Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Soninha

‘Por que um espaço que pode exibir anúncios de produtos e serviços diversos não poderia anunciar um canal de TV? O que haveria de imoral ou lesivo nisso, para justificar a ilegalidade? A MTV patrocinou o Fluminense uma década atrás, e em nenhum momento me ocorreu que isso deveria ser considerado ilícito.

A proibição do patrocínio por parte de uma TV só interessaria a uma instituição: a detentora quase exclusiva dos direitos de transmissão do futebol. Segundo consta, foi por influência da Globo que a lei 9.981 (que nasceu de parecer do senador Maguito Vilela, e resultou numa série de alterações na Lei Pelé) incluiu esse artigo.

Em 2003, ele ganhou nova redação com a lei 10.672 (e parece um enxerto, porque não tem nada a ver com os temas tratados nela). Resumindo, diz que as empresas de radiodifusão e de televisão por assinatura ficam impedidas de ‘veicular sua própria marca, bem como a de seus canais e dos títulos de seus programas, nos uniformes de competições das entidades desportivas’. A pena? ‘Eliminação da entidade de prática desportiva’ da competição em que ocorreu a violação desse parágrafo.

De novo, a quem interessaria isso? à Globo, que poderia impedir que o Vasco exibisse de novo o logotipo do SBT como ‘homenagem’ (como na final da Copa JH). A mesma Globo que, segundo Eurico Miranda, ‘autorizou’ o Vasco a… descumprir a lei! Já não se trata do famoso ‘Quarto Poder’, portanto -talvez o Primeiro, o Único! A lei teria sido feita segundo seu interesse e, depois, descumprida mediante sua autorização.

Como no caso da perda de pontos por causa de irregularidades administrativas, acho bobagem a proibição do anúncio de TVs em camisas de clubes, e um exagero ridículo, um verdadeiro absurdo a punição com a eliminação do torneio. Mas… é lei, não é? E claríssima, sem chance de qualquer conflito de interpretação.

Por isso, lamento profundamente pelos torcedores do Vasco que abominam a administração Eurico Miranda, pelos atletas que vestem a camisa cruzmaltina com dedicação e orgulho, mas… de acordo com a lei, o Vasco teria de ser excluído da Série A. Para que seu presidente pare de debochar do Estado, de rir das leis, das pessoas e instituições do país.

Na esfera da Justiça desportiva, apelo ao presidente Luiz Zveiter, que vai ‘dormir bem mais tranqüilo’ depois da condenação do São Caetano, e acredita que ‘a partir de agora os presidentes dos clubes terão de tomar muito mais cuidado’. Com o mesmo rigor que aplicou a esse caso, solicite um relatório a um de seus auditores sobre as irregularidades ocorridas em São Januário dez dias atrás. O Vasco (finalmente!) publicou seu borderô, em que afirma ter vendido apenas 14.540 ingressos. Por negligência ou má-fé, colocou em risco a vida de milhares de pessoas que se acotovelaram dentro e fora do estádio com seus ingressos comprados a R$ 2. Ainda que o relator conclua pela inocência do clube, o presidente do tribunal não pode abrir mão de uma investigação cuidadosa.

‘Eu já sabia’

Não sou santista, mas vou me gabar como se fosse eu a campeã: sempre tive a opinião de que o Luxemburgo era um ótimo técnico (ao contrário dos que acreditavam, ou ainda acreditam, que ‘com esse elenco, até eu’ -referindo-se a vários times diferentes, com quantidades variadas de ‘craques’…); que o Deivid era um bom atacante, que Elano era um ótimo meia (e etc.), que Robinho era um fora-de-série. Mas admito: na antepenúltima rodada do Brasileiro, o Furacão tinha me convencido de que estava com mais ‘pinta de campeão’. Uma rodada depois, fui desmentida implacavelmente. O Santos é um grande time, que bom! Que o futebol vistoso do campeão (e o do vice) entre na moda de vez.’



GASPARI CONTESTADO
Painel do Leitor, Folha de S. Paulo

‘Cartas de Leitores’, copyright Folha de S. Paulo

’23/12/04

Educação

‘Em relação aos comentários de 19/12 do jornalista Elio Gaspari (‘Tucanos malvados’, Brasil), a respeito da decisão tomada pelo Conselho Estadual de Educação ao analisar a solicitação de credenciamento da Faculdade Paulistana de Saúde Pública Cidade Tiradentes, tenho a esclarecer alguns pontos: 1. A posição do Conselho Estadual de Educação, órgão responsável pela articulação entre os sistemas estaduais e municipais, tem sido sempre -em todos os governos- a de cumprir a legislação constitucional e ordinária, bem como as diretrizes e metas do Plano Nacional de Educação, para assegurar que os municípios só atuem no ensino médio e superior após atenderem ao ensino fundamental (prioritariamente) e à educação infantil; 2. O Conselho Estadual de Educação, como órgão normativo, deliberativo e consultivo do Sistema de Ensino do Estado de São Paulo, atua independentemente de questões partidárias. E sua posição decorre da convicção de seus membros e da análise da legislação e das conjunturas nacional, estaduais e municipais, não sofrendo, portanto, ingerências de outras esferas do governo.’ Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães, presidente do Conselho Estadual de Educação (São Paulo, SP)



21/12/04

Fraque e bermuda

‘Estou lendo, com muito interesse, o quarto volume da extraordinária série de livros de Elio Gaspari sobre a ditadura militar. É obra histórica, de gênio. Por isso mesmo, fiquei perplexo com uma nota trivial e boba publicada em sua coluna de 19/12 em que tenta ridicularizar-me pelo fato de eu ter usado fraque em meu casamento e bermuda na marcha pelo salário mínimo, que terminou no Palácio do Planalto, com audiência presidencial (‘O sindicalista do fraque foi de bermuda’, Brasil). Ora, usei fraque (alugado) no meu casamento, feito em Igreja Católica pelo cardeal dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, porque é essa a roupa com que as pessoas se casam. Usei bermuda e tênis, assim como o presidente da CUT, Luis Marinho, e todos os nossos companheiros da Força Sindical e da CUT, na caminhada, porque não seria apropriado caminhar centenas de quilômetros usando terno e gravata. Ou fraque. Entramos na audiência com o presidente Lula com a mesma roupa porque seria desnecessário interromper o ato que terminou na porta do palácio para ir a um hotel trocar de roupa. Não é a primeira vez que o senhor Elio Gaspari, um intelectual que admiro, decepciona-nos com essas tentativas toscas de fazer piada. O que queria ele? Que eu fosse de bermuda a meu casamento e de fraque à caminhada pelo salário mínimo? O senhor Elio Gaspari deveria poupar-nos do ridículo de suas ironias, que talvez tenham o único objetivo de tornar mais charmosa -sem conseguir isso- a sua boa coluna dominical. O senhor Elio Gaspari estaria mais à altura de seu talento e seria mais útil a seus leitores se usasse seu precioso tempo escrevendo livros, e não essas bobagens.’ Paulo Pereira da Silva, presidente da Força Sindical (São Paulo, SP)’



FSP CONTESTADA
Painel do Leitor, Folha de S. Paulo

‘Cartas de Leitores’, copyright Folha de S. Paulo

’25/12/04

Relacionamento

‘Foi com estranheza que as Casas Bahia tomaram conhecimento da nota ‘Testa marcada’ (‘Painel’, Brasil, pág. A4, 21/12), que insinua problemas de relacionamento entre o fundador e presidente da rede varejista, Samuel Klein, e a Prefeitura de São Paulo. A rede esclarece que sempre manteve relacionamento cordial com as prefeituras das mais de 200 cidades nas quais tem filiais, inclusive com a Prefeitura de São Paulo. Nos últimos quatro anos, as Casas Bahia têm contribuído com diversas ações do governo municipal de São Paulo, como o patrocínio ao Carnaval da cidade em 2004, a reforma e conservação da praça Campo de Bagatelle e a utilização, por meio de aluguel, do Pavilhão de Exposições do Anhembi para a realização anual do evento Super Casas Bahia durante todo o mês de dezembro.’ Michael Klein, Casas Bahia (São Paulo, SP)

Resposta da jornalista Renata Lo Prete, editora do ‘Painel’ – A nota nada disse ou insinuou a respeito do que relata o missivista.’



24/12/04

Universidades

‘O Ministério da Educação parece acreditar que vai resolver o problema do ensino superior concedendo isenções fiscais a universidades particulares que concederem vagas a jovens carentes. Enquanto isso, as universidades federais continuam com deficiências crônicas, em grande parte provocadas pela falta de uma política de investimentos do MEC. Se tivessem mais apoio de Brasília, as universidades públicas poderiam aumentar substancialmente o número de vagas oferecidas nos vestibulares, evitando assim a perda de receita com isenções fiscais.’ Rogério Castro (Niterói, RJ)

Assentamentos

‘Em relação à reportagem ‘Lula cumpre 59% da meta de assentamento’ (Brasil, 23/12), o Incra afirma que as informações ali publicadas não correspondem à realidade. Os dados parciais de execução do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária em 2004 indicam o que segue. Até 23 de dezembro, 86.098 famílias já tiveram acesso à terra. O número total de famílias assentadas neste ano será concluído em 31 de dezembro, podendo chegar a mais de 90 mil. Os assentamentos realizados em 2004 representam o dobro dos anos de 2002 e 2003 e é o maior total desde o ano 2000. O governo federal, que tem na reforma agrária um de seus programas prioritários, destinou ao Incra a maior suplementação dos últimos anos, equivalente a 130% do seu orçamento inicial (R$ 921 milhões) com destaque para ações como obtenção de terras, cadastro, infra-estrutura, assistência técnica e crédito. O Incra executou R$ 1,8 bilhão até esta data, valor superior ao orçamento inicial de R$ 1,4 bilhão. Na ação de obtenção de terras, a suplementação atingiu o valor de R$ 610 milhões, totalizando orçamento de mais de R$ 1 bilhão, com previsão de execução superior a 95%.’ Kátia Vasco, assessoria de comunicação social do Incra (Brasília, DF)

Resposta do jornalista Eduardo Scolese – A reportagem informou que neste ano, até 21 de dezembro, 68,3 mil famílias haviam sido assentadas -o que é diferente do simples acesso à terra. A promessa do governo era assentar 115 mil famílias. Os dados referentes à execução orçamentária citados pelo Incra não foram objeto da reportagem.

Sem desistir

‘Em seu artigo ‘É para desistir’ (Opinião, 23/12), Clóvis Rossi demonstra um sentimento comum entre nós, brasileiros. Como leitora fiel dessa coluna, peço ao jornalista que jamais desista de ‘abrir os olhos’ de seus leitores, pois, ao exercer seu papel de formador de opinião, também nos dá força para lutar contra os males sociopolíticos de nosso país.’ Juliana Simon Venancio (São Paulo, SP)

Ciência

‘Gostaria de esclarecer alguns pontos do texto ‘Deputado diz que quer preservar patrimônio local’ (Ciência, 21/12). A proposta de criação da Rede Nacional de Pesquisa Científica em Paleontologia não é minha, mas da Comissão de Ciência e Tecnologia, que tive a honra de presidir em 2002. Propus à comissão o patrocínio de uma emenda para a instituição da rede. O assunto foi debatido pela comissão e só após a aprovação em ata a idéia foi levada adiante. A rede de paleontologia não está criada. A proposta foi formulada pela Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais. O projeto foi coordenado pelo paleontólogo Diógenes de Almeida Campos, do Departamento Nacional de Produção Mineral, e seu trabalho foi feito com técnicos e com o Centro de Pesquisas Paleontológicas LLewellyn Ivor Price, que foi incluído -e não excluído, como diz o texto- na concepção da rede por sediar o sítio e o Museu dos Dinossauros de Peirópolis. A dra. Renata Guimarães Netto foi informada de que, no primeiro trimestre de 2005, realizaremos uma audiência pública para discutir o projeto da rede dentro do melhor interesse nacional. Ela concordou que esse é o melhor caminho para a rede se instalar. Em 17/12, foi inaugurada a discussão dessa rede, e é uma pena que algumas instituições envolvidas em paleontologia prefiram ver nessa iniciativa um adversário, e não uma ação louvável a favor da valorização do patrimônio paleontológico do Brasil. A concepção técnica do projeto não coube a mim, mas, sim, a técnicos do governo de Minas Gerais e do governo federal, que cuidarão da implementação da rede.’ Narcio Rodrigues, deputado federal -PSDB-MG-, ex-presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, idealizador da Rede Nacional de Pesquisa Científica em Paleontologia (Brasília, DF)

Resposta do jornalista Claudio Angelo – O deputado teve a iniciativa de solicitar a criação da rede à Câmara. É, portanto, autor da proposta. A pedra fundamental do prédio que sediará a rede foi lançada na última sexta-feira, dia 17, e os recursos já estão disponíveis. O Centro de Pesquisas Paleontológicas Llewellyn Ivor Price não está listado no ‘folder’ da rede entre as instituições que fariam parte de seus nós, nem trabalhou em conjunto com os técnicos designados para implementar a rede em 2002.

No exercício da medicina

‘Gostaria de tecer algumas considerações sobre a carta da psicóloga Maria Helena Camargo (‘Painel do Leitor’, 22/12). Pediatra não impõe nada a ninguém, apenas orienta, baseado em pelo menos oito anos de estudo, a melhor maneira como uma mãe deve proceder para amamentar corretamente seu filho. Na visão da psicóloga, deve existir na área de saúde um profissional que entenda mais de criança que um pediatra. Na seqüência, ela afirma que a obstetra também não entende nada de maternidade, embora tenha acompanhado a mãe em questão durante toda a sua gravidez e realizado o seu parto. E, finalmente, alega que o psiquiatra não entende nada sobre desenvolvimento humano. Bem, nós, médicos, não desejamos a submissão de nenhuma outra atividade profissional. Simplesmente não abrimos mão da prerrogativa do diagnóstico médico e da conseqüente terapêutica.’ Vicente Carneiro Filho (São Vicente, SP)

Inauguração

‘Não procede a afirmação da reportagem ‘Prefeitura inaugura planetário do Carmo com projetor incompleto’ (Cotidiano, 22/12), segundo a qual a prefeita inaugurou ‘mais uma obra que não será entregue’. A obra não foi inaugurada. E isso estava claro no aviso de pauta enviado à imprensa. Informava o texto: ‘a prefeita Marta Suplicy vai participar da entrega do prédio do planetário do Carmo’. E o prédio, como a própria reportagem anuncia, está pronto. Durante a cerimônia de entrega do edifício, em que não estavam presentes repórteres do ‘Agora’ ou da Folha, em nenhum momento foi anunciada a inauguração do equipamento. A assessoria de imprensa da prefeitura, quando procurada pela reportagem, também deixou claro que se tratava de uma entrega do prédio.’ Kelly Santos, assessora de comunicação e imprensa da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente de São Paulo (São Paulo, SP)’



23/12/04

Segurança

‘Em relação ao artigo ‘O ‘império da lei’ está nu’ (Opinião, pág. A2, 20/12), penso que todo ponto de vista seja importante -para mim principalmente quando se trata de segurança pública. Se o império da lei está nu, conforme afirma o título do texto de Gabriela Wolthers, é preciso vesti-lo -e logo, antes que todos se tornem inertes diante dos fatos. É preciso manter a nossa indignação e, portanto, agir proativamente com operações, de maior ou de menor magnitude, de combate ao crime. Vestir o império da lei não é algo que se faça do dia para a noite. É um processo gradual, do qual todos devem participar. É preciso que todos aqueles que representam o poder público exerçam suas responsabilidades. Nós estamos procurando fazer a nossa parte. O trabalho desenvolvido pelos órgãos de segurança do Estado do Rio de Janeiro resultou na prisão de 42 mil criminosos e na apreensão de mais de 28 mil armas nos dois últimos anos. No Rio, para que não proliferem grupos criminosos, o Estado tem de se fazer presente por meio das forças de segurança, entrando a qualquer hora em qualquer lugar em que for necessária a intervenção do braço armado do Estado de Direito. As operações policiais têm critérios objetivos e subjetivos. Os objetivos podem ser mensurados quantitativamente, com base nas apreensões e nas prisões. Os subjetivos tratam da reafirmação da presença do Estado ao procurar dar proteção às comunidades carentes e evitar a ocorrência de outros crimes e conflitos. No Rio, o império da lei não está nu. Ele tem vontade política, veste farda, usa distintivo e procura utilizar a inteligência e a força necessária no combate ao crime.’ Marcelo Itagiba, secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ)

Apogeu e declínio

‘O senhor Jarbas Passarinho, no artigo ‘Apogeu e declínio do ciclo militar’ (‘Tendências/Debates’, 19/12), caminha na linha adotada pelo general Jorge Armando Félix de enaltecer fatos da ditadura militar. Por mais que se diga, cuidou-se de um ‘milagre’ sem sustentação -como se constatou no momento mesmo em que os militares deixaram o poder. Aliás, todo o panorama de um país panglossiano cede o passo diante de um só caso de tortura ou da eliminação de uma vida. Ademais, exagera o articulista ao falar no apoio maciço da igreja ao golpe de 1964 e mal interpreta a atuação de dom Paulo Evaristo Arns, que, em missão de paz, buscava evitar, com a sua presença, o confronto entre forças adversas. Dom Paulo, missionário franciscano, desde o primeiro momento em que se evidenciou a sujeição do país às correntes do arbítrio, lutou pela paz. E muitas vezes com a autoridade inegável da igreja apontou os desmandos e socorreu as vítimas da opressão. Bispo da paz e da esperança, foi talvez a primeira voz que se fez ouvir contra as violações aos direitos humanos, que tinham como vítimas quantos ousavam rebelar-se contra o poder imposto. Justamente agora, com o amadurecimento da sociedade civil, que quer exercitar o seu direito de conhecer o seu passado, surgem vozes -e o articulista faz coro a elas- com o claro intuito de explicar o inexplicável: a violência como instrumento de poder.’ Hélio Bicudo, presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos (São Paulo, SP)’



ENTREVISTA / CHICO BUARQUE (EXCERTO)
Fernando de Barros e Silva

‘‘Querem exterminar os pobres do Rio’’, copyright Folha de S. Paulo, 26/12/04

‘Há um sentimento difuso quase a favor do apartheid social no Brasil e existe, por parte das elites, um ódio visceral não vocalizado em argumentos contra o presidente da República operário, que tem um dedo a menos e fala errado.

São sintomas da regressão social que Chico Buarque enxerga no Brasil de hoje, um país ‘cada vez mais irracional’. O governo, porém, também não sai ileso na avaliação de Chico. Vem desperdiçando oportunidades históricas de intervenção social porque assumiu compromissos errados e cedeu demais.

Um exemplo bem concreto: o engavetamento da discussão sobre a descriminalização das drogas, segundo Chico a única maneira de enfrentar a questão da violência ligada ao tráfico no Rio.

‘Se o governo Lula não enfrentar isso, não sei quem vai fazer’, diz Chico -e completa: ‘O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Não tem o direito de ignorar’.

Neste trecho da entrevista concedida em Paris, o compositor fala ainda sobre o assédio da mídia, da demanda crescente pelos assuntos fúteis e do fato de se sentir cada vez mais como se estivesse permanentemente submetido ao olhar de um Big Brother.

Folha – Você faz parte de uma geração de artistas que foi porta-voz de ambições grandes em relação às possibilidades do país. Hoje essas ambições encolheram muito, não se vê mais a perspectiva de mudanças sociais como antes. As aspirações foram redimensionadas para baixo. Como você analisa isso?

Chico Buarque – Hoje em dia a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável.

Me preocupa que estamos nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela economia. É difícil. Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Eu me sinto muito diminuído, tenho pouco interesse em me manifestar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente desavisada a esse respeito.

Às vezes podem dizer coisas interessantes, ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta.

Folha – Você se vê pressionado a falar sobre esses assuntos?

Chico – Eu cada vez mais me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância. Aí eu sou realmente modesto. Não sou modesto em relação ao que eu faço como artista. Mas, sobre os rumos ou possibilidades do país, não vejo honestamente que contribuição eu possa dar.

O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus receios diante desse quadro cada vez mais assustador. Como não se vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo conformismo, ou mesmo a um cinismo. Na alta classe média, assim como já houve um certo esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário, com tintas de racismo e de intolerâncias impressionantes.

O medo da violência na classe média se transforma também em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao sujeito que tem um carro velho, ao sujeito que é mulato, ao sujeito que está mal vestido. Toda essa indústria da glamourização, de quem pode, de quem ostenta, de quem torra dinheiro -enfim, ser reacionário se tornou de bom tom. As moças bonitas no meu tempo eram de esquerda. Hoje são todas de direita (risos).

Boutades às vezes racistas, preconceitos de classe, manifestações de desprezo mesmo pelos mais pobres se tornaram algo muito comum e socialmente valorizado.

Folha – Estamos diante de uma grande restauração, uma grande maré conservadora?

Chico – Exatamente. E diante da negação de conquistas não só sociais mas também comportamentais. Vejo um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência das pessoas, todo mundo arrumadinho…

Folha – Mas isso convive, no caso brasileiro, com um governo de um líder operário, o que poderia ser visto como uma conquista histórica na contramão desse quadro. Como explicar esse curto-circuito?

Chico – Em primeiro lugar, acho que a eleição do Lula foi uma vitória. Ter conseguido eleger o Lula talvez tenha sido um último sinal de que algo ainda possa mudar para melhor. O outro lado da moeda é esse de que falei.

O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Outros podiam não conhecer, mas o Lula sabe exatamente o que é aquilo, não há de esquecer. O Lula não tem o direito de ignorar isso. Nessa altura, fico depositando minha confiança pessoal no Lula, minha esperança de que ele encontre uma maneira de pelo menos suavizar esse quadro. Mas esse é um fardo muito pesado. É uma esperança talvez demasiada.

De certa forma, o Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar. E aí não é culpa dele. É por isso que tendo a reagir às críticas que são feitas exageradamente ao Lula.

Folha – Parece que você quer evitar jogar água no moinho dos que dizem que as coisas no governo não funcionam ou que o Lula é igual ao Fernando Henrique.

Chico – Não quero jogar, porque já tem muita água nesse moinho. Vejo muita gente com ódio pessoal do Lula. E não vejo essa gente verbalizar com argumentos essa oposição tão visceral ao Lula. Parece que há uma certa vergonha de ter um presidente como o Lula, um operário, um sujeito com um dedo a menos e que fala errado. Uma vergonha de ver o Lula representando o país lá fora. Percebo isso em gente próxima. E vejo isso na mídia também. Na verdade, isso deveria orgulhar um brasileiro -ter um homem com as origens sociais do Lula na Presidência da República.

Folha – Isso é um avanço em relação à era tucana?

Chico – Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência. Foi um progresso. Nós vínhamos de anos e anos de generais, que não eram eleitos, depois tivemos o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio -’é um de nós, finalmente’. Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente. Não gostaria que meu pai fosse presidente da República. Não é por aí. Também não acho que o fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou um mau presidente. O Brasil ter eleito Lula contradiz tudo o que eu disse há pouco a respeito de um país que parece cada vez mais estar contra gente como o Lula. E volto a repetir: não vejo apenas um sentimento contra o marginal, o traficante, o ladrão. Mas contra o motoboy, contra o desempregado, contra o sujeito que não fala direito, isso apesar de a elite brasileira falar muito mal o português. Constato um sentimento difuso quase a favor do apartheid social.

Folha – Você não quis incluir os seus jogos de futebol e a sua paixão pelo futebol como tema dos programas que está gravando. Qual a razão?

Chico – Todo mundo sabe que eu adoro jogar bola, que eu gosto de futebol. Já sabem até onde jogo bola. Então, vira e mexe, aparece alguém lá para tirar foto, essas coisas. Aí o futebol vira um acontecimento. Talvez até mais porque eu não esteja fazendo show, não esteja me exibindo em público, o futebol vira uma ocasião de exibição, como se eu quisesse me exibir jogando bola. Não é o caso. Aquilo não é uma exibição. Por isso achei melhor deixar de lado.

Folha – Ou é uma exibição para consumo interno, pessoal…

Chico – Pois é (risos). Mas há uma demanda cada vez maior para assuntos fúteis. Nos sites da internet isso é muito evidente. Qualquer coisa parece ser assunto. Fulano desceu em Congonhas (risos). Isso não é notícia, evidentemente. Mas tem que preencher os espaços, tem que botar foto de artista descendo do avião… Estréia, então. Eu em geral não vou mais a estréias, porque muitas vezes a platéia trabalha mais que o artista. Tem que estar bem vestido, a sua roupa vai ser comentada, essas bobagens todas. Minha empregada outro dia ficou com vergonha porque apareci com a mesma camisa em dois acontecimentos sociais (risos). Isso deve ter ocorrido mesmo. Acho que não estava atento ao meu figurino (risos). Além disso, você é quase sempre solicitado a fazer resenhas críticas no corredor do teatro, tem que sair de casa preparado para estar inteligente, dizer se gostou, por que gostou. Isso quando não enfiam o gravador na sua cara na saída do cinema para saber o que você achou da reunião do Copom, se você acha que a taxa de juros vai cair meio ponto, se o viés é de baixa ou de alta.

Folha – Você convive com assédios variados há muito tempo. Isso mudou de uns tempos para cá?

Chico – Piorou muito. Isso não era assim. No tempo em que nós andávamos expostos, raramente acontecia de sair uma nota dizendo ‘fulano foi visto bebendo em tal bar’. Todos os dias nós estávamos no Antonio’s -o Vinícius de Moraes, o Tom, o Rubem Braga, eu. Falavam-se barbaridades, brincava-se muito, bebia-se à beça. Se alguém estivesse por perto anotando, acabava, o Antonio’s fechava. Nós andávamos por aí. Ninguém fotografava. Hoje parece que vivemos numa espécie de Big Brother permanente.

Folha – O Rio, onde você mora há muito anos, também mudou muito de cara, em termos sociais. Na sua música, quando a gente pega, por exemplo, dois sambas como ‘Estação Derradeira’, de 1987, e ‘Carioca’, de 1998, percebe-se com clareza essa mudança. Os personagens são outros, a atmosfera é outra, a barra é muito mais pesada, apesar dos muitos encantos da cidade. Como você sente isso no dia a dia?

Chico – O clima hoje na cidade é muito mais pesado. Para não falar lá de cima, na própria zona sul já há territórios demarcados. Eu conheci a praia como um espaço democrático. Hoje em dia já se sente no ar a idéia de que vai existir logo uma fronteira entre Ipanema e o Leblon. Tem um pessoal na altura do Jardim de Alá [moradores de um cortiço na rua do canal que divide Ipanema e Leblon] que desce ali e ocupa a praia. Vira uma paranóia, vira uma hostilidade com esses garotos que ficam circulando ali. Assaltar na praia é o pior negócio que existe. De vez em quando acontece. No dia seguinte, vem a polícia e enfia os meninos no camburão, quando não faz coisa pior. Eles querem tirar da praia, sumir com eles dali. Não vai ter onde botar esses meninos.

As soluções sugeridas para isso, as coisas que eu leio nas cartas dos leitores dos jornais, em geral são fascistas. Virou moda responder a quem defende os direitos humanos com o trocadilho infame dos ‘humanos direitos’ contra os vagabundos que nos retiram o direito de andar livremente pelo calçadão. Isso quando não se defende abertamente a pena de morte, a reclusão dos garotos de rua, a diminuição da maioridade penal, a prisão perpétua. Eles querem exterminar com os pobres do Rio. Se puderem sumir com aquilo tudo -ótimo. Os meninos são os inimigos, são os nossos árabes, são os nossos muçulmanos.

Folha – E o problema cada vez mais grave do tráfico, como fica? Porque o tráfico virou talvez a única perspectiva de ascensão social, ou de possibilidade de um enredo vitorioso na cabeça de um menino morador da favela.

Chico – É. Assim como o futebol ou o pagode, o tráfico virou um veículo de ascensão, de chance de ter dinheiro, poder, mulheres e fama, mesmo ao preço de uma vida muito curta. É o que se reserva para um menino sem estrutura familiar, sem emprego, sem quase nada. Eu não vejo outra saída para a violência ligada ao tráfico senão a descriminalização de alguma forma, não sei se total ou parcial, das drogas.

Lembro de ter lido nos jornais que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, era favorável a essa idéia quando tomou posse. Não sei porque o governo não levou e não leva essa discussão adiante. Isso pode ser desgastante para os índices de popularidade do governo, talvez por isso ninguém toque no assunto.

Talvez pensem que não é o momento de enfrentar o problema em razão de alianças e de compromissos com os evangélicos do PL, essas coisas. Mas se não enfrentarem o problema agora, quando é que vão enfrentar? Se o Lula não enfrentar… Isso tem a ver com tudo o que a gente estava falando antes, com o rap, com o que os garotos da periferia estão falando, com a falta de perspectivas, com a violência toda que está ali, manifesta nas canções.

O Lula sabe muito bem o que é isso. Se não encarar isso, não sei quem vai fazer. Não entendo por que não se discute isso a sério.

Folha – Você acha que o governo, para além dos constrangimentos econômicos, está deixando escapar entre os dedos oportunidades históricas de intervenção social?

Chico – Acho. Acho. Entendo os compromissos, o FMI, a dívida etc. Tudo bem. Mas isso não tem nada a ver com essas outras omissões. Ou é isso ou é a Bíblia.’