Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma obra-prima que completa 35 anos

Antesdos tambores soarem na Casa Grande das Minas, num ambiente embalado pelo canto e a dança dos afro-descendentes, outro som, dos sinos, acompanhado de uma boa notícia, alegra o Natal de 1974, no Rio de Janeiro, da família do também cronista Josué Montello. O escritor anuncia aos mais próximos o encerramento dos trabalhos do último romance, Os tambores de São Luís.

Pelo êxito, a obra-prima garantiu espaço no exterior e no ano da publicação, em 1975. Meses depois saía uma segunda edição. Completa, neste final de década, 35 anos. Montello fez muito pelo Maranhão. E não apenas na literatura. Promoveu iniciativas valiosas, como a criação do Museu Histórico e Artístico do Maranhão e, como reitor da UFMA, por um ano, fez uma reforma eficiente; doou um acervo cultural à Casa que leva o seu nome etc.

A obra imortalizou o personagem Damião, negro de 80 anos de idade que sai alta hora da noite de sua residência, para o lado da Rua de São Pantaleão, esquina com Cajazeiras. Segue a pé. Não resiste e vai àquele terreiro, cheio de magia e mistério, para olhar o ritual que ali se realiza. Feliz por ouvir os tambores e apreciar a dança, o que lhe faz recordar a origem africana, caminha para o encontro familiar, lá na Gamboa (bairro).

O bater firme do sapato de Damião

O ano em que transcorre a história é 1915. Conta toda a saga da escravidão, com atrocidades e preconceito contra essa gente, que vinha de longe, para entregar o seu sangue e vida aos senhores escravocratas. Damião, negro alforriado, estudou, foi professor e solicitador, o que lhe dava direito de defender os seus de sua cor, nas instâncias competentes. Ao fazer o trajeto, passa em revista a história, com suas lendas e verdades, sobre São Luís.

Os passos lentos, mas, firmes, caminha sob a luz de lampiões de gás e a primeira pessoa que encontra é o palhaço ‘Troíra’, que coloca propagandas de seus espetáculos chatos no Teatro São Luís; em atitude idêntica, vê pessoas deixando pasquins, falando da vida alheia, por baixo da porta; ouve zoada de rodas sobre pedras e uma carruagem com cavalos sem cabeça transportando Donana Jansen, política famosa, com fama de mandona e violenta. Faz uma viagem sobre muitos outros acontecimentos ligados a políticos, padres, bispos e pessoas que integravam a paisagem da cidade. Não esqueceu o amigo Sotero dos Reis, latinista e vítima das maldades da ‘Rainha do Maranhão’, Ana Jansen, e outras figuras do século 19. Bela crônica de uma época!

Em todo o trajeto ouve com encanto e nostalgia, no silêncio da noite, o som dos tambores da Casa das Minas, que lhe fazem lembrar a viagem sofrida de seus descendestes e irmãos de cor, que livres, aqui, se tornavam escravos.

Eu, que morei adolescente na Rua de São Pantaleão, próximo à Casa das Minas, muito ouvi os tambores que tocavam, num ritual que reeditava a tradição do país distante. Quando por acaso passo à noite, hoje, por aquele local, por algum motivo, depois que li o romance de Josué Montello (1917-2006), parece, nesse momento, que ouço o bater firme do salto do sapato de Damião, andando sem pressa e com a cabeça cheia de imaginações, pela Rua do Passeio, passando pela Inveja, Cotovia, Hortas e outras.

Um dos mais completos escritores

Josué, de quem tracei o perfil no livro que publiquei recentemente, Inovações do jornalismo no mundo, é um personagem fascinante. Dominou todo o universo da literatura. Na obra há confidências dignas de um genial homem de letras. Ele soube honrar a sua terra que tanto amou. Em vários dos romances estão presentes as lembranças de sua província, ao retratar a geografia física, ruas, becos, galeria de figuras ilustres e populares, casos verídicos e outros que viraram lendas. Dominava como poucos a história maranhense. Viajava sempre a São Luís para visitar os amigos e percorrer a pé os lugares que lhe marcaram a infância e adolescência.

Certa vez, perguntado pelo apresentador de TV Oswaldo Sargentelli sobre o porquê de gostar tanto da sua cidade e não morar nela, respondeu: ‘Porque gosto de escrever com saudade da minha terra.’ Como Tolstoi, de Yasmaya Polyana, considerava que, todo aquele que deseja ser universal, deve primeiramente cultivar a sua aldeia. Assim o fez ao se referir à sua terra: ‘Infeliz é o homem que não dispõe de uma província no seu mundo de lembranças. A província vale como refúgio, mesmo quando estamos longe dela.’

O autor de Os degraus do paraíso é considerado um dos mais completos escritores do Brasil, com obras vertidas para dezenas de países. Nada escapou da sua ótica. Escreveu perto de cem obras, explorando os seguintes gêneros: romance, crônica, novela e teatro (adaptados para o cinema e TV), história infantil, ensaio, história. Fez centenas de conferências e ministrou aulas em Paris e Lima. Na capital do Peru teve dentre os alunos, Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, 2010, o qual declarou ter muito aprendido com ele, principalmente, sobre a literatura brasileira. Daí o seu interesse pela obra de Euclides da Cunha. Escreveu sobre a guerra de Canudos, que terminou nas telas do cinema.

Crônica com recursos da literatura

Deixou uma das obras mais completas sobre o ‘Bruxo do Cosme Velho’, assim considerado com respeito, o autor de A mão e a luva, intitulada de Memórias póstumas de Machado de Assis, com 777 páginas, de 1997 (2ª. edição). Trabalhou durante 38 anos no Jornal do Brasil, de 1955 a 1993. Esse memorialista formidável, que pertencia à Academia Brasileira de Letras e congênere no Maranhão, continua sendo reverenciado por quantos leram o que produziu como artista da imaginação e mestre das palavras. A insônia crônica que o acometia, levava na ironia e a transformou numa verdade, ao revelar amor pelos livros: ‘Igual ao prazer de comprar livros durante o dia, conheço apenas este: o de lê-los pela madrugada’.

Ao escrever sobre o futuro dos jornais, em crônica na década de 70, previu o que décadas depois se constituiria em motivo de polêmica: ‘Agora, indaguemos: nós que temos o bom hábito de recolher, todos os dias, junto ao capacho da porta, o jornal matutino, corremos o risco de vê-lo desaparecer, substituído por outras técnicas a que estamos afeitos.’ E não é que essas novas tecnologias digitais, lideradas pela internet, vêm desafiando o jornal de papel e até ameaçando a sua sobrevivência? Tenho que admirar a ousadia de Montello com essa projeção. É o que se comenta e comentou mais: ‘As livrarias podem desaparecer’ – já que se compra quase tudo pelo computador.

Que Os tambores de São Luís batam forte em comemoração aos 35 anos de uma grande obra-prima, com seus mais de 400 personagens, umas verdadeiras, outras saídas da ficção do grande romancista, que fazia crônica com os recursos da literatura, buscando nos clássicos, exemplos para mais bem transmitir ideias e divertir os leitores.

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Professor emérito da UFMA, jornalista e autor de vários livros, dentre os quais Inovações do jornalismo no mundo