Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Último Segundo

FILOSOFIA & HISTÓRIA

Alberto Dines

Uma pausa para Spinoza, 18:20 28/07

Impossível rememorar todas as efemérides, a cada momento acende-se uma velinha de aniversário para lembrar alguém, alguma coisa. O tempo sempre tem algo a nos dizer através de mensagens, cifradas ou ostensivas, ancoradas em datas ou sem qualquer motivo aparente.

É o caso do filósofo de origem portuguesa Bento (ou Baruch) Spinoza capaz de oferecer um fluxo interminável de verbetes diários mas que na última quinta, 27 de Julho, reapareceu empurrado por um pretexto inquestionável. Naquele dia, em 1656 — portanto, há exatos 350 anos — em Amsterdã, aquele jovem de 24 anos era excomungado pelos rabinos da comunidade judaica por causa das suas idéias heréticas.

Na realidade, Spinoza foi excomungado pela associação de todas as ortodoxias, intolerâncias, fanatismos e respectivos parceiros, os conformados. A Holanda era o único país da Europa que oferecia abrigo aos judeus escorraçados, suas lideranças não poderiam confrontar os anfitriões. E graças ao conluio dos sectarismos, a lembrança do anátema imposto a Spinoza ficou restrita aos filósofos de plantão, não conseguiu entrar nas agendas de eventos públicos.

Não obstante o entusiasmo de neurobiólogos como António Damásio, Spinoza é um interminável estopim de celeumas. A biologia do sentimento (como é chamada uma das doutrinas nele inspiradas), é muito mais do que o mapeamento do cérebro, é uma nova visão do ser humano.

Spinoza pode ser visto como um precursor radical do Iluminismo setecentista e do humanismo oitocentista. Primeiro livre-pensador assumido que conseguiu sobreviver ao aparato do obscurantismo. Ao contrário do seu quase-contemporâneo Giordano Bruno, queimado pela Inquisição.

Intoxicado por Deus e, no entanto, capaz de questioná-lo, afirmou que Deus não poderia ter a forma humana nem existir fora da Natureza. Não negou Deus, mas incluiu-o em nossa esfera. De certa forma, colocou-nos até mais perto.

Spinoza tem algo a nos dizer também sobre política e principalmente sobre a exacerbação da política: as guerras. Ele trata dos conflitos bélicos no Tratado Teológico-Político e mais especificamente no Tratado Político:

‘Para fazer a guerra basta ter a vontade de fazê-la. Mas a paz necessita da concordância e a vontade de uma outra sociedade. De onde se segue que o direito à guerra é próprio de todas as nações enquanto que o direito à paz não é próprio de uma sociedade mas de, pelo menos, duas…’

Acionada a implacável dinâmica da guerra entre Israel e o Hizbullah, percebe-se quão remota ficou a possibilidade da paz. Todos se sentem no direito à guerra, cada beligerante comprometido com a devida resposta ao golpe adversário. Quem está pagando o preço maior é o estado soberano do Líbano, transformado numa terra de ninguém, arrasado pelo fogo do inimigo e igualmente pelo fogo amigo. Seu ‘direito à paz’ (para usar a expressão de Spinoza) não encontra eco ou parceiro porque, na realidade, foi transformado numa arena onde se confrontam as vontades ou direitos dos outros.

Naquela Amsterdã impregnada pelo calvinismo por um lado e pelas recordações dos horrores da Inquisição ibérica por outro, Bento-Baruch- Benedito pretendia aproximações e não exclusões. Percebeu os perigos dos fanatismos coletivos, as inevitáveis colisões e, resignado, passou o resto da vida polindo lentes, tentando enxergar a existência humana como uma sofrida combinação de ética, racionalidade, discrição, coragem e sentimento. Aquele jovem sábio amava a humanidade, queria vê-la iluminada e, não, enfiada no escuro.

Num momento tão dramático como o atual, quando algumas doses racionais podem desativar o desvario generalizado, o castigo da marginalização imposto a Spinoza precisa ser lembrado com estímulo. Chamamento ao direito de pensar. Convocação ao direito de individuar-se e participar. Participar com o que temos de bom, sem agregar ressentimentos.

David Ben Gurion, o patriarca do Estado de Israel, pretendeu remover o banimento de Spinoza, não conseguiu: o Estado não podia impor-se à Religião. Amaldiçoado e, ao mesmo tempo, bendito, Baruch Spinoza precisa ser lembrado, ainda que por alguns instantes. Como símbolo da razão, ainda que fugaz.’



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