Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um internacional sistema de indiferença

Na terceira e última parte de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, intitulada ‘A Luta’, quando a revolução anti-sistêmica de Canudos dá mostras evidentes de que foi derrotada, sobretudo com a morte de Antônio Conselheiro, é possível ler um parágrafo em que um general do exército destrói parte da Igreja do Arraial, dessacralizando-a, como um fiel ímpio religioso, se é que me entendem. O gesto ‘iconoclástico’ do general é em seguida imitado por um soldado raso, pois este, com dinamite, destrói e dessacraliza de vez a Igreja de Canudos, buscando, com esse gesto, ser reconhecido como valente profanador da Igreja do povo, seja pelo general, seja pelos demais soldados rasos como ele.

De forma perspicaz, no parágrafo posterior, a cena apresentada em Os Sertões é outra: Euclides da Cunha narra – descreve, com detalhes – um general totalmente indiferente diante das mortes de miseráveis crianças, mulheres, homens e velhos da dizimada Canudos. Mesmo estando no centro do cenário dessas trágicas ‘mortes matadas’, Artur Oscar, general do oficial exército brasileiro que massacrou Canudos, realiza, no entanto, ‘palestras, discorre sobre assuntos diversos, sempre com o espírito franco e jovial’.

Tendo em vista ainda o parágrafo em que o general Artur Oscar entra deploravelmente para a História do Brasil, Euclides da Cunha descreve a indiferença dos assassinos em face dos assassinados, demonstrando claramente que não há arrependimento, sentimento de culpa, asco, nada. A comunidade de Canudos é massacrada e todos os ‘vencedores’ das forças oficiais do Brasil estão leves, satisfeitos, alegres e seguem suas vidas privadas, com os pedantismos, as arrogâncias e inclusive as alegrias e algaravias dos jovens, como se nada tivesse ocorrido, como se cerca de vinte mil brasileiros exilados pela pobreza, o pior exílio de todos, não tivessem sido dizimados sem piedade.

A profanação de ‘crenças e valores’

A indiferença é parte da profanação da Igreja de Canudos, a parte principal, aliás, de vez que se constitui como uma atitude de desprezo profundo à vida daquelas pessoas desterradas, logo à ‘igreja’ de suas vidas ou de suas vidas como ‘igreja’, como religiosidade que insiste em viver, apesar da indiferença geral. O obstáculo à alegria dos poucos foi suplantado e devidamente esconjurando. É hora de fingir conhecimentos, camaradagens, simpatias, sentimentos de honra. É hora, enfim, de viver as trivialidades de nossas taras, manias, luxos, egoísmos, sentimentalismos, amores românticos, pois o povo se encontra em seu devido lugar: a dependência, a humilhação, a derrota, o servilismo, a morte.

E é porque esses outros sertões, como nos diz o narrador legionário de Grande Sertões: veredas, o personagem Riobaldo, de Guimarães Rosa, está em todas as partes, em todas as artes, que é possível adaptar as duas situações narradas nos dois sequenciais parágrafos de Os Sertões, de Euclides da Cunha, para os tempos atuais, de tal sorte a observar que nada mudou, que somos tanto mais pré-modernos quanto mais modernos/pós-modernos supomos ser; ou mais bárbaros, tanto mais nos vemos e experimentamos como civilizados; do jeitinho do general que vomita piadas e pedantismos civilizatórios, com a autoconfiança dos ‘vencedores’ exatamente porque acredita – é pio – ter derrotado a barbárie, a ignorância e o diabólico, através de sua participação generalesca no genocídio de Canudos.

O capitalismo contemporâneo, em sua guerra total para roubar-concentrar-gozar as riquezas dos povos, faz exatamente, e na mesma sequência, o que é narrado-descrito nos dois parágrafos analisados de Os Sertões: profana sem cessar as religiões dos povos e ao mesmo tempo produz um monopólio da palavra que nada mais é que a constituição do monopólio global da indiferença ao sofrimento sem fim dos milhões – para não dizer trilhões, se transbordarmos o plano humano – de seres que habitam esse planeta, por ora cada vez mais inabitável, em face da ganância desenfreada dos poderes constituídos.

No seu lado profanador, o capitalismo desconsidera qualquer valor e, mais do que isso, apropria-se dos valores, crenças e éticas dos povos, dessacralizando, assim, tudo que é ou pode se tornar uma fé em um mundo mais justo, fundado no respeito ao direito de viver em plenitude e dignidade – direito dos e para os povos. É como profanação das ‘crenças e valores’ dos povos que o capitalismo dessacralizou a democracia, como governo de, para e pelo o povo, transformando-a em governo de, para e pela plutocracia que manda e desmanda no mundo.

O capitalismo não acredita nos ‘deuses laicos’

Em nome da ‘religião democrática’, o capitalismo massacra e espalha radiações de plutônio empobrecido, através de mísseis diversos, sobre os corpos vulneráveis dos povos, a pretexto de, em nome da democracia, protegê-los, como ocorre agora na Líbia. Eis aí o cúmulo da heresia à democracia, aos valores vitais dos povos – o valor-direito de garantir as suas nuas vidas através de uma chuva de partículas radiativas a dessacralizar por gerações os fetos das mães dos povos, logo dos filhos dos povos, deformando-os e tornando-os povos natimortos.

Em nome da ‘religião revolucionária’, da revolução dos povos, para os povos, o capitalismo atual não apenas se apropria dos valores revolucionários como instiga populações a realizarem o paradoxo auto-herético de uma revolução contra si mesmas, pois quem não sabe – se é que quer saber – que agências do Departamento de Estado do centro do capitalismo contemporâneo, Estados Unidos da América – assim como a CIA e o Pentágono – cooptam, financiam e treinam jovens pelo mundo afora, a fim de que estes protagonizem ‘revoluções coloridas’ contra os interesses vitais dos povos de suas respectivas nacionalidades? Quem não sabe – se é que quer saber – que tais comprados jovens têm sido, muitas vezes, os atuais ‘revolucionários’ ou cavalos de Tróia contra seus próprios povos?

Quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar a dessacralização que o capitalismo promove hoje contra o desejo e a potência revolucionários dos povos, manipulando-os e cuspindo neles, fazendo-os voltar caricaturalmente contra eles mesmos? Pois não é isso que está ocorrendo na Líbia neste momento? Pois não é isso que pretendem fazer com o povo Sírio? Não é isso que querem fazer com o povo iraniano, cubano, venezuelano? Mas como conseguem isso, fazer os povos se rebelarem contra si mesmos?

‘Isso é absurdo, inverossímil, não passa de mais um argumento falacioso, apto a subestimar a força revolucionário dos povos!’ – poderão contra-argumentar. Mas é disso que estou falando! Respondo: o capitalismo subestima o potencial revolucionário dos povos, pois não apenas não acredita nos ‘deuses laicos’ inscritos nesse potencial revolucionário – o laico deus justiça, o laico deus liberdade, o laico deus igualdade, dignidade –, mas também USA e ab-USA das energias revolucionárias, empurrando os povos contra o motor a combustão de seus erráticos desejos de se transformarem, um dia, em capitalistas – eis a armadilha!

A promoção da Igreja do capital

Mas como isso é possível?

É aqui que entra o parágrafo da indiferença em relação ao sofrimento dos povos – o parágrafo de Os Sertões de Euclides da Cunha – esse visionário que soube ver os futuros infaustos dos povos, alertando-nos para o pior: o massacre de presentes-futuros Canudos pela besta fera profanadora do capital, com suas bárbaras justificativas civilizatórias. É através do parágrafo sobre a indiferença das ‘forças oficiais’ em relação ao sofrimento dos povos que é possível entender a maneira pela qual o capitalismo contemporâneo consegue fazer com que os povos se rebelem contra si mesmos. E essas ‘forças oficiais’ nada mais são que o sistema de comunicação internacional, assa oficial oficiosa força bélica da desinformação, tergiversação, dissimulação, exibicionismo, como máquina estrategista da promoção da indiferença e principalmente da auto-indiferença dos povos em relação a si mesmos, posto que em relação a seus próprios destinos de e para os povos.

Diferentemente de Canudos, de sua época, final do século 19, o capitalismo atual criou um sistema de indiferença planetário – os meios de comunicação de massa! –, sistema que é a principal arma bélica do capital, pois tem como principal objetivo produzir povos dóceis e, quando interessa, produzir ‘revolucionários’ povos que combatem a si mesmos, ainda que alimentados pela crença de configurar um cenário coletivo de um mundo mais justo, visceralmente democrático, para eles mesmos.

Como sistema planetário de indiferença, os meios de comunicação – ou de desinformação – fazem de tudo para que seus fins justifiquem os meios e seus meios justifiquem os fins, de tal sorte a que os seus meios – a promoção da Igreja do capital – sejam os seus fins, sem diferença alguma: colocar os povos a serviço do capital, contra eles mesmos.

Anônimos sujeitos-objetos massificados

Para tanto, dois objetivos são permanentemente perseguidos:

O primeiro objetivo dos meios de desinformação ou do sistema de indiferença internacional é o de transformar os potencialmente revolucionários povos em dóceis povos obedientes, serviçais e dotados de uma bárbara indiferença em relação a seus próprios destinos de povos – agora humilhados. A cultura de massa ou a indústria cultural ou a sociedade do espetáculo são os meios que os meios de comunicação utilizam para idiotizar e barbarizar os povos, através da auto-indiferença dos povos em relação a si mesmos.

Para tanto, esse sistema de indiferença apresenta os povos como massas de manobra, felizes em serem obedientes povos dóceis, logo sem história, logo sem passado, como se a temporalidade dos povos fosse ou devesse ser – e assim é, através dos meios de desinformação – constituída por um presente eterno no qual e através do qual os povos se encontram numa posição de anônimos seres em busca da fama – logo em busca do próprio capitalismo, esse intangível lugar por excelência da fama, porque é o concreto lugar da concentração da riqueza.

Através da cultura de massa, os meios de desinformação ou o sistema de indiferença do capitalismo contemporâneo divide o mundo em famosos e anônimos, instigando-nos sem cessar a desejar nos tornar famosos, como se só pudéssemos ser felizes se nos tornarmos famosos. Através desse subterfúgio, que é a base de toda a programação dos meios de desinformação internacional, os povos não param, como anônimos, de transformar os famosos em famosos, pois no fundo e no raso são os povos que garantem que os famosos jogadores famosos sejam famosos de fato; assim como os famosos atores famosos; assim como os famosos animadores de auditórios famosos; assim como os famosos cantores…

Ao conseguirem dividir o mundo entre famosos e anônimos, o sistema de indiferença internacional, por consequência, ‘mata dois coelhos numa cajadada só’, pois de um lado transforma os povos em adoradores de uma religião que não é e nem pode nunca ser suas próprias religiões, que é a religião de adorar os famosos e, de outro lado, ao conseguirem fazer com que os anônimos povos adorem os famosos não povos, os meios de comunicação de massa conseguem fazer com que os povos passem automaticamente a adorar o próprio sistema, o capitalismo, esse sistema que faz com que esses famosos sejam antes de tudo ricos, de tal sorte a configurar midiaticamente um novo perfil para o burguês, ou o burguês ideal: ser famoso e ser rico, que é o que o povo quer, através dos meios de desinformação, ser famoso e rico, situação que deixa obviamente o povo rendido, dócil, a trabalhar pobremente para o sistema que os oprime; que os torna anônimos sujeitos-objetos massificados.

Chávez derrotou o sistema de indiferença

Por sua vez, o segundo objetivo dos meios de desinformação internacional ou do sistema de indiferença global é o de focalizar o desejo dos povos, direcioná-lo, seja através da tentativa de imprimir nos povos o desejo de não serem povos, mas famosos; seja através da manipulação do rosto que os povos devem perseguir, quando se rebelam. Os meios de comunicação, assim, determinam – ou tentam determinar – qual é o interlocutor ao qual os povos devem odiar, quando, por um motivo ou outro, queiram deixar de ser dóceis e realizar revoluções, situação que faz com que os povos, de uma forma ou de outra, errem literalmente o alvo, destronando do poder figuras que – mesmo que sejam déspotas – não passam de fantoches dos verdadeiros poderes que oprimem os povos, condenando-os a serem anônimos seres sem vida própria, que é a pior forma de dizimar os povos: idiotizá-los através da cultura de massa.

É precisamente esse segundo objetivo que o sistema de indiferença internacional não cessa de perseguir com a atual rebelião dos povos do Norte da África e do Oriente Médio: canalizar as revoltas de tal sorte a fazer com que os povos errem o alvo, identificando todo o desejo de justiça na revolta contra verdadeiros fantoches do sistema de dominação planetário, que é o capitalismo, ou naqueles outros perfis ou líderes, os quais não obstante estarem, de uma forma ou de outra, massacrando os povos, estão ao mesmo tempo dificultando o livre acesso das multinacionais do Ocidente colonizador às riquezas que existem nos subsolos desses países, principalmente se essa riqueza for o petróleo, como ocorre na Líbia, no Irã e na Venezuela, embora, seja preciso destacar: a Venezuela não é governada por ditador, pela evidente razão de que Hugo Chávez é um presidente eleito democraticamente, inclusive se tivermos como parâmetro o profano processo eleitoral do capitalismo, baseado em eleições cujos eleitos geralmente são aqueles que têm o apoio do sistema de indiferença, ou da mídia dominante, assim como são aqueles que têm o apoio das burguesias locais e internacionais, que os enchem de dinheiro.

Hugo Chávez, é bom dizer, venceu as eleições que disputou na Venezuela, derrotando nas urnas não apenas os concorrentes diretos, mas também o sistema de indiferença ou mídia da Venezuela, além, é claro, de ter vencido, através do voto popular, o poder econômico local-internacional, que patrocinou financeiramente os outros candidatos.

Uma democracia sem povo

De qualquer forma, como esse não é o foco deste artigo, mas as mídias como sistema de indiferença internacional, retomo o fio da meada, concluindo que vivemos, hoje mais do que nunca, no planeta Canudos, no qual e através do qual tropas oficiais, auto-denominadas civilizadas, somam suas forças para derrotar e tomar as riquezas dos povos, ao mesmo tempo em que são amparadas por um sistema de indiferença igualmente planetário, cuja utilidade bélica é também a de esconder a informação de que os povos estão sendo assassinados por tais forças civilizadas; inclusive nos desinformando também, quando escondem, protegem e, pasmem!, tornam famosos exatamente os verdadeiros ditadores que humilham, subjugam e transformam os povos em anônimas massas dizimadas, como é o caso do famoso Obama, presidente dos EUA, do famoso Nicolas Sarkozy, da França, e do primeiro-ministro inglês, David Cameron.

A única saída para essa guerra civil planetária, que é o estado de exceção capitalista como regra geral, continua a mesma de sempre: a revolução dos povos! Revolução que deve ser também em relação ao dominó da dominação planetária, que pode ser em relação ao ditador de plantão, mas também que deve ser em relação ao poder econômico, logo em relação às multinacionais; que deve ser em relação ao FMI, à OMC, à ONU e, principalmente, hoje, em relação ao sistema de indiferença planetário que são as mídias sob o domínio e a serviço do capital, pois revolução alguma será verdadeiramente exitosa se não destronarmos esse sistema de indiferença internacional, os meios de comunicação, que riem, mentem, escondem, confundem, idiotizam e banalizam os povos do mundo, cada vez mais entrincheirados em Canudos de miséria, ignorância e fome.

A única saída é a de transformar o sistema de indiferença internacional em um benfazejo sistema de promoção de singularidades humanas solidárias. Singularidades que recusam a massificação e a docilidade alienada, pois desejam ou desejarão simplesmente um mundo sem opressores e oprimidos; sem famosos e anônimos, visto que a fama de cada qual será medida não pela riqueza e o exibicionismo narcisistas, mas pela capacidade de lutar contra qualquer modelo civilizatório que – inventem a desculpa que quiserem! – só existe e se garante dizimando Canudos pelo planeta afora.

Hoje esse sistema é o capitalismo, razão pela qual a revolução deve ter um horizonte de desejo bem claro: a superação do capitalismo, essa atual, malabarista e poderosa forma de rapina dos povos, com seu bárbaro sistema de indiferenças baseado em ilhas de fantasia de uma democracia sem povo, posto que constituída por oligarquias que agem como se fossem todo o povo, em nome do povo, indiferentemente, midiaticamente, belicamente.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo