Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Veja



MEMÓRIA / TALES ALVARENGA
Eurípedes Alcântara

Uma lição de jornalismo

‘‘Miriam, a coluna desta semana eu já baixei. Sem problema. Esta que estou te mandando é a da semana que vem, para o caso de eu não poder voltar até quinta ou sexta. Portanto, só baixe na semana que vem, depois de conversarmos ao telefone. Obrigado, Tales.’ Essa foi a última mensagem enviada por Tales Alvarenga à redação de VEJA. Foi endereçada no dia 26 de janeiro a Miriam Lopes, sua secretária havia quinze anos, com cópia para mim, seu escudeiro havia 23. A mensagem contém instruções precisas. E ele as cumpriu com diligência na quinta-feira passada. Preso ao leito de uma CTI de hospital, telefonou a Miriam para editar a coluna. Com imensas dificuldades de respiração, entre uma fuga e outra do respirador, ditou as modificações para Tina, sua mulher, que as retransmitiu. Internado para fazer uma biópsia de tecido pulmonar, Tales morreu na sexta-feira, aos 61 anos, deixando Tina e os filhos Gil, de 21 anos, Tomás, de 13, e Isabel, de 8. Ele deixou também uma magnífica obra de construção e incentivo a talentos no jornalismo, profissão que abraçou com paixão, depois de abandonar o direito e a filosofia.

Tales deixou lições de humildade, coragem, honestidade e lealdade no exercício de uma profissão em que a manutenção desses valores sofre tentações cotidianas. Ele não apenas os manteve intactos, como os transmitiu pelo exemplo e pela incansável pregação aos jornalistas das redações que dirigiu. Sua contribuição a VEJA é inestimável. Tales destronou o texto acusador e humanizou o tratamento editorial da revista. Em 38 anos de carreira como repórter, editor, Diretor de Redação e, nos últimos dois anos, Diretor Editorial de VEJA e Exame, Tales foi de uma retidão inigualável. Depois de um começo de carreira em Belo Horizonte, ingressou como copidesque no jornal O Estado de S. Paulo. Na Abril, permaneceu trinta anos, 28 deles em VEJA, que dirigiu de 1998 a 2004.

‘Não tenho palavras para manifestar a minha tristeza diante do desaparecimento repentino do Tales. Tive o privilégio de conviver com ele quase diariamente nos seis anos em que dirigiu VEJA e nos últimos dois, como Diretor Editorial de VEJA, Veja São Paulo, Veja Rio e Exame. Com a sua inteligência, integridade, equilíbrio e sensibilidade – e sua extraordinária capacidade de tornar o importante interessante -, ele elevou VEJA a um novo nível de qualidade e sintonia com os seus leitores’, disse Roberto Civita, Presidente do Grupo Abril e Editor de VEJA. ‘Como ele mesmo escreveu um dia: ‘É bom fazer revistas de que gostamos. É melhor ainda achar que estamos fazendo agora melhor do que na semana passada. Ver esse esforço entendido, reconhecido e elogiado é um incentivo MUITO grande’.’

Há dois anos, Tales descobriu-se colunista – mentalmente organizado, cortante, implacável com o pensamento arcaico da elite política e acadêmica brasileira. O atraso nacional o exasperava. Ele não se conformava em ver o país perder espaço e posições relativas no mundo. Tinha poucas dúvidas sobre as razões da bola de chumbo que não nos deixa decolar: a imensa burrice das dispendiosas e inúteis políticas populistas dos governos. Sua coluna desta semana, a última, editada no leito de morte, é uma cápsula representativa. Ali se lê: ‘A América Latina só terá uma oportunidade de sair da maré do atraso se abandonar a retórica obsoleta de seus líderes retrógrados’. Obrigado, Tales.’



CHARGES POLÊMICAS
Diogo Schelp

Choque de culturas

‘Doze charges, dez delas com caricaturas do profeta Maomé, publicadas num pequeno jornal em um país igualmente pequeno e, em geral, distante de encrencas internacionais, colocaram o mundo islâmico em clima de guerra santa. A histérica reação diplomática dos países muçulmanos, os boicotes econômicos, as multidões enfurecidas e as ameaças de morte dos terroristas mostraram que o fosso de valores, idéias e hábitos entre o mundo islâmico e o Ocidente se aprofundou perigosamente. Dada a dimensão geográfica e humana das partes e em vista das diferenças radicais, vem à mente a famosa metáfora proferida por Winston Churchill quando ele viu o império soviético se agigantar e alienar o resto do mundo. Churchill disse que uma ‘cortina de ferro’ havia descido sobre a Europa. Desde a Guerra Fria não se via com tanta clareza a existência de dois mundos crescentemente hostis e que, rapidamente, esquecem o muito que têm em comum exacerbando o pouco, mas fundamental, que os separa. É um sinal dos tempos – e também um paradoxo. O abismo se torna mais intransponível exatamente em um mundo interligado por comunicações instantâneas e pela intensificação do comércio global. Por que, com tantas condições favoráveis, o diálogo está se tornando impossível?

A resposta mais simples e correta – ainda que não explique tudo – é que o fanatismo diminui as chances de diálogo. O convívio poderia ser harmonioso e mutuamente enriquecedor não fosse o fato de que o poder crescente dos fanáticos esmaga aqueles mais moderados e transigentes. O caso das charges é exemplar por ter colocado em foco alguns dos mais agudos pontos de ruptura entre o Ocidente e o Islã: liberdade de expressão, direitos humanos e o que o jornalista dinamarquês Flemming Rose chamou de ‘choque de civilizações’ entre as democracias seculares e as sociedades islâmicas. Rose, editor de cultura do Jyllands-Posten, o jornal dinamarquês que publicou as charges cinco meses atrás, diz que a crise atual é sobretudo ‘sobre a questão da integração e sobre se a religião do Islã é ou não compatível com uma sociedade moderna e secular’. A idéia de um choque de civilizações não é nova. A expressão foi colocada em evidência pelo americano Samuel P. Huntington, professor de Harvard, num artigo que levou esse título na revista Foreign Affairs, em 1993, e que depois foi ampliado e publicado como livro. Sua opinião é a de que, passados os conflitos causados por interesses divergentes entre Estados-nações, as guerras do futuro seriam travadas entre grandes unidades conhecidas como culturas ou civilizações, cada uma delas constituída de grupos de países. Ele errou no atacado – a ponto de colocar a América Latina como uma cultura à parte do Ocidente e, dessa forma, um inimigo em potencial -, mas apontou com clareza para os indícios de que se ampliava o fosso entre as democracias ocidentais e o mundo islâmico.

Quem julgasse só pelas manchetes dos jornais na semana passada poderia pensar que um choque amplo entre o Islã e o Ocidente já começou ou é iminente. Os terroristas da Al Qaeda apareceram na televisão com ameaças de novos atentados em sua jihad contra os ‘cruzados’ e judeus. O Hamas, movimento islâmico conhecido por seus homens-bomba, ganhou as eleições nos territórios palestinos. O mundo tentava encontrar uma forma de conter o Irã e seu presidente-bomba, que ameaça desenvolver um arsenal nuclear. Para o Ocidente, capitaneado por Estados Unidos e Europa, a possibilidade de o Irã, uma teocracia islâmica, ter um arsenal nuclear é o pior dos mundos. O terceiro foco de tensão foi a crise internacional iniciada por um motivo banal – as charges de Maomé – e que mostrou a imensidão das diferenças culturais entre o Ocidente e o mundo islâmico. No ano passado, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten soube das dificuldades de um escritor, que queria ilustrar seu livro com desenhos do profeta Maomé, mas não encontrava artista disposto a se arriscar a sofrer as represálias muçulmanas. O jornal então convidou desenhistas a enviar charges sobre Maomé e publicou uma dúzia das que recebeu.

A reação muçulmana foi tomando impulso até atingir seu grau extremo na semana passada. Duas dezenas de países árabes exigiram desculpas públicas do governo dinamarquês e a punição dos responsáveis pelas ilustrações. Um boicote tirou os produtos dinamarqueses – laticínios de excelente qualidade – das gôndolas em todos os países muçulmanos. Na Faixa de Gaza, pistoleiros ampliaram o protesto invadindo o escritório da União Européia e vandalizando a missão francesa. Cidadãos escandinavos foram retirados às pressas da região para não ser mortos. Logo a fúria das ruas muçulmanas se virou contra o espantalho de sempre, Israel e o Ocidente em geral. Os muçulmanos estão incomodados com o fato de as feições de Maomé terem sido desenhadas – o que a tradição islâmica proíbe – e por várias charges mostrarem o profeta como um terrorista. É compreensível que reclamem, mas o tom de guerra santa vai além do que seria razoável. No momento em que um diplomata árabe exige que o Estado dinamarquês puna jornalistas pelo crime de ‘blasfêmia’, o fosso entre os dois mundos se torna transparente.

A disputa sobre as charges de Maomé faz parte de uma série de confrontos culturais similares entre o Islã e o Ocidente, começando pela sentença de morte decretada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini contra o escritor britânico Salman Rushdie, cujo livro Os Versos Satânicos o líder espiritual do Irã considerou ‘blasfêmia’ em 1989. Em 2004, o cineasta holandês Theo van Gogh foi assassinado a tiros e facadas por um jovem muçulmano ofendido com seu filme Submissão, que critica o tratamento dado às mulheres nas sociedades islâmicas. Esses crimes em nome do Islã são, obviamente, obra de fanáticos, mesmo quando ocupam altos cargos em Estados islâmicos. Desde os ataques terroristas a Nova York de 11 de setembro de 2001, um esforço enorme é feito por muçulmanos e não-muçulmanos para separar o fanatismo de Osama bin Laden da fé moderada e pacífica da maioria dos muçulmanos. A reação extremada diante das charges de Maomé faz o contrário, reforçando o estereótipo negativo dos muçulmanos.

O ponto crítico desse relacionamento difícil está na Europa, onde vivem 15 milhões de muçulmanos. Essa migração rompeu a fronteira entre a cristandade e o Islã, que permanecerá estanque por séculos. ‘Os muçulmanos têm mais dificuldade de se integrar e de aceitar alguns costumes do Ocidente do que outras populações porque vivem de acordo com um conjunto de valores muito rígidos e tendem a se isolar’, disse a VEJA o historiador dinamarquês Ulf Hedetoft, da Academia para Estudos de Migração de Aalborg, na Dinamarca. Há vários outros pontos de confronto. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos parece feita sob medida para reforçar o sentimento generalizado entre os muçulmanos de que o mundo os persegue.

A disputa sobre as charges dominou a ‘blogosfera’, o ativo e opiniático universo dos blogs na internet. Ali, sem medo e sem censura, a hostilidade latente se manifestou de forma crua. Mike Tidmus, da Holanda, escreveu: ‘O incidente torna claro que não há lugar para o Islã na Europa se ele não puder conviver com a liberdade. Os muçulmanos poderiam ser aconselhados a voltar para seus reinos de areia, cheios de petróleo, e continuar a matar uns aos outros e a odiar os judeus, os excessos da civilização ocidental, as mulheres e os gays’. Boa parte da incompatibilidade do mundo muçulmano com o Ocidente moderno se explica pela noção de que no Islã político não deve haver separação entre vida pública e vida privada, entre religião e política. O diálogo fica difícil com quem se recusa a aceitar que as escolhas humanas possam estar acima das leis que considera emanadas por seu deus. ‘Não se pode chegar a um acordo com os fundamentalistas justamente porque, por definição, eles acreditam seguir os escritos sagrados ao pé da letra’, disse a VEJA o muçulmano Qamar ul Huda, historiador do Instituto da Paz dos Estados Unidos. ‘É isso que torna o choque com o Ocidente inevitável.’

A civilização ocidental assenta-se sobre valores hoje estranhos ao mundo medieval dos fundamentalistas – tanto os muçulmanos quanto os cristãos. Basta um dado. Quatro em cada dez americanos rejeitam as teorias evolucionistas de Charles Darwin. Eles rejeitam a ciência em um assunto científico, preferindo aceitar a tese bíblica de que Deus criou todos os seres vivos. Isso é treva. Mas não se tem notícia de que os adeptos do criacionismo preguem a morte dos que aceitam o evolucionismo darwinista. Do lado islâmico ela é mais espessa ainda. Os fundamentalistas muçulmanos confundem opinião com ação. Isso os leva a agredir e pedir a morte de pessoas que simplesmente discordam deles mesmo que o agravo seja apenas de opinião. John Stuart Mill (1806-1873), o grande pensador liberal inglês, definiu com cristalina clareza a fronteira entre opinião e ação. A primeira deve ser tolerada por mais agressiva que seja – e só coibida quando for um incentivo direto e circunstancial à ação violenta.

O fanatismo religioso não é patrimônio do Islã. Na semana passada, a polícia israelense precisou usar a força para expulsar colonos judeus de um assentamento na Cisjordânia, um dos territórios ocupados na guerra de 1967. Eles resistiram, convictos de que a ocupação obedece à vontade de Deus. São grupos que podem odiar o alcance global da cultura laica dominante em seus países, mas só muito raramente isso se traduz em violência revolucionária. O Ocidente olha para o mundo muçulmano com desconfiança. Teme suas encrencas, suas mulheres cobertas de véus e seus homens-bombas. O mundo muçulmano tem sido contaminado, nas últimas décadas, por uma versão fantasiosa do mundo desenvolvido, divulgada pelos mulás nas mesquitas: um lugar eficiente, mas sem Deus e, portanto, sem alma. Não há nenhuma razão insuperável pela qual muçulmanos e ocidentais não possam conviver pacificamente. Isso exigiria que cada parte examinasse suas idéias sobre a outra. Em especial, contudo, os muçulmanos precisariam encontrar um jeito de se ajustar à vida moderna.’



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O desafio da Europa

‘Radicado nos Estados Unidos, onde dirige o Instituto Remarque, da Universidade de Nova York, o inglês Tony Judt firmou-se como uma das maiores autoridades na história da Europa contemporânea. Seu mais recente livro, Postwar (Pós-Guerra), é uma portentosa revisão da trajetória européia de 1945 até hoje. Judt narra uma experiência histórica que, de modo geral, foi muito bem-sucedida: em apenas meio século, o continente devastado pela guerra organizou uma próspera comunidade transnacional, a União Européia. Nos capítulos finais do livro, porém, ele aponta para a pedra no sapato europeu: a imigração. Seu foco não é o fundamentalismo que hoje apavora o Ocidente, mas o fracasso europeu em integrar as populações estrangeiras – um fracasso que, na visão dele, não tem raízes na religião.

A IMIGRAÇÃO É HOJE O PRINCIPAL PROBLEMA DA UNIÃO EUROPÉIA?

Sim. A integração de um grande número de imigrantes é o principal problema da Europa hoje, muito maior do que o crescimento vagaroso ou o déficit da previdência social, que, na minha opinião, são um tanto exagerados. Tem-se falado muito da situação francesa, especialmente depois dos tumultos que abalaram a periferia de Paris no ano passado. Esse, porém, não é um problema exclusivo dos franceses. Assim como a França não conseguiu integrar os africanos e os árabes, a Alemanha hoje tem um problema real com os turcos, e a Inglaterra, com os imigrantes de Bangladesh e do Caribe. Os ingleses têm um modelo de integração muito diferente do francês e gostam muito de falar em multiculturalismo. O efeito, porém, é o mesmo ressentimento entre as populações imigrantes, o mesmo sentimento de serem excluídas da sociedade.

EXISTIRIA UMA POLÍTICA DE SILÊNCIO SOBRE O TEMA NA EUROPA?

Hoje, não. Ficou impossível fazer de conta que a imigração não existe: os europeus estão sendo forçados a admitir que esse é um problema grave. Mas, há uns dez anos, havia uma mistura de silêncio e arrogância em torno do assunto. A voz corrente, com exceção da extrema direita mais agressiva, era que a imigração não constituía um problema, que a Europa integrava a todos, que Londres era uma maravilhosa cidade multicultural, e assim por diante.

COMO SE CHEGOU A ESSA SITUAÇÃO CRÍTICA?

Os franceses foram muito bem-sucedidos em integrar imigrantes pobres de Portugal, Polônia, Itália, Iugoslávia. O que eles não conseguiram foi integrar pessoas que são pobres e negras, ou pobres e árabes. Isso revela que os europeus simplesmente não encararam as conseqüências, desde os anos 70, da combinação de uma população crescente de imigrantes não europeus com uma economia vagarosa. Era fácil pagar o salário desses contingentes quando a economia crescia rápido, como na Inglaterra e na Alemanha nos anos 50 e 60, e, no fundo, a suposição sempre foi que essas pessoas voltariam para casa quando deixassem de ser necessárias. Os turcos retornariam à Turquia, e os indianos, para a Índia, no momento em que não houvesse mais emprego para eles. A falta de ocupação, porém, atingiu os netos dos imigrantes originais, que não têm mais para onde voltar.

QUE PAPEL TEM A RELIGIÃO NESSE PROBLEMA?

Não acredito que esse seja primariamente um problema religioso. Ninguém hoje na Europa gosta de falar em conflitos de classe. Era moda debater isso nos anos 60, mas hoje em dia todos preferem falar de questões étnicas, ou de gênero, e não de classe. E o problema real com turcos na Alemanha, com bangladeshianos e caribenhos na Inglaterra e com africanos e árabes na França é que eles estão além da concepção de classe: eles estão desempregados, ou desempenham as funções subalternas que os brancos desempenhavam duas ou três gerações antes. São a classe inferior de uma sociedade que não a reconhece como tal. Eles sofrem não tanto pela discriminação racial direta, mas por não ter empregos, por viver em bairros decadentes, sem comércio, sem transporte, sem boas escolas. A cor é uma desvantagem adicional, que inflama muito ressentimento. Mas eles são basicamente uma subclasse, e os europeus não querem pensar a respeito disso.’

Vilma Gryzinski

Nem Deus se salva?

‘Imagine-se que, logo depois do 11 de Setembro de 2001, jornais de países muçulmanos publicassem charges mostrando as vítimas dos atentados nos Estados Unidos em posições ridículas ou zombando de seu sofrimento. Haveria certamente uma grande reação de fúria e revolta. Em termos emocionais, seria comparável à onda de ira que se viu nos últimos dias, desde a Faixa de Gaza até o Paquistão, por causa das caricaturas publicadas originalmente por um jornal dinamarquês mostrando o profeta Maomé, reverenciado pelos muçulmanos como o receptor da revelação divina definitiva, em situações ofensivas. A comparação com os mortos do 11 de Setembro foi escolhida de propósito: a grande tragédia foi talvez o fato mais chocante ocorrido no mundo ocidental nas últimas décadas, em termos de impacto, exposição e conseqüências. Mexer com suas vítimas soaria terrivelmente desrespeitoso, além de insuflar animosidades entre a esfera de influência do cristianismo e o Islã. Sem contar que seria inútil traçar um paralelo entre a ofensa a Maomé e uma hipotética agressão a Jesus. O ícone cristão já foi desconstruído de todas as maneiras imagináveis em seus próprios domínios. Gay, drogado, casado, perturbado, assolado por dúvidas e, na inesquecível sátira do grupo inglês Monty Phyton, pateticamente desinformado sobre o que está acontecendo à sua volta são alguns exemplos. A mais recente sátira a despertar alguma atenção foi a história em quadrinhos A Vida de Jesus, do austríaco Gerhard Haderer. Sem nenhuma originalidade, ele desenha um Jesus surfista, amigo de Jimi Hendrix, sempre zonzo de ‘incenso’ e cercado por discípulos que aproveitam para vender seguros de vida.

Nada disso acontece sem protestos ferozes. O caso de Haderer ganhou interesse porque o autor foi condenado no ano passado, à revelia, a seis meses de prisão na Grécia, país onde a conservadora Igreja Ortodoxa tem grande influência, mas que também é membro da União Européia, que evidentemente dá todas as garantias à liberdade de expressão. É a importância desse princípio que ressurge cada vez que valores religiosos caríssimos aos respectivos fiéis são conspurcados publicamente. Um bispo evangélico pode chutar uma imagem de Nossa Senhora? Jesus pode ser vilipendiado? O santo profeta Maomé desenhado com um turbante em forma de bomba (sem contar que o simples fato de fazer uma representação dele já é considerado blasfemo)? A maioria dos católicos praticantes, protestantes de diversas denominações e muçulmanos provavelmente responderá que não.

A diferença é a maneira como reagem – e o ambiente em que reagem. As sociedades ocidentais acumulam vários séculos de luta pelas liberdades fundamentais, incluindo-se aí capítulos sangrentos em que padres e até imagens religiosas foram sacrificados, vide Revolução Francesa. Não foi fácil a transição da Igreja Católica, embora os valores cristãos mais elevados tenham constituído um dos pilares da construção do edifício dos direitos humanos. Até hoje, se pudessem, clérigos mais severos de todas as confissões provavelmente proibiriam ofensas religiosas de qualquer natureza, inclusive nos Estados Unidos, berço das mais belas e invioláveis palavras já escritas em defesa das liberdades básicas (‘O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de expressão, ou de imprensa’, Primeira Emenda à Constituição de 1789). Como não podem, reagem com protestos e boicotes, manifestações perfeitamente legítimas do jogo democrático. Há desde as esparsas manifestações acusando de anti-semitismo A Paixão de Cristo, o violento filme de Mel Gibson em que de fato judeus de caricatura aparecem em cenas da condenação, até os mais nutridos protestos de 1999 contra a exposição de um quadro do artista britânico Chris Ofili mostrando uma Nossa Senhora negra cercada por montículos de excrementos de elefante e recortes de revistas pornográficas. Houve até ameaças de cortar verbas públicas para o Brooklyn Museum, sede da exposição.

Não deu em nada. É interessante notar, porém, que, malgrado a virulência das manifestações contra o caráter blasfemo do quadro, foram bem menores as críticas à obra em si, uma coisa pavorosa (liberdade de opinião, lembram-se?). É possível que tenha pesado o fato de que Ofili é um inglês de origem nigeriana – negro, portanto -, e as sensibilidades raciais, em especial nos Estados Unidos, contaram. O que nos conduz à constatação de que freios sociais e tabus de diversas naturezas fazem parte da dinâmica mesmo nos países onde a liberdade de expressão é um valor absoluto. A propósito das caricaturas ofensivas ao profeta Maomé, um jornalista saudita fez a seguinte afirmação: ‘Se as charges representassem um rabino, nunca teriam sido publicadas’. Provavelmente é verdade, pelo menos no que concerne à grande mídia dos países ocidentais, onde a lembrança do uso maligno do anti-semitismo ainda é terrivelmente dolorosa. Já em jornais de países árabes são comuns as charges retratando judeus como cães e macacos, que entre nós seriam consideradas criminosas.

Isso nos leva a uma reformulação das perguntas que afloraram na semana passada: podemos caricaturar Deus, ou seus profetas, mas não os judeus (ou os negros, ou outras minorias)? A resposta é: podemos caricaturar todo mundo, desde que isso não implique incentivar crimes. Representar Maomé como terrorista não insufla sentimentos antimuçulmanos? Embora a caricatura seja grosseira e ofensiva, na visão ocidental não constitui crime. Até não muito tempo atrás, essa visão, que põe a liberdade de expressão no topo dos valores absolutos, parecia caminhar para se implantar em todo o mundo, embora em diferentes graus e ritmos. As recentes convulsões planetárias têm mostrado que, ao contrário, ela pode não só deixar de se propagar como até involuir – ou não foi isso que aconteceu quando o Google, o mecanismo de busca que colocou capacidades quase sobre-humanas ao alcance de qualquer mortal, sinônimo da inebriante liberdade de informação gerada pela internet, acatou tolices como tirar ‘democracia’ da lista para ter acesso ao mercado chinês? O mérito dos tristes acontecimentos da semana passada, quando por todo o mundo muçulmano manifestações exigiram não apenas desculpas ou mesmo punição aos editores responsáveis pelas charges ofensivas, mas castigo e até morte a todo e qualquer cidadão dos países onde elas foram publicadas, foi pelo menos o de mostrar que a liberdade de expressão, pilar dos direitos fundamentais, não é uma obra pronta, acabada e sacramentada. Precisamos continuar a merecê-la.’



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