Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ronald de Carvalho

‘‘A manhã daquele 15 de dezembro de 1989 estava mais amena do que os tórridos dias de fim de primavera no Rio de Janeiro. O sol já ia alto quando acordei naquela sexta-feira. O debate entre Fernando Collor e Lula, na véspera, varara a madrugada e o cansaço me fez perder a hora.

Quando cheguei à TV Globo, o compacto do debate para o Jornal Hoje já tinha sido feito.Wianey Pinheiro, o Pinheirinho, modesto na estatura e robusto em experiência, já havia editado o material bruto. Disciplinado, mostrou-me a edição.

Pinheirinho é uma dessas pessoas que deixam seu comportamento profissional ser contaminado pela paixão política. A edição do debate para o Jornal Hoje estava maquiada para amenizar o fraco desempenho de Lula. O debate da noite anterior havia sido um massacre. Collor, do alto de sua destreza na farsa, triturou o candidato do PT e com grosseira ironia expôs sua fragilidade no campo das idéias e no domínio da palavra.

O sorteio que determinou as regras do debate estabeleceu quem o abriria e quem o encerraria. Coube a Lula dar a última palavra que ficaria como a declaração final dos candidatos na véspera da eleição. Era uma oportunidade de ouro que Lula jogou pela janela.

‘Fui chamado a debater com uma pessoa que diz que é caçador de marajás. Descobri que meu concorrente não passa de um caçador de maracujá’, disse então.

Com esse humor tosco, Lula encerrou sua campanha e ofereceu sua última palavra àqueles que votariam no dia seguinte para escolher, pelo voto, depois de décadas, o Presidente da República.

O uso das aspas é impreciso na frase acima pois não tenho gravado ipsis verbis as exatas palavras de Lula. O que interessa é que a imaginosa metáfora do caçador de maracujá é absolutamente verdadeira.

A edição de Pinheirinho não refletia o flagrante desequilíbrio entre os candidatos. Não conseguia destacar os pontos baixos de Collor. Mas com o esmero de um militante fiel, ele garimpou o que de menos ridículo foi dito por Lula. Enfim, uma edição sem sabor, odor, talento e brilho.

Perguntei a Pinheiro se ele já havia submetido o VT à Alice-Maria, Diretora-Executiva de jornalismo. Não pude interferir, pois a resposta foi a de que a edição tinha sido aprovada com louvor e que deveria ir ao ar daquela forma.

Alice é dessas pessoas que a natureza premiou com uma coluna vertebral flexível e um caráter líquido que se adapta facilmente à forma dos recipientes. Presumi que se ela havia aprovado a edição de Pinheirinho era porque alguém a autorizara a fazê-lo.

A edição no Jornal Hoje foi exibida e a história mostrou que havia algum ruído no ar.

Alice imediatamente me chamou e disse que recebera uma opinião de que a edição de Pinheirinho do debate estava parcial e que eu deveria reeditá-la para o Jornal Nacional. Pediu-me equilibro e, sobretudo, o cuidado de refletir o peso exato que cada candidato havia tido no debate.

Fui para a ilha de edição e, na presença de Otávio Tostes e de um editor de imagem que não recordo o nome, comecei o trabalho para o Jornal Nacional. Faz quinze anos que editei o compacto do debate entre Collor e Lula. Faz quinze anos que, todas as vezes que lembro daquele dia, tenho a plena convicção de que repetiria o que fiz, exatamente como foi feito na ilha 4 da Central de Jornalismo da TV Globo. Não mudaria uma imagem, não alteraria nenhuma sonora, não suprimiria um frame sequer.

Diferente do julgamento que as pessoas fazem dos fatos embaçados pelo tempo, não tenho dúvidas de que a edição que executei para o Jornal Nacional estava rigorosamente correta.

Como critério de escolha dos trechos que usaria, utilizei a imagem mental do trabalho de compactação de um jogo de futebol. Estava diante do desafio de resumir, em imagens e sonoras, um Fla-Flu em que o Flamengo goleara o Fluminense por 5×1. Teria que captar os melhores momentos do jogo, as bolas em gol, as jogadas perigosas, os dribles e a catimba.

Tudo deveria ser feito de maneira tão criteriosa que o espectador, que não tivesse visto o espetáculo, pudesse ter a nítida noção de quem perdera o jogo, de quem o ganhara e quais as jogadas que haviam decidido a partida. O compacto do debate deveria mostrar o massacre de um e a indigente postura defensiva do outro.

Faz quinze anos que tenho a absoluta certeza de que aqueles que viram o Jornal Nacional do dia 15 de dezembro de 1989 tiveram o retrato fiel do que havia acontecido na véspera.

Muito tem sido escrito até hoje sobre a edição desse debate. A maioria dos textos reflete o relato apaixonado de quem condena antes de julgar. Mario Sérgio Conti, em seu livro ‘Notícias do Planalto’, afirma ter ouvido mais de uma centena de depoimentos. Dedica-me umas tantas muitas linhas. Lamentavelmente não fui ouvido por ele. Louvo a capacidade mediúnica do autor que, sem me ouvir, reproduz entre aspas longos trechos de diálogos atribuídos a mim.

Conti é um homem honrado. Conti não mente. Seguramente estamos diante de um gênero ficcional de jornalismo que minha incultura e inexperiência profissional não percebem.

Agora detenho-me no livro recém-lançado ‘Notícia Faz História’ onde a TV Globo fala dos 35 anos do Jornal Nacional. Também não fui ouvido, mas no caso dou o benefício da dúvida. Afinal, fiz uma gravação de mais de uma hora para um projeto de memória da TV Globo. Espero que esse depoimento tenha servido de base para minha participação no livro. Entretanto, outras pessoas falaram.

Destaca-se o depoimento de Alice-Maria onde afirma que ‘aquela matéria mudou a história do telejornalismo da Globo’. Aquela matéria seguramente ‘mudou a história da jornalista da Globo’.

A tibieza e indecisão se tornariam marcas do final dessa novela.

Na tarde daquela sexta-feira de 1989, fora o alto comando da Central Globo de Jornalismo, não havia um superior imediato a quem pudesse me reportar. O diretor de telejornais de rede, Alberico Souza Cruz, permanecia em São Paulo desde a véspera. Havia dois dias que não falava com Alberico. Como faltava o superior com quem pudesse dividir responsabilidades, o jeito foi despachar direto com Alice. Sabia que era uma escolha tortuosa e temerária. Por falta de sensibilidade política, Alice-Maria sempre preferiu julgar o material jornalístico pelos adereços da forma do que pela consistência do conteúdo. Mas não havia jeito. Era com a Alice que deveria aprovar a edição do Jornal Nacional.

-Por favor, não quero nem ver. Se você fez, deve estar bem feito. Desce com essa fita e bota no ar. Não vou dar palpite.

Foi assim que Alice autorizou a exibição do compacto do debate entre Collor e Lula.

Surge no livro sobre os 35 anos do Jornal Nacional um depoimento novo. O jornalista Otávio Tostes se contorce em culpa pela edição do debate. Otávio, que até hoje nunca tinha aparecido nessa ciranda, poderia aliviar sua angústia ao se lembrar de que, em todo o episódio, foi apenas um coadjuvante, assim como o tal editor de imagem. Otávio foi um pequeno figurante sem fala no texto da peça.

Diz-se que na edição do debate Collor teve mais tempo do que Lula. Sinceramente não lembro de nenhuma intenção que tenha determinado tal diferença. É possível que na operação de escolha das sonoras possa ter havido algum descompasso entre os tempos.

No momento da edição isso era irrelevante. O que interessava era o conteúdo do que fora dito e não o seu tamanho. Quem faz jornalismo sabe que importância de notícia não se mede pela régua nem pelo cronômetro. Há informações devastadoras que podem estar contidas em cinco linhas ou apenas em uma frase.

Há sempre um instante na vida em que podemos refletir sobre os erros e confessar os fracassos. Tenho a coragem de reconhecer que na edição do compacto cometi deliberadamente um erro. Mudei a fala de Lula no encerramento do debate.

Entre Lula e Collor, não tinha preferências, mas guardava antipatias. Conhecia Fernando Afonso Collor de Mello de outros carnavais e me constrangia ver o massacre que ele impôs a Lula durante o debate. Essa foi a razão do meu pecado. Conscientemente impedi que Lula encerrasse o debate com a ridícula referência ao caçador de maracujá. Substituí a sonora, e a edição que foi ao ar não documentou com exatidão a última mensagem de Lula ao seu eleitorado na véspera da eleição.

O trecho que fazia referência ao caçador de maracujá foi trocado por uma trivialidade qualquer menos banal. O erro jornalístico do editor conferiu um pouco mais de solenidade ao discurso final de Lula.

A partir da noite de sexta-feira, 15 de dezembro de 1989, a vida continuou serena. Nenhuma crítica dos superiores, nenhum motim na redação, nenhuma alteração na rotina da apuração dos votos da eleição. Pinheirinho não cortou os pulsos, Otávio Tostes não se deprimiu, a redação não me hostilizou. Apenas um pranto quebrou o silêncio. Alice-Maria chorou.

Armando Nogueira, a quem a vida empalidece os defeitos e realça as virtudes de poeta e de grande repórter, perguntou quem me autorizara a mudar a edição feita por Wianey Pinheiro para o Jornal Hoje. Quando soube de quem partira a orientação, chamou Alice para conversar.

Assumo inteira responsabilidade por esse relato e pelas verdades ele que contém. Armando Nogueira, Alberico Souza Cruz e a família Marinho não tiveram qualquer participação nos fatos que fizeram ir ao ar no Jornal Nacional o compacto do debate entre Collor e Lula da maneira como o editei. Guardo a certeza de que se voltasse no tempo, faria tudo de novo exatamente como fiz.’ (* Ronald de Carvalho é jornalista e editou o debate entre Collor e Lula em 1989.)’



Mauro Ventura

‘Oito da noite, é hora do Jornal’, copyright O Globo, 1/09/04

‘Um mosquito cismou de entrar na boca do apresentador Marcos Hummel justo na hora em que ele lia as notícias do ‘Jornal Nacional’. Hummel engoliu o inseto e continuou a leitura, como se nada tivesse acontecido. Dois dias depois, em 28 de novembro de 1983, vinha o memorando, assinado por um ainda irritado Luís Edgar de Andrade, então chefe de redação do telejornal: ‘Peço providências para que outros mosquitos, moscas e insetos não entrem no estúdio.’

Os episódios pitorescos, como se vê, têm espaço em ‘Jornal Nacional: a notícia faz história’. Mas nem só de pequenas histórias é feito o livro. No dia 11 de setembro de 2001, uma edição especial com uma hora de duração bateu o recorde de audiência do ano, com a cobertura dos atentados nos Estados Unidos. Mais cedo, às 9h52m, a emissora tinha sido a primeira TV aberta brasileira a mostrar um flash do assunto. Quatro minutos depois, quando se imaginava que o ataque ao World Trade Center havia sido apenas um acidente, o plantão foi encerrado. Irritado, o atual diretor da Central Globo de Jornalismo, Carlos Schroder, mandou retomar a transmissão ao vivo. ‘Não fosse a irritação de Schroder e a sua decisão de mandar voltar o plantão, a Globo deixaria de ter transmitido, ao vivo, o choque do segundo avião contra a outra torre’, lembra no livro Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo.

Do Escândalo Watergate à Guerra do Iraque, a obra refaz toda a trajetória do ‘Jornal Nacional’, iniciada às 19h45m do dia 1 de setembro de 1969, com uma fala de Hilton Gomes: ‘O ‘Jornal Nacional’ da Rede Globo, um serviço de notícias integrando o Brasil novo, inaugura-se neste momento: imagem e som de todo o Brasil.’

No encerramento do programa que viria a ter a maior audiência da história da televisão brasileira, Cid Moreira anunciava o gol número 979 da carreira de Pelé, que garantia a classificação da seleção brasileira para a Copa de 70, e se despedia com uma frase que repetiria cerca de oito mil vezes ao longo dos 27 anos seguintes: ‘Boa noite.’

A saudação foi alterada poucas vezes nos 35 anos de história do ‘Jornal Nacional’. Como quando o jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, foi assassinado por traficantes. William Bonner – atual apresentador, ao lado de Fátima Bernardes – encerrou o telejornal com aplausos em homenagem ao colega. ‘Ao fundo, na redação, toda a equipe de preto, em pé, também aplaudiu’, narra o livro.

‘Jornal Nacional: a notícia faz história’ (Jorge Zahar, R$ 29,50) chega hoje às livrarias com 408 páginas e 420 imagens. O livro, que tem texto final da professora da UFRJ Ana Paula Goulart, é produto de cinco anos de pesquisa da equipe do projeto Memória Globo. Foram feitas 200 entrevistas, consultadas centenas de publicações e documentos, analisadas mais de duas mil fitas de vídeo. O resultado é uma detalhada reconstituição da história do telejornal, em que não ficam de fora momentos difíceis, como a edição de debate entre Collor e Lula, em 1989 ( leia na página 2 ).

Outro destaque do livro são as passagens que tratam das escaramuças com a Censura. À medida que a audiência aumentava – hoje ela é de 43 pontos no ibope, o equivalente a 31 milhões de telespectadores – ampliava-se o cerco. Até Sérgio Chapelin foi alvo dos censores: ‘Ao noticiar a morte de guerrilheiros na América Latina, o apresentador, gripado, pigarreou e sua voz ficou embargada. Agentes do SNI foram se queixar a Armando Nogueira ( então diretor da Central Globo de Jornalismo, a CGJ ), pois acharam que Chapelin estava solidário com os guerrilheiros e se emocionara com a notícia.’

Depois de reclamação, ‘tempo bom’ virou ‘dia ensolarado’

Hoje, sete em cada dez aparelhos de TV ligados sintonizam o ‘JN’, mas, no início, o primeiro telejornal exibido em rede para todo o país teve que ‘desenvolver o conceito de noticiário nacional, ainda inexistente na televisão brasileira’. Os assuntos tinham que interessar ao telespectador de Manaus a Porto Alegre. Também foi preciso respeitar as diversidades regionais. ‘Nos primeiros anos, no boletim do ‘Jornal Nacional’, ‘tempo bom’ significava dia de sol e ‘mau tempo’, dia de chuva, até que alguns telespectadores passaram a reclamar. No Nordeste, castigado pela seca, ‘sol’ queria dizer tempo ruim’, diz o livro. A partir daí, as expressões foram trocadas por ‘dia ensolarado’ e ‘dia chuvoso’.

As inovações tecnológicas estão presentes, como a chegada da cor, em 1972. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então superintendente de produção e programação, lembra que, para os militares, a TV colorida era importante porque representava progresso, mas revela: ‘Nós estávamos saindo do prejuízo e com as cores teríamos de investir. Os militares forçaram a barra. Havia uma posição minha e do Walter Clark de que a implantação seria prematura, que seria uma coisa falsa, porque não havia aparelhos para receber as cores e nem equipamento para produzir em cores.’

Prematura ou não, a cor veio e com ela guarda-roupas brilhantes. ‘No começo, empolgados com a novidade, os apresentadores ousavam nas cores e nas padronagens dos ternos. Cid Moreira lembra que chegou a usar paletós verdes, cor-de-abóbora e quadriculados’, está escrito.

O livro também traz os bastidores dos furos de reportagem – como as entrevistas de Geraldo Costa Manso com Geisel, de Ricardo Pereira com Saddam Hussein e de Roberto Cabrini com PC Farias – e relembra episódios dramáticos, como a emboscada que quase matou o repórter Hélio Costa e o cinegrafista Orlando Moreira durante a guerra civil em El Salvador, em 1982.

– O ‘Jornal Nacional’ tornou-se referência, para a maior parte da população brasileira, de informação e realidade – constata Sílvia Fiuza, gerente do projeto Memória Globo.’



Keila Jimenez

’35 anos depois, a rede vai até a esquina’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/09/04

‘No dia 1.º de setembro de 1969 entrava no ar o Jornal Nacional, o noticiário televisivo mais importante do País e que, em um piscar de olhos, uniria todo Brasil em torno de uma só programação. Bem, quase todo. Sem desmerecer o ‘boa noite’ pioneiro em rede nacional, vale dizer que, quando o JN estreou, a escalada nacional de notícias da Globo abrangia apenas Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo e Curitiba.

Brasília e Belo Horizonte vieram só em 1971, depois que a Embratel inaugurou o circuito via satélite que incluía a capital do País, seguidos por Pernambuco (72), que permitiu a chegada do sinal da Globo a vários Estados do Nordeste.

O jornal era parte estratégica do sonho da emissora de se transformar na primeira rede de televisão do País. O sonho se concretizou: o noticiário uniu as mais distantes regiões em um intercâmbio de informações que provava que era possível ter uma programação uniforme em todo o País, democratizando o acesso aos fatos mais relevantes do Brasil e do mundo e, de quebra, diluindo custos de produção da programação.

As novelas que o digam. No início dos anos 70 o folhetim de Janete Clair Irmãos Coragem virou mania nacional. Até 69, quando o Jornal Nacional inaugurou esse conceito, programas e capítulos de novelas eram vistos em dias e horários distintos em cada região – cópias de fitas e filmes viajavam de um lugar para o outro.

O primeiro jornal, a primeira novela, a transmissão em rede nacional também teve seu primeiro grande evento: a Copa do Mundo de 70, no México. Pela primeira vez os telespectadores puderam assistir aos jogos da seleção canarinho – assim apelidada pelo locutor Geraldo José de Almeida – ao vivo, transmitidos por um pool de redes brasileiras de TV, entre elas, a Globo.

Pronto: um povo tão heterogêneo, espalhado em um território tão extenso, tinha virado – pelo menos diante da TV – um só.

‘Antigamente, as emissoras de cada Estado tinham seu próprio casting, sua orquestra, sua equipe técnica, sua própria programação’, fala o diretor do SBT em Brasília, Flávio Cavalcanti Jr. ‘Lembro-me que a fita do programa do meu pai viajava o País. O mesmo programa chegava a ser exibido com quase um mês de atraso em alguns Estados, em relação a São Paulo’, conta ele.

‘Com a criação da rede nacional, tudo ficou mais fácil e mais barato.

Algumas produções locais foram mantidas, mas a maioria das emissoras se tornou afiliada de alguma grande rede. Produzir um programa local é exatamente o mesmo custo de uma produção nacional. Sem contar os recursos que as geradoras tinham, que eram bem melhores: câmeras, iluminação, figurino…’

Segundo o livro que acaba de chegar às livrarias, Jornal Nacional – A notícia faz história (leia na pág. 8), a vantagem da Globo sobre as demais emissoras na expansão em rede nacional diminuiria só em 1985 – 15 anos após a estréia do JN – com o lançamento do primeiro satélite doméstico brasileiro pela Embratel: o Brasilsat facilitou a vida das concorrentes para se organizarem na distribuição de uma programação igual para o todo o País.

Umbigo – Basta dar uma olhada no crescimento das afiliadas do SBT para notar essa mobilização. Em sua formação, nos anos 80, a rede de Silvio Santos tinha apenas 18 afiliadas. Em 1990, esse número pulou para 43. Em 1995, já eram 77 e em 2000 o sinal da rede já era distribuído para 108 afiliadas.

Isso quer dizer que a cultura regional foi massacrada pela unificação da programação que reduzia custos e levava o mesmo prato para a mesa de todos os brasileiros? Não é bem assim. Após a corrida das afiliadas atrás das grandes produções das geradoras, veio o efeito contrário. As praças voltaram a olhar para o próprio umbigo.

Com a extensão das redes e o aumento na venda de televisores em todo o País – boom provocado pelo Plano Real -, o número de telespectadores aumentou, derrubando limites geográficos, e esse público também quis se ver retratado na sua TV. As redes então foram motivadas a mostrar os encantos do Norte que o Sul desconhecia, e vice-versa, embora a força do eixo Rio-São Paulo sempre tenha reinado no ar.

Pantanal (1990), novela de Benedito Ruy Barbosa produzida pela extinta TV Manchete, foi a primeira novela a priorizar o cenário real, em vez de cidade cenográfica, para retratar de fato O Brasil que o Brasil não conhece, como pregava seu slogan.

‘Nunca houve uma radicalização da nacionalização, as afiliadas continuaram a produzir uma e outra coisa regional, mas em determinado momento começaram a sentir falta de uma identificação maior com o seu público’, diz Cavalcanti, do SBT.

‘As praças cresceram e perceberam que o espectador queria ver suas festas típicas, sua cultura na TV e que, com isso, também atrairiam mais anunciantes locais’, fala o diretor de Planejamento Estratégico da Record, Júlio César Casares. No fim dos anos 90, as produções regionais voltaram a ganhar força. Em 1998, apenas 20% das então 113 afiliadas da Globo tinham produção local. Dois anos depois, esse número saltou para 80%.

Mesmo assim, o bagageiro regional ainda é pequeno. Atualmente, a presença regional na programação que o público vê em todo o País varia entre 10% e 25%, de rede para rede.

A Band é a emissora que abre mais espaço para a programação local. De segunda a sexta-feira chega a colocar à disposição das afiliadas 4 horas diárias de espaço livre para produções regionais. Na Globo, a afiliada que mais produz é a RBS, braço do grupo no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que chega a ter 15% de sua grade composta por produção local.

Na própria Globo já há afiliada brigando por mais espaço para jornalísticos.

A rede está negociando com algumas delas no Estado de São Paulo a abertura de blocos no horário do Bom Dia São Paulo para que elas acomodem ali o noticiário regional.

Não significa que a emissora nunca tenha feito isso, pelo contrário. O jornalismo local na rede dos Marinhos é fortíssimo e importante para que noticiários como o JN tenham êxito. Na guerra por espaço no jornalístico, a Globo garante que leva mais quem tiver a melhor notícia, independentemente de ser Rio, São Paulo ou Acre.

Apesar dessa valorização regional, há regras. No JN, palavras com significado muito regional devem ser evitadas, assim como sotaques muito fortes. Menos o do Rio, é claro. Mesmo assim, a rede insiste em que os linguajares regionais devem ser preservados, assim como a necessidade de cada afiliada de ter seu próprio noticiário.

‘Também incentivamos essa produção regional, principalmente a jornalística, mas achamos que o mercado é que deve regular isso’, diz o vice-presidente do grupo Bandeirantes, Marcelo Meira.

Projeto de cotas – A opinião de Meira coincide com a de dirigentes de outras redes, mas isso não significa endossar projetos de lei que querem estabelecer cotas de programação regional. O mais polêmicos é o da deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), que prevê que de 10% a 20% da programação diária das emissoras seja destinada a atrações locais.

A proposta – parada no Senado, à espera da realização das próximas eleições – estabelece que emissoras que atendem a regiões com mais de 1,5 milhão de domicílios com TV deverão transmitir 22 horas semanais de programas regionais. Desse total, há até limites preestabelecidos para atrações jornalísticas, culturais e de produções independentes.

‘Há afiliadas com disposição e recursos para fazer produções, e outras que pedem pelo amor de Deus para retransmitir os programas da rede, pois não conseguem produzir nada’, diz Flávio Cavalcanti, do SBT.

‘Basta olhar para a divisão do bolo publicitário para notar que essas cotas não são possíveis. A Globo abocanha atualmente 70% desse bolo e o resto é dividido entre todas as grandes redes. O que sobra para uma afiliada pequena, lá no sertão do Nordeste? Então, é com isso que ela vai produzir as atrações locais’, fala Marcelo Meira, da Band.

Certo é que só a conquista da transmissão em rede pode incentivar esse interesse da nação pela preservação de hábitos e sotaques tão diversos.

Afinal, como diria o slogan da Manchete, o Brasil não se conheceria tão bem se não fosse pela TV.’