Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Terra Magazine

ISABELLA NARDONI
Carlos Drummond

Cobertura do Caso Isabella fere o interesse público

‘‘É o julgamento mais importante da história’, disse, categórico, o repórter de televisão. Talvez um descuido. Certamente, um exagero. No seu quarto dia, o julgamento do pai e da madrasta de Isabella Nardoni superou em importância, na infeliz qualificação feita por mais de um jornalista, decisões de todos os tempos tomadas por tribunais nacionais e internacionais. Suplantou os julgamentos de Nuremberg, dos genocidas nazistas da Segunda Guerra Mundial, responsabilizados pela morte de seis milhões de pessoas; e de Ruanda, dos assassinos de um milhão de integrantes da etnia tutsi e de hutus moderados entre 1994 e 1995. No Brasil, ficou acima do julgamento da morte de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado do Carajás, no Pará, por um pelotão de 85 policiais militares.

Estas rememorações pretendem ilustrar a desproporção atingida pela cobertura midiática da tragédia paulistana. Por reunir ingredientes de crueldade extrema, continha eloqüência suficiente para prescindir da cobertura quase ininterrupta feita pela mídia. O interesse em estender ao máximo as transmissões fica evidente nesta pergunta de uma apresentadora de tevê a um experiente repórter, quando este informou que Alexandre Nardoni havia chorado ao depor: ‘Você acha que o choro do depoente foi sincero?’. Posto em situação incômoda, só lhe restou dizer: ‘É uma resposta difícil. A impressão é que o choro do pai de Isabella sensibilizou os jurados’.

Existe, por suposto, curiosidade e interesse legítimos das pessoas em ser informadas sobre episódios do gênero. Mas a extensão da cobertura, com links diretos de todas as emissoras conectando dia e noite o local do julgamento com a casa de cada telespectador, agigantou a audiência e criou uma oportunidade rara de suplementar o caixa dos meios de comunicação. A reportagem rendeu recorde de audiência, por exemplo, ao programa Boa Tarde, da Bandeirantes, no dia 23. O levantamento do Ibope revelou 3 pontos de média e picos de 4. A audiência típica é de 1 ponto. A matéria continha ‘um cenário especial, reproduzindo o quarto da menina para explicar os fatos’, revelou a Folha Online. O Jornal da Record obteve o segundo lugar isolado na média de audiência, com 10 pontos de média e pico de 12, de acordo com o mesmo veículo. Ana Paula Padrão saiu da bancada para acompanhar in loco o julgamento no Fórum de Santana. Supõe-se que os dados das outras emissoras, não divulgados até o término desta coluna, tenham acompanhado o festival de picos de audiência.

O jornalismo, sabe-se, é atividade de interesse público viabilizada pelo interesse privado, de onde se conclui que obter lucro é não só desejável como indispensável para manter não só as empresas, mas o próprio jornalismo. Quando o interesse privado se hipertrofia, o interesse público, simetricamente, sofre uma atrofia. Apenas a lógica da busca da audiência e do lucro máximos explica a interpelação de um repórter por uma apresentadora de tevê sobre a autenticidade do choro de um depoente. Ou a construção de um cenário reproduzindo o quarto da menina assassinada.

A cobertura do julgamento do assassinato de Isabella Nardoni, do modo como foi feita e na proporção assumida, passa a anos-luz de distância do interesse público. Pode ser classificada, conforme os bons manuais de jornalismo, como de interesse do público, ou seja, de atendimento àquilo que o público supostamente quer, ainda que esse desejo seja movido pelo gosto pela tragédia. Mas atender ao interesse do público, sabe muito bem a mídia, é caminho certeiro para locupletar o interesse privado. Já o interesse público, este busca sempre o bem comum e por esse motivo é vital para a democracia. Em uma sociedade mais equilibrada, a democracia tem o poder de coibir os excessos do interesse privado.

Algumas das barbaridades a que pode levar a derrota do interesse público na mídia, em casos extremos, estão contadas por Gunter Walraff no livro a Fábrica de Mentiras, sobre o jornal sensacionalista alemão Bild, onde trabalhou. Um dos casos mais chocantes é o do repórter que fala por telefone com um suicida em potencial encorajando-o levar adiante o seu intento para gerar uma matéria jornalística exclusiva. A obra teve várias passagens censuradas pela justiça alemã durante longo tempo. Outras barbaridades estão próximas de nós, como o caso do deputado mais votado do Amazonas acusado de encomendar crimes que apresentava no seu programa de televisão.’

 

LUTO
Claudio Leal

Thiago de Mello recitou ‘Cotovia’ para Armando Nogueira

‘Terrível ofício, o de despedir-se dos amigos. O poeta Thiago de Mello foi acordado na manhã desta segunda pela morte do jornalista Armando Nogueira, seu ‘amigo principal’ durante seis décadas. ‘Começamos a fazer jornalismo no mesmo dia, em 1952, e nunca mais nos separamos’, conta o escritor amazonense, enquanto chora no aeroporto de Manaus, à espera de um avião para o Rio de Janeiro.

Nas travessias aéreas, Armando e Thiago disputavam uma guerrilha de marchinhas e canções. Quem sabia mais jardineiras, auroras e chiquitas bacanas? Havia ainda os diálogos entrecortados por citações de Machado de Assis. De memória.

– Primeiro, andei de barco. Depois, andei de carro, para pegar o avião e ouvir a fala macia do meu amigo. Estive com ele há dez dias, falei no ouvido dele. Agora, vou pegar o mesmo voo. Só que dessa vez não vou ouvir mais a fala suave do meu amigo. Vou vê-lo dormindo pela última vez.

Armando Nogueira morreu a um dia do aniversário de Thiago de Mello, que completa 84 anos neste 30 de março. Nunca publicou um livro sem submetê-lo, antes, ao cúmplice de poesia. ‘Ele não era o melhor amigo, não. Era o amigo principal, era o amigo completo’, proclama o vago mago, como o definiu Pablo Neruda. ‘Me acordava para ler uma crônica’.

Há onze dias, no hospital Copa D’Or, o poeta de Barreirinha recitou o poema ‘Cotovia’, de Manuel Bandeira, no ouvido de Armando:

‘- Alô, cotovia!

Aonde voaste,

Por onde andaste,

Que saudades me deixaste?’

‘Ele reconheceu minha voz e abriu o olho esquerdo’, descreve Thiago de Mello, perto de desligar o telefone: ‘Adeus, companheiro!’.

E adeus, Armando Nogueira.

***

Por que não terminar de ler o poema de Manuel Bandeira, na despedida do cronista de ‘Na grande área’?

‘Cotovia’

– Alô, cotovia!

Aonde voaste,

Por onde andaste,

Que saudades me deixaste?

– Andei onde deu o vento.

Onde foi meu pensamento

Em sítios, que nunca viste,

De um país que não existe…

Voltei, te trouxe a alegria.

– Muito contas, cotovia!

E que outras terras distantes

Visitaste? Dize ao triste.

– Líbia ardente, Cítia fria,

Europa, França, Bahia…

– E esqueceste Pernambuco,

Distraída?

– Voei ao Recife, no Cais

Pousei na Rua da Aurora.

– Aurora da minha vida

Que os anos não trazem mais!

– Os anos não, nem os dias,

Que isso cabe às cotovias.

Meu bico é bem pequenino

Para o bem que é deste mundo:

Se enche com uma gota de água.

Mas sei torcer o destino,

Sei no espaço de um segundo

Limpar o pesar mais fundo.

Voei ao Recife, e dos longes

Das distâncias, aonde alcança

Só a asa da cotovia,

– Do mais remoto e perempto

Dos teus dias de criança

Te trouxe a extinta esperança,

Trouxe a perdida alegria.

(Manuel Bandeira)’

 

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