Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Veja


LITERATURA
Jerônimo Teixeira


Machado. Um verdadeiro imortal


‘No centenário de sua morte, o autor de Dom Casmurro continua instigando críticos, historiadores, leitores. O mulato de origem humilde que nunca freqüentou uma universidade e quase nunca saiu do Rio de Janeiro é o mais universal dos escritores brasileiros


O GÊNIO TARDIO


O jovem Machado de Assis: farrista, ele gostava do teatro e da boemia, mas também lutava para subir socialmente e tinha plena consciência de sua superioridade intelectual


Joaquim Maria Machado de Assis teve a mais improvável das histórias de sucesso literário. Nascido em 1839, no Rio de Janeiro, então uma cidade de 200 000 habitantes, era filho de uma lavadeira e de um pintor, e neto de escravos libertos. Sem nunca ter freqüentado uma universidade ou posto os pés na Europa, o autor cujo centenário da morte é lembrado no próximo dia 29 tornou-se a figura central da literatura brasileira de seu tempo. Mas conquistar a proeminência literária na jovem nação brasileira – cujo maior talento até ali fora José de Alencar – não é o fato extraordinário. O verdadeiro milagre é que Machado de Assis tenha se tornado um autor de primeira linha da literatura mundial, um mestre que pode ombrear, sem favor, com os expoentes do romance europeu, como o francês Flaubert ou o russo Tolstoi. E chegou lá depois dos 40 anos, com a publicação, em 1880, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, ainda hoje o romance mais inovador (e engraçado) já escrito por um brasileiro. ‘É uma bobagem dizer que Machado de Assis foi um gênio. Ele se tornou genial à custa de muito trabalho’, observa o crítico João Cezar de Castro Rocha, da UERJ. ‘A lição de Machado vai na contramão da cultura do fácil, do espontâneo, do improviso, que ainda predomina no Brasil.’


Como todo grande escritor, Machado de Assis é inesgotável: presta-se às interpretações mais diversas, muitas delas conflitantes (para não falar no problema insolúvel mas irresistível que Dom Casmurro propõe ao leitor: Capitu, afinal, traiu ou não Bentinho?). Uma mostra da vitalidade de sua obra está no seu potencial de inspirar batalhas entre os intérpretes. O grande provocador da cena crítica atual é o português Abel Barros Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, autor de dois livros sobre Machado de Assis publicados no Brasil pela Editora da Unicamp, A Formação do Nome e Autobibliografias. Baptista reprova a maior parte dos críticos de Machado – Antonio Candido, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, John Gledson – por subjugarem o autor de Quincas Borba a um certo projeto de literatura nacional. ‘O paradigma que vem desde o modernismo brasileiro não reconhece a literatura se não for discussão da nacionalidade. A grandeza e a originalidade de Machado de Assis ficam empobrecidas com a persistência desse modelo, que torna a crítica previsível, aborrecida’, diz Baptista.


Riqueza


‘A riqueza tem isto de bom consigo, – é que a simples vista consola’


A tentativa de Baptista de tirar Machado da pauta nacionalista tem um inegável alcance crítico. Pode ‘desprovincianizar’ Machado, torná-lo um escritor que indiretamente conversa com Dostoievski e Freud, e não apenas com Alencar e Joaquim Manuel de Macedo. Para ser justo, porém, é preciso observar que os estudiosos criticados por Baptista não reduziram o escritor a um nacionalista vulgar. ‘Machado, como o argentino Jorge Luis Borges depois dele, conseguiu ao mesmo tempo dar atenção à tradição literária local e resistir à pressão que então existia para fazer uma literatura nacional’, diz o crítico Luís Augusto Fischer, da UFRGS, que recentemente lançou Machado e Borges.


NOSTALGIA


A biografia de Machado de Assis guarda zonas de sombra. Não se sabe, por exemplo, como ele aprendeu francês, idioma cultural dominante no Brasil do século XIX. O maior mistério de Machado reside no fato de ele ser ao mesmo tempo um escritor precoce (com 15 ou 16 anos já andava publicando uns poeminhas na imprensa) e tardio (é só depois dos 40 que sua obra realmente ganha relevância). O mais criterioso trabalho biográfico já publicado sobre Machado de Assis infelizmente se concentra apenas no período de 1839 a 1870, antes de o convencional autor de Iaiá Garcia se metamorfosear no revolucionário criador de Brás Cubas. Trata-se de A Juventude de Machado de Assis, do francês Jean-Michel Massa, professor da Universidade de Rennes 2 (o livro, publicado em 1969, está esgotado; uma nova edição revisada pelo autor deve sair no ano que vem). As pesquisas de Massa desfizeram equívocos e lendas que se acumulavam no folclore machadiano – como a anedota segundo a qual o adolescente Machado teria aprendido francês em uma padaria pertencente a uma francesa. O perfil traçado por Massa revela um jovem de origem pobre que desejava subir na escala social – e, sobretudo, desejava reconhecimento intelectual. ‘Machado era ambicioso. Tinha uma noção muito clara do seu próprio valor. Pode-se até dizer que ele sabia de sua superioridade em relação aos seus pares no mundo literário brasileiro da época, mas, claro, não podia afirmar essa superioridade com todas as letras’, disse Massa a VEJA. O esforço de Machado para se afirmar como escritor passou pela poesia e pela crítica teatral, antes da descoberta da prosa de ficção como veículo ideal para seu talento. Engana-se quem imagina que Machado tenha sido um tipo grave e ‘filosófico’, imbuído das ‘rabugens de pessimismo’ de que fala Brás Cubas. ‘No tempo em que freqüentava o teatro, na década de 1860, Machado era um farrista’, diz Massa (não se conhece, porém, a extensão de seu envolvimento com atrizes e mulheres do teatro. Era, afinal, um homem discreto).


Perdas e ganhos


‘Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda apenas de dono’


NA INTIMIDADE


A casa em que Machado viveu, no bairro carioca do Cosme Velho (no alto), o autor sendo acudido na rua numa crise de epilepsia (acima) e a mulher, Carolina: homem de saúde frágil e marido exemplar


O salto que a literatura de Machado dá por volta de 1880 é surpreendente. ‘Se o mestre tivesse desaparecido depois da publicação de Iaiá Garcia, em 1878, teria deixado uma obra em que a poesia e a prosa se equilibram no mesmo nível de mediocridade’, observou, com acerto, Manuel Bandeira. Vale dizer: se houvesse morrido logo depois de Iaiá Garcia, seu quarto romance, Machado de Assis não seria hoje objeto de homenagens, conferências, simpósios, exposições, reedições. Alguns fatores pessoais costumam ser apontados como em alguma medida determinantes dessa espantosa evolução. Passada a juventude inconseqüente, e a errância de um trabalho para outro, Machado enfim conhecia a estabilidade econômica e afetiva, casado desde 1869 com a portuguesa Carolina – mulher muito culta, que dominava o inglês – e empregado como funcionário público no Ministério da Agricultura. De outro lado, entre 1878 e 1879, o escritor sofreu graves problemas de saúde, com crises nervosas (era epilético), problemas digestivos e uma infecção nos olhos. Passou uma temporada em Nova Friburgo – uma das poucas ocasiões em que saiu do Rio natal – para se tratar. Lúcia Miguel Pereira, autora de uma biografia clássica de Machado publicada em 1936, especula que o retiro no interior foi fundamental para que o autor reunisse forças para inaugurar a nova fase de sua obra. Todas as explicações, porém, são insuficientes diante das memórias que Brás Cubas – personagem meio canalha, mas muito charmoso – compõe no além-túmulo, em um exame ao mesmo tempo cáustico e complacente, melancólico e cômico de sua existência medíocre e ociosa. Depois de Brás Cubas viriam outros quatro grandes romances – Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires – e dezenas de contos magníficos – A Causa Secreta, Capítulo dos Chapéus, Missa do Galo, Pai contra Mãe, para citar apenas alguns –, que o escritor foi recolhendo em coletâneas com títulos quase sempre inexpressivos (Histórias sem Data, Várias Histórias, Páginas Recolhidas). Muitos acham que Machado se realiza melhor na narrativa curta do que no romance – o escritor Dalton Trevisan considera Esaú e Jacó, por exemplo, um romance tedioso e sem vida. Os mais de 200 contos da obra machadiana também incluem suas bobagens, como a fábula moralista Um Apólogo –, mas o nível geral é magistral, e talvez os contos sejam mesmo superiores à obra romanesca.


Egoísmo


‘Suporta-se com paciência a cólica do próximo’


Brás Cubas provocou alguma estranheza quando saiu. O historiador Capistrano de Abreu, em página crítica que ficou famosa, chega a se perguntar se o livro é mesmo um romance. Mas Machado já era então um escritor consagrado e seria celebrado de forma virtualmente unânime até sua morte, em 1908 (a exceção escandalosa a esse coro laudatório foi o livro Machado de Assis, de 1897, um ataque furibundo de Sílvio Romero; o crítico sergipano acusava o estilo machadiano de demonstrar ‘uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra’ – referência deselegante à gagueira que afligia o escritor). Machado tornou-se um autor institucional, não por acaso, o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Essa ascensão se deu ao custo de recalcar o passado humilde e as origens étnicas do escritor. Em uma carta de 1908, Joaquim Nabuco censura o crítico José Veríssimo por ter usado a palavra ‘mulato’ (pejorativa, segundo Nabuco) em um artigo de homenagem a Machado, que morrera havia pouco. ‘Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tomava; quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego.’


Machado acabaria se confundindo com os figurões fátuos da sociedade carioca que ele mesmo satirizara no conto Teoria do Medalhão. Por muito tempo vigorou a noção de que ele era um refinado esteta, desinteressado das questões de seu tempo e lugar. Os modernistas dos anos 20 veriam a sua obra com extrema reticência. ‘Nossa alma em contínua efervescência não está em comunhão com sua alma hipercivilizada’, diria o jovem Carlos Drummond de Andrade em um artigo de 1925. Em seu clássico Raízes do Brasil, de 1936, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda apresenta o autor de Quincas Borba como o expoente da literatura artificiosa, desencantada e distanciada da ‘realidade cotidiana’ que então se praticava – Machado era ‘a flor dessa planta de estufa’.


Desilusão


‘Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar’


A tolice de que o autor de Dom Casmurro teria sido um ‘alienado’ foi posta abaixo pela crítica a partir dos anos 70, em uma série de obras que hoje se consagraram como fundamentais para o entendimento de Machado – Machado de Assis: Impostura e Realismo, do inglês John Gledson, A Pirâmide e o Trapézio, de Raymundo Faoro, e Ao Vencedor as Batatas, de Roberto Schwarz. Com referenciais teóricos distintos, os três autores apontavam para a dimensão histórica profunda da ficção machadiana. ‘Não há mais como ver conformismo ou omissão em Machado de Assis’, diz o historiador Sidney Chalhoub, da Unicamp – cujo livro Machado de Assis Historiador, de 2003, desmanchou outro equívoco persistente sobre o escritor: o de que ele teria sido um funcionário público aplicado, mas conformista. Chalhoub pesquisou os documentos da seção do Ministério da Agricultura chefiada pelo escritor. Seu foco foi de meados dos anos 1870 até o fim da década de 1880, período em que o Ministério da Agricultura lidou com a difícil aplicação da Lei do Ventre Livre, aprovada em 1871. Os despachos que podem ser claramente atribuídos a Machado de Assis não são abundantes, mas revelam muito. Nas suas recomendações, o escritor foi fiel às convicções liberais que mantinha desde a juventude: interpretava a lei no seu espírito emancipador e tendia a contrariar os interesses dos senhores de escravos. ‘O trabalho em uma repartição pública está submetido a uma série de limites que Machado não podia romper. Mas, como chefe de seção, ele tentava esgarçar esses limites, no sentido de submeter o poder privado ao domínio da lei’, diz Chalhoub. E o poder privado do proprietário de escravos não aceitava que o estado deitasse as leis. Na ficção de Machado, essa mentalidade está retratada, com a habitual ironia, na figura do Barão de Santa-Pia, personagem do último romance do autor, Memorial de Aires. Confrontado com a iminência da abolição, em 1888, o barão decide alforriar todos os seus escravos, pois não admitia que o poder público lhe tirasse essa prerrogativa.


O Mal


‘Não se perde nada em parecer mau; ganha-se quase tanto como em sê-lo’


Um dos maiores estudiosos da dimensão histórica da obra de Machado, o crítico John Gledson (também responsável pela tradução de Dom Casmurro em inglês), da Universidade de Liverpool, diz que há uma coerência profunda entre a obra e as posições políticas do autor. ‘Machado de Assis foi um liberal convicto a vida toda. É verdade que jamais foi republicano, mas ele sabia que o fim da monarquia era inevitável – e essa consciência do fim é aparente nas crônicas da série Bons Dias!’. Na juventude, o liberalismo de Machado era ardoroso e algo ingênuo. ‘Se há alguma coisa a esperar é das inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores, não’, escreveu aos 20 anos. Sua ficção madura, porém, não mostraria a mesma complacência. ‘Vítima’ é uma palavra que Machado usa muito pouco’, observa Gledson. A noção de responsabilidade individual, argumenta o crítico inglês, era demasiado importante no esquema moral da ficção machadiana. Os personagens de Machado – com exceção dos escravos, que afinal viviam em sujeição quase absoluta à vontade dos senhores – têm sempre um espaço mínimo de manobra social. E Machado jamais os isenta das escolhas que fazem nesse contexto. Gledson cita, a propósito, o exemplo de Candinho, o pobre-diabo do conto Pai contra Mãe, que, para suprir as necessidades da família, assume a infame profissão de caçador de escravos fugidos. ‘Machado não simpatiza com o personagem. Ainda que ele tenha sido em alguma medida forçado a exercer seu ofício mesquinho, ele não pode ser isento da culpa pelo que faz’, diz Gledson.


Morte


‘Matamos o tempo; o tempo nos enterra’


Os estudos machadianos hoje vivem certa efervescência, que não se deve apenas à efeméride dos 100 anos da morte. Inéditos têm sido desencavados, como o conto Um para o Outro, incluído em Contos de Machado de Assis: Relicários e Raisonnés (Editora PUC Rio/Loyola), do pesquisador Mauro Rosso. Três traduções de peças francesas descobertas por Jean-Michel Massa sairão em breve pela editora Crisálida. A Academia Brasileira de Letras está dando início a uma edição da correspondência completa de Machado, com coordenação do filósofo e embaixador Sergio Paulo Rouanet – o primeiro volume, que cobre os anos de 1860 a 1869, está previsto para novembro.


Machado é daqueles autores que não basta ler: o leitor precisa freqüentá-lo. É o clássico brasileiro por excelência – e um clássico se mede por sua atualidade. No ano passado, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco publicou uma coletânea de crônicas machadianas sobre economia, na qual ainda se identificam temas relevantes para o Brasil de Lula. ‘Machado é um crítico do Brasil patrimonialista, do nosso capitalismo de mentirinha, que é desprovido de ética protestante. Essa percepção continua atualíssima’, diz Franco. Abel Barros Baptista acredita que Machado é um autor útil para compreender o embate atual – muito inflamado nos Estados Unidos – entre a biologia darwinista e a religião. Machado sempre foi tido, e com razão, como um crítico do darwinismo social, a aplicação vulgar das teorias do naturalista Charles Darwin a questões de classe. Baptista, porém, acredita que Machado soube diferenciar Darwin – que ele lia em traduções francesas – de seus seguidores (ou deturpadores). ‘A evolução, tal como Darwin a descreve em A Origem das Espécies, não tem um plano, nem finalidade. Machado também compreendia que a vida não tem finalidade, e que isso não é necessariamente mau’, diz Baptista. Consta que a última frase pronunciada por Machado de Assis, em meio às dores provocadas pelo câncer de boca que o mataria em 29 de setembro de 1908, foi: ‘A vida é boa’.


Machado de Assis, o historiador


Machado de Assis sempre foi liberal – e, na juventude, exaltado –, mas nunca aderiu à causa republicana. Na sua ficção, porém, a posição política é esquiva. Eventos históricos são aludidos, mas nenhum deles parece capaz de alterar, para pior ou melhor, a condição geral das coisas – daí a impressão de ceticismo que seus livros transmitem


Fotos reprodução/Biblioteca Nacional/Fernando Seixas, Joaquim Insley Pacheco, Lula Rodrigues/Museu do Ipiranga


INFANTE


Dom Pedro II aos 5 anos: inspiração para Capitu


A Maioridade (1840)


‘Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, [Capitu] teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos.’


De DOM CASMURRO. Capitu não era nascida quando o adolescente Pedro II foi sagrado imperador – mas admira a determinação do monarca


SOBRE O PARAGUAI


A Batalha do Riachuelo: visão irônica da guerra


A Guerra do Paraguai (1864-1870)


‘A guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.’


Fala de X, personagem do conto UM CAPITÃO DE VOLUNTÁRIOS. Em uma reviravolta irônica, X morrerá em combate no Paraguai


O ABOLICIONISTA


Princesa Isabel: Machado festejou a Lei Áurea nas ruas


A abolição da escravatura (1888)


‘Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta (…) Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto.’


Crônica de A SEMANA, de 14 de maio de 1893


COMÉRCIO ELEGANTE


Rua do Ouvidor, a ‘Paris’ carioca do século XIX: cenário machadiano


‘Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro (…) Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram.’


MEMORIAL DE AIRES. O fim da escravatura foi capaz de levar o retraído escritor às celebrações de rua – mas não o reticente conselheiro Aires


ENTRE DOIS REGIMES


Deodoro na proclamação da República: tema de Esaú e Jacó


A proclamação da República (1889)


‘– Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha. (…) Deodoro é uma bela figura. (…)


Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas idéias, a de Pedro ia pensando o contrário; chamava o movimento um crime.


– Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. (…)’


Os irmãos Paulo, republicano, e Pedro, monarquista, discutem a proclamação da República em ESAÚ E JACÓ. Na visão de ambos, avulta o fato de o regime ter sido mudado por um golpe de estado, sem barricadas nem participação popular


Consultoria: John Gledson


A voz do chicote


Ao contrário do que se propagou por muito tempo, Machado de Assis tratou, sim, da escravidão. Na sua obra de ficção, adotava freqüentemente o ponto de vista cínico do senhor de escravos – para, de seu modo oblíquo, criticá-lo


NO PELOURINHO


Escravo açoitado: Machado escreveu páginas perturbadoras sobre o tema


‘Era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — ‘Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!’ Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova. (…) Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos antes. (…) Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro.’


MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS. É uma das páginas de ficção mais perturbadoras já escritas sobre a psicologia do escravismo: o liberto compra seu próprio escravo para tirar sua desforra


‘A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. (…) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel.’


Do conto PAI CONTRA MÃE. Publicado em 1905, depois da abolição, é um dos mais fortes que Machado escreveu sobre o tema


‘O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. (…)


– Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma exploração, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.’


MEMORIAL DE AIRES. O barão de Santa-Pia é a síntese da mentalidade senhorial: prefere libertar seus escravos para não deixar que o governo o faça


‘Chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:


– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…


– Oh! meu senhô! fico.


(…) Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade.’


Diálogo entre um escravo alforriado e seu senhor, em crônica de BONS DIAS!, 19 de maio de 1888. O texto ironiza a hipocrisia de alguns abolicionistas de fachada


Uma sensualidade discreta


Criador de uma rica galeria feminina, Machado de Assis não costumava tratar do sexo em termos francos – mas tinha lá seus fetiches, como se vê na galeria abaixo


SÓ NO ESPARTILHO


Manequim do século XIX: Machado tinha lá seus fetiches


Olhos


‘Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. (…) Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.’


Esses são os olhos de Capitu, de Dom Casmurro — exemplo mais célebre da mulher de olhar dúbio. Também Sofia, em Quincas Borba, tinha os ‘olhos mais belos do mundo’


Busto


‘O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim.’


Lívia, em Ressurreição. O busto, o colo dos seios são o que de mais francamente ‘sexual’ a mulher podia expor então


Cintura e cadeiras


‘Ela, em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras.’


Sofia, de Quincas Borba. A cintura fina era o padrão de beleza na época – daí os espartilhos e coletes de barbatanas


Mãos


‘As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula.’


Capitu, em Dom Casmurro. A pele imaculada aqui é um indicador social: ainda que pobre, Capitu cuida para que as mãos não revelem seus ‘ofícios rudes’


Braços


‘Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. (…) As veias eram tão azuis, que, apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar.’


Conceição, do conto Missa do Galo. Os braços nus são um fetiche de Machado – não por acaso, autor de outro conto intitulado Uns Braços


Pés


‘Lucinda sabia que tinha um pé formoso, esguio, leve, como devem ser os pés dos anjos, um pé alado, quando ela valsava e deixava entrevê-lo todo no meio dos giros em que se deixava ir.’


Do conto D. Mônica. A ponta das botinas era só o que se entrevia do corpo feminino escondido pelos longos vestidos


A língua de um mestre


Algumas frases de Machado de Assis que já não são comuns no uso lingüístico atual, comentadas pelo professor de português Pasquale Cipro Neto


Enciclopedia Mirador


AULA DE PORTUGUÊS


Machado: o estilo único de um ourives do idioma nacional


‘Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher’


A frase é dita por Cristiano Palha a Rubião, personagens de Quincas Borba. Nela, Machado emprega o verbo ‘esquecer’ com uma regência insólita no Brasil, mas comum ainda hoje em Portugal. Nesse tipo de construção, o sujeito de ‘esquecer’ é um fato ou uma coisa, e não uma pessoa. No exemplo machadiano, o sujeito de ‘esqueceu-me’ (que significa ‘caiu no meu esquecimento’) é a oração ‘apresentar-lhe minha mulher’.


‘Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento…’


O fragmento está no capítulo I de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado emprega ‘suposto’ como conjunção concessiva, equivalente a ‘embora’, ‘ainda que’. Esse valor antigo de ‘suposto’ está presente também nas formas ‘suposto que’, ‘posto que’ e ‘posto’, que às vezes ocorrem até em escritores modernos (‘Certamente, falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes’ – de Um Boi Vê os Homens, de Carlos Drummond de Andrade).


‘Ainda hoje deixei ele na quitanda (…) e ele deixou a quitanda para ir na venda beber’


O excerto está no capítulo LXVIII (‘O Vergalho’) de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trata-se de uma fala do ex-escravo Prudêncio, com construções típicas do português brasileiro, que já se cristalizavam: o pronome reto ‘ele’ na função de objeto direto (‘deixei ele’) e o verbo ‘ir’ com a preposição ‘em’ (‘para ir na venda beber’). No português lusitano e no brasileiro formal, ocorreriam as formas ‘o’ (no lugar de ‘ele’) e ‘à’ (no lugar de ‘na’), respectivamente. Esse procedimento, no entanto, não ocorre nos diálogos entre personagens de mesma classe social (Brás Cubas e Virgília, por exemplo).


‘Tais eram as reflexões (…). Interrompeu-mas um ajuntamento’


Esta passagem também está em ‘O Vergalho’. A forma ‘mas’ resulta da fusão dos pronomes ‘me’ (cujo referente é ‘eu’, o próprio narrador, em primeira pessoa) e ‘as’ (cujo referente é o substantivo ‘reflexões’). Incomuns no português brasileiro de hoje, as formas ‘mo’, ‘to’, ‘lho’ (e respectivas flexões) ocorrem com freqüência em nossa literatura até o século XIX e não raro em autores da primeira metade do século passado.


‘Suje-se gordo!’


Trata-se do título de um belíssimo conto de Machado, em que ocorre o emprego de ‘gordo’ como advérbio (e não como adjetivo). Mais do que comum em português e em diversas línguas, esse processo ainda hoje deixa em dúvida muitos falantes, que julgam ‘incorreto’ seu emprego. Não é. Ocorre aí um caso de derivação imprópria, que consiste no uso de uma palavra fora de sua classe gramatical usual. No exemplo machadiano, ‘gordo’ equivale a ‘gordamente’ e tem forte matiz de intensidade e de modo: ‘Quer sujar-se? Suje-se gordo!’.’


 


 


TELEVISÃO
Marcelo Marthe


Vão nos abduzir?


‘Recentemente, registrou-se o seguinte diálogo entre um policial e sua filha na novela Os Mutantes, da Record:


– Pai, o que é aquilo?


– É um óvni, minha filha. Sei disso porque, na minha preparação para agente da Polícia Federal, estudei sobre a possibilidade de aparição de seres extraterrestres.


– Será que eles vão abduzir a gente?


Essa conversa diz muito sobre o folhetim. Os Mutantes é uma tentativa de fazer ficção científica nas novelas. Abusa dos efeitos visuais. Lança o espectador numa ciranda muito louca que mistura engenharia genética com lobisomens, mitologia grega com ETs. Mas os diálogos… Bem, esses não perderam um traço típico das novelas ditas ‘normais’: em nome da suposta necessidade de mastigar informações para o público, produzem-se obras-primas do humor involuntário. Além da conversa citada acima, já se disparou no ar que ‘a seleção natural das espécies favorece a evolução humana’ ou que ‘não se pode colocar todos os mutantes no mesmo saco – alguns deles são pessoas maravilhosas’. Nesta semana, a novela mostrará uma hecatombe. Incorporado à trama não muito tempo atrás, o núcleo formado por uma certa Rainha Formiga (Carla Regina) e seus filhotes amargará o extermínio. Morrem com eles diálogos como este: ‘Vocês, homens e mulheres formigas, podem até ser insensíveis. Nós, humanos, criamos relações de afeto com nossos filhos’. Outros virão no lugar.


No momento, a ufologia é o tema em pauta na novela. Os ETs de aparência sujinha que o noveleiro Tiago Santiago batizou de ‘reptilianos’ chegaram ao pedaço há duas semanas. Explica o noveleiro: ‘É um povo nômade que vai de planeta em planeta sugando os recursos naturais. Eles viviam em Marte, mas sua atividade não era percebida pelas sondas da Nasa porque se dava no subterrâneo’. A maior revelação da nova fase da novela é que todos os mutantes foram concebidos pelos tais extraterrestres. Em breve, a salvação dos humanos dependerá de um herói enviado do futuro – a referência óbvia é o filme O Exterminador do Futuro. Santiago não nega a inspiração no sucesso de Arnold Schwarzenegger. E cita ainda fontes como o livro A Guerra dos Mundos, do inglês H.G. Wells. Como Os Mutantes só terminará em março de 2009 (‘no mínimo’, ameaça Santiago), é de esperar que muitas conversas do outro mundo venham por aí. Piedade, Record. Nós, humanos, temos relações de afeto com nossos filhos.’


 


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