Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

TV chavista diz que há ‘festa’ em Trípoli


Folha de S. Paulo, 24/2


Flávia Marreiro


Cobertura de TV chavista diz que há ‘festa’ em Trípoli


Autorizada a transmitir de Trípoli, a equipe da rede de TV chavista Telesur provocou controvérsia ontem ao reportar que a capital da Líbia estava ‘em total normalidade’ e insinuar que outras redes estavam ‘pintando um panorama praticamente de guerra civil’ quando há ‘festa’ no centro da cidade.


O repórter Jordán Rodríguez falou ao vivo, por telefone, por pouco mais de cinco minutos -em transmissão pela Telesur e pela TV estatal local- no começo da tarde.


Rodríguez evitou criticar o governo de Muammar Gaddafi, um aliado próximo de Hugo Chávez, por haver detido por cinco horas a equipe de repórteres. Disse que a restrição respondeu a ‘razões óbvias’.


‘Foi um fato fortuito [a detenção]. Foi um ato justamente para confirmar quem está chegando, dada a situação de tanta desinformação’, continuou. ‘Tínhamos de informar quem éramos, de onde vínhamos e para que estávamos na Líbia.’


‘As pessoas dizem que [Gaddafi] não é um presidente, que é um Deus. Que é mentira o bombardeio da cidade por aviões militares.’


O embaixador do Brasil em Trípoli, George Ney Fernandes, também afirmou ao jornal ‘O Globo’ que a cidade não foi bombardeada.


O repórter da Telesur disse ainda que entre 300 e 400 pessoas -na contagem extraoficial de uma ‘fonte diplomática’- morreram em ‘enfrentamentos’ após tentar ‘tomar bases militares’ e outras instituições oficiais.


CRÍTICAS E AJUSTE


Foi o suficiente para inflamar os ânimos dos usuários do Twitter na Venezuela, que inundaram o microblog com acusações de que o governo Chávez usa a Telesur para difundir versões pró-Gaddafi.


O popular portal ‘Notícias 24’ postou que a TV chavista reportava calma em todo o país -e não só na capital. Teve de corrigir mais tarde.


Em reação à controvérsia, a própria TV estatal local exibiu uma nova edição da reportagem de Rodríguez, dessa vez frisando que o repórter falava apenas de Trípoli.


A Telesur também mudou o enunciado ao longo da tarde: passou a noticiar ‘lealdade’ a Gaddafi na capital ao lado de protestos no leste, onde a oposição ‘estaria controlando’ algumas cidades, citando a Al Jazeera.


Chávez lançou a Telesur em 2005, em aliança com Argentina, Equador, Bolívia e Cuba, com a intenção declarada de contrabalançar a cobertura de redes como CNN e BBC. O ex-presidente do canal Andrés Izarra é agora ministro de Comunicações.


As revoltas no mundo árabe têm movimentado o mundo político venezuelano. Chávez mantém forte ligação política com Gaddafi -no começo da semana, circularam rumores de que o ditador estaria se preparando para fugir para a Venezuela.


Enquanto os opositores se empenham em traçar supostas semelhanças entre os governos em crise e o do venezuelano, Caracas insiste que as soluções para o conflito devem surgir sem ‘ingerência’ dos Estados Unidos.


 


 


Folha de S. Paulo, 25/2


TV companheira


Reina a normalidade em Trípoli. O clima é de festa na capital da Líbia. Sim, algumas centenas de pessoas já morreram no país de Muammar Gaddafi. Os enfrentamentos, contudo, não abalam o quadro geral -em que a população se mantém leal ao líder líbio.


Nestes termos, a Telesur, rede oficial da Venezuela, noticiou os protestos contra a ditadura de Gaddafi -que já ganharam feições de guerra civil.


A serviço do governo de Hugo Chávez, a equipe da emissora foi autorizada a transmitir de Trípoli sua versão dos acontecimentos. Os repórteres bolivarianos passaram cinco horas detidos pelas autoridades líbias. O percalço não lhes diminuiu a simpatia pelo regime: ‘Foi um fato fortuito’, disse um dos jornalistas, ‘dada a situação de tanta desinformação’ vigente no país.


As relações entre o governo venezuelano e o ditador líbio se mostram, mais uma vez, fortes e afetuosas nesse episódio. Sem chegar tão longe quanto Gaddafi no delírio ditatorial, Hugo Chávez não perde oportunidade para golpear a imprensa, açambarcar os demais poderes, estatizar a economia, lançar bravatas contra o Ocidente, expandir-se em provocações e bufonadas.


Se, como se cogita, Gaddafi terminar procurando asilo em Caracas, no caso de ser apeado do poder, a hospitalidade de Chávez será justa e natural. No mínimo, um reconhecimento pelo fato de o ditador líbio ter agraciado o líder venezuelano com o Prêmio Gaddafi de Direitos Humanos, em 2004.


O Brasil se afasta, ao que tudo indica em definitivo, do risco de receber tais honrarias. Aprovando sem delongas uma condenação ao regime de Gaddafi no Conselho de Segurança da ONU e a proposta de que se investiguem os crimes do ditador, o Itamaraty aparenta retificar, no governo Dilma Rousseff, a excessiva complacência da era Lula com ditaduras de estilo ‘terceiro-mundista’.


Que Chávez, Castro, Gaddafi e Ahmadinejad se entendam e cubram-se de elogios pelas respectivas televisões oficiais (acompanhados, por vezes, de um Berlusconi nas estripulias); o Brasil pós-Lula não tem nada a ganhar nessa sinistra companhia.


 


 


Folha de S. Paulo, 25/2


Eliane Cantanhêde


Barbas de molho


Enquanto ditadores árabes caem do camelo, um a um, e Muammar Gaddafi, Muamar Khadafi, Muammmar al-Gathafi, Momar Kadaffi ou o que você quiser já até ensaia o papel de ‘mártir’, a rede Telesur relata que há um clima de ‘festa’ e de ‘normalidade’ em Trípoli, capital da Líbia, como nos contou Flávia Marreiro, correspondente da Folha em Caracas.


É de matar de rir, ou de chorar. A Telesur é uma invenção de Hugo Chávez com Cuba, Bolívia, Equador e Argentina (o que fazem os argentinos aí?!) e deve estar treinando para quando a onda de revoltas populares se descolar do Oriente Médio para as Américas.


Jornalistas de verdade estão impedidos de entrar na Líbia, mas os da Telesur entram, acham bacana ficar cinco horas detidos e dizem que tudo está na santa paz, enquanto organizações independentes relatam mais de 600 mortos e 30 mil pessoas de todas as nacionalidades pulando fora como dá.


Mal comparando, a Telesur lembra o PCdoB nos anos 1990. Esgotado o estoque de países a apoiar após o colapso do comunismo, o partido agarrava-se à Albânia, descrito como um paraíso na terra… até a diáspora de albaneses esquálidos, cheios de piolho e sarna, fugindo desesperados para a Itália.


A diferença é que, naquela época, os albaneses não tinham internet, como têm agora os cidadãos de Tunísia, Egito, Líbia, Bahrein, Marrocos e Arábia Saudita -onde o rei Abdullah tenta se antecipar ao desastre anunciando um saco de bondades para a população.


Fidel e Chávez, como Gaddafi (ou Kadaffi, al-Gathafi…), também chegaram ao poder cheios de boas intenções e destronando regimes podres e injustos, mas sucumbiram ao mesmo mal: a sensação de que são donos da verdade e dos destinos de seus povos, endeusando-se e eternizando-se em tronos.


Em vez de mandarem a Telesur reinventar a realidade na Líbia, deviam é botar as barbas de molho.