Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sérgio Sá Leitão

‘A olimpíada de palpites sobre o anteprojeto que transforma a Ancine em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) parece ter esgotado o seu potencial de público e crítica. O exemplo sagaz do professor e ex-ministro Bresser Pereira ganha um vasto contingente de adeptos. O debate passa, portanto, a uma nova etapa: análises realistas, sugestões concretas e negociações objetivas. O que fez o ilustre mestre? Simples.

Diante dos disparates publicados ou transmitidos, deu-se ao trabalho de ler com atenção a proposta, de modo a verificar se o barulho procedia. Ao fim, não encontrou no texto algo que sugerisse autoritarismo e outros ‘ismos’ apontados por atletas do palpite que se apressaram a opinar peremptoriamente sobre um filme a que não quiseram (ou puderam) assistir.

Aqui e ali, porém, ainda surgem intervenções anacrônicas, na base do ‘não li, não entendi e não gostei’. São artigos corporativistas, declarações ‘espertas’ e frases soltas (em matérias supostamente neutras) que pouco revelam, além da ignorância, do açodamento ou do oportunismo dos autores. O alvo não chega a ser exatamente o anteprojeto apresentado pelo Ministério da Cultura, que se encontra em consulta pública, mas um anteprojeto ficcional, criado pela imaginação dos próprios algozes, a partir de uma interpretação peculiar do que ouviram falar, ou do que leram não se sabe onde. Qualquer semelhança com a boa e velha brincadeira do telefone sem fio não é mera coincidência. Resultado: desinformação. E uma anacrônica linha de montagem de preconceitos e clichês.

Trata-se de uma proposta do governo Lula? Então só pode ser autoritária. A Casa Civil tem algo a ver com o texto? Então deve ser muito mais do que autoritária. A intenção é proteger e incentivar o conteúdo nacional? Então não há dúvida: além de autoritária, é xenófoba. Fala em regulação e fiscalização? Menciona artigos da Constituição que curiosamente não foram regulamentados até hoje? Confere novas competências e responsabilidades ao poder público? Não há outra possibilidade: é uma proposta autoritária, xenófoba e estatista, parte do implacável plano petista para dominar o Estado e a sociedade. Onde se diz regulação, leia-se controle; onde se fala em proteção e incentivo, leia-se dirigismo. Nossa! Agora querem dizer o que vamos criar e assistir. E depois? Malas!

Este nonsense desmancha no ar após uma leitura não preconceituosa da minuta e da exposição de motivos do anteprojeto. Assim fez Bresser Pereira. Assim estão fazendo criadores, empresários, executivos, técnicos, estudiosos, produtores, jornalistas e cidadãos que não acreditam em fantasmas. E que desejam contribuir democraticamente, em parceria com o governo federal, para a realização do evidente potencial econômico e cultural da indústria do audiovisual no Brasil. Trata-se de uma economia estratégica para o País; a legislação brasileira está defasada, diante da convergência digital e empresarial que marca o setor; os modelos de negócio demonstram evidente fadiga; as diferenças entre suportes, redes e plataformas desaparecem. Como enfrentar os desafios do presente?

Um governo que pensa no futuro e está plugado no aqui e no agora não pode simplesmente sentar no meio-fio e ver a banda passar. Entregue à própria sorte, o mercado pode ser concentrador e autofágico. O contexto exige uma legislação e um órgão de Estado (e não de governo) para regular, incentivar, proteger e articular o conjunto das atividades econômicas de produção e difusão de conteúdos audiovisuais. Estamos falando de uma demanda histórica do setor. De uma agência reguladora igual a várias outras. De medidas testadas e aprovadas em países democráticos como a França e a Austrália.

Estamos falando também de uma proposta amparada na Constituição. E de um processo democrático de decisão. Eis a Ancinav. Sem fantasmas nem ruídos de transmissão.

Tenho participado de diversos encontros para debater o anteprojeto. A experiência mostra que, quando há espaço para uma apresentação detalhada dos conceitos, do histórico e das medidas propostas, e quando há disposição de todos para ouvir e entender, uma boa parte das críticas e dos receios se dissipa. E os acordos tornam-se viáveis. Sem falar das boas sugestões que aparecem. Às vezes são novas medidas, que se somam ou substituem as que estão na minuta; às vezes são redações mais claras de alguns artigos, para que não fiquem dúvidas sobre as intenções do governo. Uma cena comum é a surpresa dos interlocutores diante das explicações. Outra é a constatação comum de que não podemos desperdiçar esta oportunidade de ter uma agência para o conjunto do audiovisual.

O anteprojeto acaba com o artigo terceiro da Lei do Audiovisual, que tem sido importante para o ciclo de sucesso que o cinema brasileiro vive hoje?

Não. Ele foi mantido e passa a beneficiar também as emissoras de televisão.

O anteprojeto taxa em 4% o faturamento das TVs? Não. Ele estabelece uma contribuição a ser paga pelos anunciantes, e não pelas emissoras. Os recursos arrecadados pela Ancinav serão absorvidos pelo governo? Não. Eles serão destinados a um fundo de fiscalização (até 20%) e um fundo de investimento (no mínimo 80%), de natureza contábil, com direito a comitê gestor e agente financeiro. A turma do Ministério da Cultura não aprecia novela? Bem… Se você viu o último capítulo de Celebridade, sabe a resposta. E vamos em frente, que o debate é bom. E o governo Lula gosta.’



O Estado de S. Paulo

‘Debaixo do parangolé da Ancinav’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 26/09/04

‘O nosso bom ministro tropicalista jura que ninguém jamais vai coibir a liberdade de expressão no nosso querido Brasil ‘porque nós não vamos deixar’. Mas a ferramenta que foi costurada dentro da casa que ele preside, sob a sigla Ancinav – com pedaços de cadáveres de velhas leis e novas invenções de burocratas, com termos precisos e incisivos, escolhidos para alcançar os mais recônditos interstícios da moderna tecnologia de gerar e transmitir entretenimento e informação -, é de calibre, precisão e alcance suficientes para exterminá-la completamente.

E mais: vem no bojo de um ataque cruzado contra a imprensa escrita, a imprensa eletrônica e o Ministério Público vazado em termos que não carregam nenhum traço da poesia que inspirou o Movimento Tropicalista. Ao contrário, é obra típica daquele PT que não se vexa de apontar como modelos de ‘democracia’ o regime de Fidel Castro e o do general Hugo Chávez na Venezuela.

Os patrocinadores do texto do projeto de lei que dispõe sobre a organização de atividades cinematográficas e audiovisuais, sobre o Conselho Superior de Cinema e a Ancinav querem passar a impressão de que não se está tratando de grande novidade, ou de algo que extrapole o ordenamento jurídico. Mas a verdade – como observou o jornalista Fernão Lara Mesquita, em artigo que publicamos domingo passado, é que, além de ‘ampliar os controles existentes sobre a radiodifusão do País’, o projeto da Ancinav busca ‘generalizar os temas passíveis de controle e ampliar o alcance desse controle para todo e qualquer tipo de suporte eletrônico’ e, ‘mais importante e perigoso, concentrar o poder de controlá-los nas mãos de um grupo nomeado pelo presidente da República e lotado numa autarquia com mandato próprio, totalmente ‘blindado’ contra interferências externas’.

A Ancinav se atribui as funções de dois ministérios (Cultura e Comunicações) e mais as do Cade e da SDE, e passa a ditar regras e cobrar seu cumprimento a todo o setor envolvendo direta ou indiretamente produção e transmissão de conteúdos eletrônicos, sejam de entretenimento, sejam de informação. E, sempre que fala em fomento à produção nacional, entorta a boca para o vezo de influenciar conteúdos.

Essa entidade tem a natureza de uma ‘autarquia especial’, caracterizada ‘por autonomia administrativa e financeira, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes’, que ‘exercem o poder de decisão final sobre todas as matérias’ (art. 21, XIV). Eis a sua amplitude de atuação consignada no art. 38: ‘A Ancinav pode regular a exploração de atividades cinematográficas e audiovisuais: I – (…) de radiodifusão de sons e imagens e os serviços de comunicação eletrônica de massa por assinatura; II – demais serviços de telecomunicações que não tenham o conteúdo audiovisual como parte inerente ao serviço, mas que o transmitam ou ofereçam ao usuário’ (o que inclui telefonia e internet). Para que não haja dúvida sobre a natureza do conteúdo sujeito ao controle, fiscalização – e punição – da entidade, eis a definição estabelecida no artigo 35: ‘(…) conteúdo audiovisual é o produto da fixação ou transmissão de imagens, com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento, independentemente dos processos de captação, da tecnologia empregada, do suporte utilizado inicial ou posteriormente para fixá-las ou transmiti-las, ou dos meios utilizados para sua veiculação, reprodução, transmissão ou difusão’.

Quanto ao desenvolvimento da produção cinematográfica e audiovisual nacionais, o que as bloqueia são a política excessivamente centralizada de fomento, cujo eixo deveria se deslocar mais em direção ao mercado e, sobretudo, a política restritiva de carregamento de TVs fechadas adotada pelos concessionários dos sistemas de transmissão por cabo e satélite – os mesmos proprietários das redes de TV abertas – tramada entre estes e seus sócios dentro do Congresso Nacional, que impede o crescimento das TVs alternativas capazes de lhes fazer concorrência. A multiplicação de canais, aqui contida artificialmente para defender velhos monopólios, é que leva, mais que qualquer outra coisa, à necessidade da multiplicação dos conteúdos a cargo de produtores independentes. O Brasil é o único país do mundo onde os concessionários de sistemas de transmissão não são obrigados a carregar todo canal que puder pagar pelo serviço.

O projeto da Ancinav, que contém menções a tantos propósitos nobres, não é nada disso debaixo do vistoso parangolé sob o qual se esconde. É apenas uma recriação extemporânea do que de pior o século 20 produziu do gênero, para a qual a qualificação de autoritária fica muito branda e pequena.’



Folha de S. Paulo

‘Consulta sobre lei do audiovisual é adiada de novo’, copyright Folha de S. Paulo, 23/09/04

‘O MinC (Ministério da Cultura) anunciou ontem o segundo adiamento do prazo da consulta pública sobre o projeto de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual). A data-limite para comentários ao texto (www.cultura.gov.br/projetoancinav) passa a ser 1º/10.

O MinC diz que, encerrado esse prazo, as propostas serão encaminhadas ao Conselho Superior do Cinema, que tem até 6/10 para encerrar as discussões sobre o projeto, antes do envio ao Congresso.’