASTA!’, que até hoje ecoa nos ouvidos de quem viveu aqueles momentos.


Os cães de guarda do fascismo de então não atinaram com o que haviam desencadeado, pois, apenas três meses depois, matavam a pancadas, no mesmo local, sob o mesmo pretexto, o operário Manoel Fiel Filho e – requinte da brutalidade – soltavam para a opinião pública a mesma cínica explicação de que ele havia se suicidado.


Fiel e Vlado partiram ‘num rabo de foguete’, deixando para trás o pranto de ‘Marias e Clarices’, como Aldyr Blanc resumiu na sua alegoria musical daquele momento traumático da vida brasileira e que, ainda hoje, a voz potente de Elis Regina privilegia em inúmeros programas de rádio e TV. Mas ambos deixaram também para trás o grito que desaguaria, dez anos mais tarde, não sem muitos novos tropeços e dificuldades, na democracia que temos hoje.


E essa democracia que temos hoje é, sem dúvida, em boa parte e medida, obra também do Partido dos Trabalhadores – o PT. Não exclusiva, como proclamou uma equivocada professora. Quando Vlado e Fiel morreram, o PT não existia. Quando, antes deles, muitos outros brasileiros morreram, por terem aderido em desespero de causa e equivocadamente à luta armada; quando Fernando Gabeira e Zé Dirceu se exilaram do Brasil; quando Ulysses Guimarães e Teotônio Vilella pregavam a redemocratização pelo Brasil inteiro – o PT não existia.


Mas, cinco anos depois, a partir de 1980, teve, sim, grande e importante participação na redemocratização, até por servir de canal democrático legal para que ex-guerrilheiros escoassem suas vocações políticas. E continua a ter, por sua pregação, por sua programação, por muitos dos seus dedicados militantes. Nenhuma democracia pode merecer esse nome se nela não há um ou mais partidos políticos dedicados à defesa e promoção das causas do povo, das causas que num sentido geral são chamadas ‘de esquerda’ e que, inegavelmente, são de elevado espírito humanístico.


A grande desgraça ideológica trazida pelo chamado comunismo real – na prática, o de Stalin – foi a de ter-se apropriado do ‘esquerdismo’ em escala mundial. A postulação ‘esquerdista’ em política existe desde a Grécia clássica e consiste basicamente em contrapor os pleitos e anseios da grande massa da população ao conforto e ao comodismo dos seus segmentos dirigentes; mas passou a ser confundida, principalmente após a 2ª Guerra Mundial e por influência da política das grandes potências, com o comunismo soviético, pura e simplesmente. E isso dos dois lados, à esquerda e à direita.


O PT herdou essa confusão. Grande parte dos seus militantes adere ideologicamente ao comunismo na presunção de que a missão ‘da esquerda’ é a de destruir o capitalismo, equívoco incutido nas ‘esquerdas’ mundiais pela União Soviética, cujo objetivo prático imediato, como potência militar, era destruir, ou pelo menos neutralizar, o que a ameaçava, ou seja, a outra potência militar, os EUA.


Mas a implementação das bandeiras de ‘esquerda’ não exige a destruição do ‘capitalismo’ e, certamente, não impõe a implantação de uma coisa que nunca existiu – o ‘comunismo’. A ilusão de tentar fazer isso, pela força, quando se a tem, resultou em ditadura brutal e em atraso econômico na antiga União Soviética, na China e, hoje, em Cuba.


A crença de que o ‘esquerdismo’ exige uma economia ‘de esquerda’, além de se constituir numa charada indecifrável, é também uma armadilha onde inúmeros esquerdistas honrados e honestos se metem. Os esforços que despendem para inventar essa nova economia, ou para tentar pô-la em execução quando estão no poder, são comoventes… e sempre fracassados, pois não há uma maneira capitalista, ou uma maneira socialista, ou uma maneira comunista de conduzir a economia. Só há uma maneira, a maneira econômica – que depende da competência dos condutores e da chamada conjuntura dos mercados (e sempre dessas duas coisas!) para melhorar, ou não, a vida das grandes massas. O resto é ilusão de noiva, ou ‘doença infantil’, diria Lenin.


Quando um esquerdista, do PT ou de qualquer partido, se envolve no debate sobre como deve ser a economia, perde o tempo e a discussão. O esquerdismo não é uma proposta para a economia, é uma batalha pela dignidade humana. Muito maior, portanto. E o que o esquerdista tem a fazer é vigiar para que os condutores da economia ajam com honradez e competência, dentro das regras que a presidem. Quando se propõem a ‘mudar tudo isso que está aí’, como freqüentemente fazem, não mudam nada ou mudam para pior.


No PT esse equívoco teve conseqüências danosas. Enquanto sua militância se distraía na luta contra o FMI, contra a Alca, contra o neoliberalismo, contra o Consenso de Washington, contra o latifúndio, contra a política econômica do Palocci e outros moinhos de vento econômicos, os donos da legenda batalhavam sorrateiramente em benefício de si próprios e da ampliação do seu poder pessoal – produzindo um descomunal estrago na grande batalha pela dignidade humana. Marco Antonio Rocha é jornalista’