Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Veja

UNIVERSAL

Laura Diniz

Cheque ao bispo

‘Há 32 anos, os templos da Igreja Universal do Reino de Deus recebem ricos e pobres, crédulos e descrentes, doentes, despossuídos e desesperados. A todos a igreja oferece consolo e, muitas vezes, também uma porta de saída para escapar do vício, do crime e da solidão. Mas cobra caro por isso. Baseada numa particular Teologia da Prosperidade, a Universal, fundada e chefiada pelo bispo Edir Macedo, prega que a maior expressão da fé são as oferendas de dinheiro à igreja (e também de carros, casas e cheques pré-datados). A ideia de que, ‘quanto mais se doa, mais Deus dá de volta’, levada ao paroxismo pela eloquência dos bem treinados pastores da Universal, já fez com que almas crédulas arruinassem suas finanças, seu casamento, sua vida. O Código Penal, contudo, não alcança práticas religiosas. Em linhas gerais, se um brasileiro quiser doar tudo o que tem a qualquer igreja, estará livre para isso. E quem receber a doação também não encontrará empecilhos na legislação. O que não se pode é tapear a lei – e é precisamente isso o que vêm fazendo Macedo e outros nove integrantes da cúpula da Universal, segundo uma peça de acusação elaborada por promotores do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo. A partir da denúncia oferecida pelo Gaeco, e aceita pela Justiça na última segunda-feira, Macedo e seu grupo tornaram-se réus em um processo criminal sob as pesadas suspeitas de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

Com base numa investigação de dois anos, o MP afirma que Macedo e seu grupo se converteram em uma organização criminosa ao usar as doações de fiéis para engordar seu próprio patrimônio – no caso do bispo, nada desprezível. Além de dono de 90% da Rede Record, Macedo e a mulher, Ester Eunice Rangel Bezerra (ela, dona dos outros 10% da emissora, segundo aparece no contrato de concessão), têm uma coleção de imóveis que incluem, apurou VEJA, dois apartamentos em condomínios de luxo em Miami, nos Estados Unidos: o primeiro, em nome de Ester, foi comprado em 2006 e está avaliado em 2,1 milhões de dólares. O segundo, registrado em nome do casal, foi adquirido no ano passado e custou mais do que o dobro do primeiro: 4,7 milhões de dólares. Ambos ficam na Collins Avenue, um dos endereços mais sofisticados da cidade.

Segundo a denúncia do MP, além de enganar os fiéis embolsando o dinheiro que deveria ter destinação religiosa, a Universal burla o Fisco ao aproveitar-se de sua imunidade tributária e fazer transações comerciais. A imunidade fiscal assegurada pela Constituição às igrejas baseia-se no princípio de que seu patrimônio, renda e serviços visam à atividade religiosa, e não ao lucro. Quando o dinheiro dos fiéis é usado para comprar empresas e jatinhos – caso dos pastores da Universal, segundo o MP –, a Justiça tem de ser acionada.

Em 1997, uma auditoria da Receita Federal sobre as contas da Universal já havia produzido um relatório defendendo que ela perdesse a imunidade fiscal, uma vez que vinha fazendo uso do benefício para ganhar dinheiro. Dez anos mais tarde, ao analisar a situação de cinco igrejas evangélicas, entre elas a Universal, a mesma Receita chegou a iniciar um estudo para regulamentar o uso das doações de dinheiro originário da fé (livre de tributos) em empreendimentos tributáveis. O projeto não foi adiante. Para o advogado da Universal, Arthur Lavigne, a denúncia do Gaeco apenas reúne tudo o que já foi dito contra a igreja desde 1992. Nesses dezessete anos, diz ele, houve mais de dez processos contra a Universal, e apenas dois estão em andamento, incluindo o que foi aceito pela Justiça na semana passada.

As primeiras investigações sobre as atividades de Edir Macedo e seu grupo na Igreja Universal começaram dois anos antes da investida da Receita. Em 1995, depois da divulgação de um vídeo em que Macedo aparecia ensinando pastores a arrancar dinheiro de fiéis, autoridades federais deram início a uma varredura nas atividades da igreja, mas, até agora, poucas irregularidades haviam sido comprovadas. A diferença entre essas investigações anteriores e o trabalho do Gaeco é que, desta vez, os promotores conseguiram mapear o caminho do dinheiro, desde as doações dos fiéis até a compra de duas emissoras de TV, um prédio e um jatinho modelo Cessna, por 2,5 milhões de reais.

Entre 2001 e 2008, a Universal, segundo os promotores, amealhou 8 bilhões de reais de seus cerca de 8 milhões de seguidores. Metade dessa dinheirama foi parar em contas bancárias da igreja por meio de 4 015 depósitos em espécie – direto das sacolinhas dos dízimos. A outra metade chegou, principalmente, por meio de transferências eletrônicas provenientes de filiais da igreja espalhadas pelo país. A partir daí, o esquema funcionava da seguinte maneira, de acordo com a acusação: a maior parte do dinheiro era repassada, a título de ‘pagamentos’, para empresas de fachada controladas por integrantes do grupo, a Cremo Empreendimentos e a Unimetro Empreendimentos. Ambas movimentaram, entre 2004 e 2005, mais de 70 milhões de reais, ainda que não tenham oferecido no período nenhum serviço ou produto, segundo atesta a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Da Cremo e da Unimetro, o dinheiro dos fiéis era enviado para empresas sediadas em paraísos fiscais: a Investholding, nas Ilhas Cayman, e a CableInvest, nas Ilhas do Canal. De lá, retornava ao Brasil disfarçado de empréstimos para pessoas ligadas à Universal, que usavam os valores para transações nada religiosas. Apesar do emaranhado trajeto percorrido pelo dinheiro, ele, na verdade, nunca saiu das mãos da cúpula da Universal. A Cremo é de propriedade da Unimetro – que, por sua vez, pertence às duas empresas sediadas no exterior. No Brasil, a Investholding e a Cableinvest são representadas por Alba Maria da Costa e Osvaldo Sciorilli, executivos da Universal, ligados a diversas empresas do grupo e réus no processo. Assim como o chefe, Alba e também Maurício Albuquerque e Silva, ex-diretor da Cremo e da Unimetro, são proprietários de imóveis em Miami.

O Gaeco sustenta que foi esse o esquema usado pela igreja para comprar, por exemplo, a TV Record do Rio de Janeiro e a TV Itajaí, de Santa Catarina. Ao todo, o império de comunicação da Universal reúne 23 emissoras de TV, 42 emissoras de rádio e várias outras empresas. O do bispo prospera na mesma medida. Em 2007, ele se esmerava na construção de uma casa de 2 000 metros quadrados em Campos do Jordão (SP), no valor de 6 milhões de reais. Naquele tempo, já era proprietário de outra casa na mesma cidade, comprada onze anos antes por 600 000 dólares. Somem-se a isso os imóveis de Miami e não restará dúvida de que Macedo é um abençoado. Resta saber se à luz da lei tanta prosperidade também poderá ser comemorada.’

 

Marcelo Marthe

Um corpo de duas cabeças

‘Na semana passada, o profano e o religioso se confundiam na programação da Rede Record. No horário nobre, o Jornal da Record reagiu às denúncias contra Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, por meio de reportagens que atacavam o Ministério Público e a concorrente Globo. De madrugada, um programa da própria igreja veiculado na emissora, o Fala que Eu Te Escuto, repetia as mesmas reportagens à exaustão. É mais uma evidência de que, a despeito das afirmações de independência da emissora, Universal e Record são metades inseparáveis de um só organismo. Pessoas ligadas à igreja ocupam a maioria dos cargos de direção da emissora. A Universal repassa anualmente à Record montantes crescentes de recursos – foram 240 milhões de reais em 2006, 320 milhões em 2007 e 400 milhões em 2008. Pertencem a ela, ainda, alguns dos principais imóveis onde a Record está sediada. Boa parte das regalias de seus executivos não sai do caixa da própria emissora: na semana passada, VEJA constatou que um deles mora num imóvel pertencente à Cremo, uma das empresas do esquema de lavagem de dinheiro denunciado pelo Ministério Público.

Nos últimos cinco anos, Macedo comandou um esforço de marketing para desvincular a imagem de seu império de comunicação das atividades religiosas. A rede investiu centenas de milhões de reais para modernizar sua programação com novelas como Poder Paralelo e o reality show A Fazenda. O televangelismo, antes salpicado por vários horários ao longo do dia, foi restrito às madrugadas – e se adotou o discurso de que a Universal é apenas uma anunciante como outra qualquer. Não é. Levantamento do Coaf, órgão do Ministério da Fazenda responsável pela fiscalização das operações financeiras no país, mostrou que a Record é a segunda entre as cinquenta principais beneficiárias de transferências bancárias da Universal (a primeira é própria igreja). A compra dos horários na madrugada é um modo de justificar do ponto de vista legal esse aporte vultoso de recursos, que representa uma vantagem competitiva e tanto para a Record diante das concorrentes. A Universal paga à emissora um valor acima de 200 000 reais por hora numa faixa em que ela obtém mísero 1,4 ponto de ibope – enquanto a Globo fatura em média 50 000 por hora no mesmo período, e com audiência bem maior, na casa dos 6 pontos (veja quadro abaixo). Apesar dessa distorção comercial, até agora não se questionou a fórmula de legalização desse duto que abastece a Record com o dízimo dos fiéis.

Bispos ‘licenciados’ ocupam os cargos-chave da Record. Honorilton Gonçalves, um dos denunciados pelo Ministério Público, é o mandachuva da emissora. Os bispos respondem ainda pela área de engenharia e vendas internacionais. Os ‘obreiros’ da Universal, ajudantes leigos, ocupam postos intermediários e funções como as de faxineiro e segurança. A igreja paga para que fiéis e pastores façam cursos como jornalismo e administração, com o intuito de aproveitá-los nos quadros da Record. O atual presidente da emissora, Alexandre Raposo, vive com a família em uma casa num condomínio de luxo em Barueri, na Grande São Paulo, que – conforme VEJA apurou – está registrada em cartório como parte de um conjunto de lotes pertencentes à Cremo Empreendimentos (a assessoria de imprensa da Record limita-se a informar que Raposo vive ‘num imóvel alugado’). As instalações mais importantes da rede em São Paulo não estão no nome da Record, mas da Igreja Universal. Incluem-se aí o terreno principal da sede da emissora, na Barra Funda, e o edifício no bairro dos Jardins, área nobre da cidade, em que funcionam sua assessoria de imprensa, o departamento comercial e o Instituto Ressoar – braço filantrópico da Record. A emissora alega que paga aluguel mensal pela ocupação do prédio nos Jardins – e não confirma a propriedade do terreno na Barra Funda.

A comunhão espiritual entre Record e Universal também se dá pela via contrária: a igreja se utiliza fartamente dos recursos e do material produzido pela emissora. Num dos QGs de Edir Macedo – o templo localizado na Avenida João Dias, em São Paulo, onde ele e seus principais auxiliares moram quando estão na cidade –, carros de reportagem da emissora ficam à disposição dos bispos do Fala que Eu Te Escuto. As equipes do programa utilizam equipamentos da Record para produzir entrevistas nas ruas – e seus repórteres exibem o microfone com o logotipo da rede. Nos bastidores da emissora, artistas e jornalistas reclamam de ver suas atrações na Record serem recicladas no programa dos bispos – sem ganhar adicional de salário por isso.’

 

Adriana Dias Lopes e Fábio Portela

Por que os fiéis doam tanto

‘Para ganhar a bênção divina, curar-se de doenças, conseguir emprego ou pôr fim a outras aflições. É uma prática antiga, que está no cerne de todas as religiões, mas que a Igreja Universal do Reino de Deus elevou a um patamar inédito

A Igreja Universal do Reino de Deus é uma potência tanto do ponto de vista religioso quanto do econômico – e uma coisa tem tudo a ver com a outra. Os bispos liderados por Edir Macedo arrastam multidões a seus cultos e conseguem fazer com que elas doem verdadeiras fortunas à igreja. A Universal ocupa o terceiro lugar no ranking das maiores instituições religiosas do país, atrás apenas da Igreja Católica e da Assembleia de Deus, também pentecostal. O bispo Macedo controla um império da fé que conta com 4 700 templos, espalhados por mais de 1 500 cidades, em 172 países. Segundo as estimativas mais recentes, seu rebanho já chega a 8 milhões de pessoas. Essa massa de fiéis é a responsável pelos exuberantes resultados financeiros ostentados pela igreja. A cada ano, a organização do bispo Macedo recebe 1,4 bilhão de reais em doações.

Não há nenhum pecado no fato de uma igreja pedir donativos aos fiéis para sustentar suas atividades. Organizações religiosas também precisam de dinheiro para se manter – é uma prática prevista em lei e que goza de imunidade fiscal. A doação religiosa remonta a Abraão, o personagem bíblico que decidiu repartir seus ganhos com Deus. Ele doou parte do espólio de uma guerra a um sacerdote chamado Melquisedeque como forma de gratidão por ter sido abençoado. O bispo Macedo, portanto, não inaugurou nenhum capítulo novo na história das religiões ao pedir doações, mas é inegável que ele levou esse hábito a um patamar inédito.

CONSELHO DA IGREJA

‘Em 2007, eu estava em dificuldades financeiras e pedi aconselhamento a um pastor da Universal.. Ele disse que minha vida só melhoraria se eu doasse dinheiro à igreja. Contei a ele que meu marido estava com 2 800 reais guardados em casa, pois havia vendido um carro. O pastor disse que era pouco e perguntou se eu não conseguiria mais. Respondi que havia também 400 reais separados para o aluguel. Ele pediu que eu inteirasse 3 000 reais e levasse à igreja na mesma hora. Fiz o que ele mandou. Quando meu marido descobriu, ficou muito bravo. No dia seguinte, fomos ao templo pedir ao pastor para devolver o dinheiro. Ele disse que era impossível, falou que eu estava com um encosto e ainda mandou meu marido fazer um BO contra mim por furto. Hoje, me arrependo de ter caído naquela conversa.’

Simone Vitório, 31 anos, cabeleireira (ao lado do marido, Aparecido)

Macedo arrecada muito porque tem método: ele colocou o dinheiro no centro de seu discurso teológico. Se os católicos veem na doação uma oportunidade de praticar a virtude da caridade, a Universal tem uma visão muito mais pragmática do assunto. A igreja se inspirou nos preceitos da Teologia da Prosperidade, criada por pentecostais americanos no início do século XX, para desenvolver uma linha de raciocínio na qual o fiel faz um ‘toma lá dá cá’ com Deus. Na Universal, ensina-se que a felicidade terrena é uma concessão divina. Apenas quem é abençoado consegue ter uma vida livre de sofrimentos e repleta de saúde e prosperidade material. Para alcançar a graça, no entanto, é preciso viver fervorosamente a experiência da fé e, sobretudo, demonstrá-la. E a melhor forma de fazer isso é entregar dinheiro aos representantes de Deus – no caso, os bispos da Universal – para que ele seja misticamente multiplicado. A doação é um investimento. Quanto mais o fiel der à igreja, mais receberá de Deus no futuro.

A principal modalidade de doação é o pagamento de dízimo. Cada seguidor da igreja entrega 10% de seus ganhos mensais para financiar a obra de Deus. Além disso, os pastores estimulam doações extras – eles precisam cumprir metas de arrecadação para ter prestígio dentro da igreja. ‘Durante os cultos, é comum ouvir frases do tipo: ‘Hoje precisamos de 10% para o Pai, 10% para o Filho e 10% para o Espírito Santo’. Eles são extremamente criativos’, diz o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC do Rio Grande do Sul. Duas vezes por ano, é organizada em todos os templos a Fogueira Santa de Israel. Trata-se de uma campanha de arrecadação suplementar em que os fiéis escrevem pedidos em pedaços de papel e os pastores se comprometem a levar as anotações até Israel, onde estariam mais perto de Deus. Paralelamente, cria-se um clima de catarse nos templos e as pessoas são estimuladas a fazer doações altíssimas para mostrar a Deus que aceitam se sacrificar pela igreja. Muitos doam todo o dinheiro que têm e, depois disso, joias, relógios, carros, computadores e até imóveis.

QUEM TEM MAIS FÉ DOA MAIS

‘Fiquei muito decepcionado com a Igreja Universal. Dei tudo o que podia em busca de uma vida mais feliz. Lá, me diziam que a fé se mede com dinheiro – quem tem mais fé doa mais à igreja. Quem tem fé pequena doa pouco. Numa das campanhas da Fogueira Santa, quando os fiéis dão o que podem e o que não podem, fiz um esforço enorme. Vendi uma chácara que eu tinha e dei tudo para a igreja. Também entreguei meus salários, 13º, férias, vale-transporte e tíquete-refeição.. Pegava empréstimo em bancos para dar aos bispos. Eu só queria levar uma vida normal, curar minha depressão, casar, ter filhos. Fiz de tudo, mas nada aconteceu. O que restou foi tristeza e angústia. E muitas dívidas também.’

Edson Luis de Melo, 45 anos, aposentado (na foto, com a mãe, Dulce) Fernando Cavalcanti

A maioria dos seguidores de Edir Macedo, gente humilde, com renda familiar de três salários mínimos e que estudou, em média, até a 6ª série do ensino fundamental, aceita esse discurso e se mostra satisfeita em ajudar a engordar o caixa da organização. Eles acreditam que, de alguma forma, são beneficiados ao se desfazer de suas economias. Mas o fervor pecuniário dos bispos tem levado muitos fiéis a enfrentar a ruína financeira no afã de agradar a Deus. Há gente que, depois de chegar à conclusão de que estava sendo ludibriada, decide entrar na Justiça para reaver o dinheiro que entregou ao bispo Macedo.

Maria Moreira de Pinho, de 72 anos, que vive em São Paulo, é uma dessas pessoas. Ela entrou na Universal em 1991. Em seis anos, vendeu dois apartamentos, algumas ações e as duas máquinas de costura, sua antiga forma de sustento, para arrecadar dinheiro para a igreja. Entregou mais de 100.000 reais aos pastores. ‘Dei tudo o que tinha pela promessa de ser abençoada’, diz. Anos depois, na miséria, ela se revoltou. ‘Como alguém que passa necessidade e tem de morar de favor pode se considerar abençoada?’, indaga. Maria decidiu processar a Universal para reaver seu dinheiro. Apesar disso, não perdeu a fé. Continua evangélica, mas passou a frequentar a Igreja Internacional da Graça de Deus, do cunhado de Edir Macedo, o missionário R.R. Soares. ‘Agora, pago só o dízimo. Estou aliviada por não ter mais de fazer a Fogueira, prometer dinheiro, vender coisas para dar à igreja’, afirma ela. Maria encarna o pensamento médio do cristão pentecostal. Não está arrependida por ter dado dinheiro, mas por não ter recebido a bênção divina em troca. O ‘toma lá dá cá’ não funcionou. Para evitar defecções como essa, os pastores dizem que, se a graça divina não é concedida, a culpa nunca é de Deus, mas do próprio cristão, que teve pouca fé e não se empenhou como deveria. Como se redimir? Aumentando o ritmo das doações, é claro.

EU FAZIA LAVAGEM CEREBRAL

‘Para me tornar pastor, tive de vender minha casa e doar o dinheiro à igreja. Disseram que era um jeito de provar que Deus estava no meu coração. Quando comecei a pregar, participava de reuniões periódicas para falar sobre metas de arrecadação. Eu fazia uma verdadeira lavagem cerebral nos fiéis para convencê-los a doar mais dinheiro. Precisava levantar 150 000 reais mensais em doações e, depois, aumentar 20% a cada mês. Cheguei a ir para o hospital, tamanha a pressão. Houve um mês em que consegui apenas 120 000 reais. Por não bater a meta, fui xingado de burro e endemoninhado por um bispo. Depois disso, decidi abandonar a Universal.’

Jenilton Melo dos Santos, 44 anos, ex-pastor

Exemplos de fiéis da Universal que ficaram na miséria se acumulam. Há casos trágicos, como o do ex-porteiro Edson Luis de Melo, que sofre de depressão severa e entregou cada centavo de seu modesto patrimônio na esperança de ser curado. ‘Ele achava que a igreja poderia salvá-lo do sofrimento psicológico. Quando não estava trabalhando, estava no culto. No final, doava todo o salário. Não sobrava nada para ele. Esses cinco anos o levaram à falência e à loucura’, diz sua mãe, Dulce, que precisou interditar o filho na Justiça para impedi-lo de continuar doando. Outras histórias beiram o anedótico, como a de Gláucio Verdi, que ficou apenas um ano na Universal e acabou com o nome sujo na praça. Verdi passou a frequentar cultos em 2004, quando estava desempregado. Entregou um cheque pré-datado de 1 000 reais ao pastor, sem ter dinheiro no banco. Ele esperava vender uma lambreta para cobrir o pagamento. Como não conseguiu, pediu que o cheque fosse devolvido. Nada feito: a Fogueira de Israel não admite passo atrás. A Universal depositou o cheque de Gláucio e ele está no cadastro negativo do Serasa até hoje.

Todo grupo religioso, seja qual for sua origem, deve ter o direito de professar sua fé em paz. Esse é um dos pilares que sustentam o estado democrático de direito. Perseguições de caráter religioso sempre estiveram entre as piores monstruosidades perpetradas pela humanidade. Mas quem se propõe a guiar um rebanho deveria saber que uma alma que busca conforto na religião para superar um momento de fragilidade emocional atravessa um período de vulnerabilidade. É capaz de tomar atitudes impensadas, com consequências drásticas para seu destino.’

 

Diogo Schelp

O culto à prosperidade

‘Os escândalos envolvendo a Igreja Universal do Reino de Deus são apenas uma face feia de um movimento religioso que, em pouco mais de 100 anos, construiu na América Latina uma história inspiradora, estendendo a mão àqueles que buscavam conforto espiritual em uma nova fé. Os evangélicos são herdeiros de uma tradição protestante que encontrou solo fértil nos Estados Unidos, baseada no comprometimento pessoal com Cristo e na adesão estrita à Bíblia. A vertente evangélica mais bem-sucedida no subcontinente é a pentecostal, que une a ortodoxia bíblica à ênfase na salvação por meio de milagres. Dois em cada três evangélicos latino-americanos são pentecostais ou neopentecostais – subcorrente que inclui a Igreja Universal. Na América Latina, aonde chegaram por meio de missionários americanos e europeus, as igrejas evangélicas difundiram a ética do trabalho e da realização pessoal e deram um senso de comunidade aos migrantes rurais que vinham para as cidades. A flexibilidade na hierarquia religiosa – qualquer um pode ser pastor, mesmo sem estudos – também ajudou a conquistar adeptos, principalmente entre as massas iletradas. Nos últimos quarenta anos, a população evangélica na América Latina pulou de 15 milhões para mais de 60 milhões de fiéis. Elas seguem uma grande variedade de denominações, algumas autóctones, outras filiais de igrejas brasileiras e americanas.

O pentecostalismo, com sua doutrina do bem-estar econômico indissociável da espiritualidade religiosa, teve o mérito de barrar o avanço de ideologias revolucionárias de esquerda na América Latina. As novas fés protestantes abordam o descontentamento social de maneira radicalmente diferente das teorias marxistas. Para os pentecostais, a pobreza é resultado do fracasso pessoal, não de um sistema econômico injusto. Na década de 70, quando as igrejas pentecostais começaram a crescer mais rapidamente na América Latina, o foco no conforto espiritual e na realização material serviu como contraponto à Teologia da Libertação, aquela estranha concepção marxista de catolicismo que transformou Jesus Cristo numa espécie de Che Guevara da Antiguidade.’

 

Diogo Mainardi

O dízimo do tráfico

‘‘Carlos Magno de Miranda era um dos líderes da Igreja Universal. Ele relatou os detalhes de sua ida a Medellín, para receber dinheiro dos narcotraficantes colombianos. Um mensageiro entregou-lhes 450 000 dólares. As mulheres dos pastores esconderam o dinheiro nas calcinhas’

O pastor Carlos Magno de Miranda, em 1991, acusou a Igreja Universal de ter comprado a Rede Record com dinheiro de narcotraficantes colombianos. Agora, com duas décadas de atraso, o episódio finalmente poderá ser esclarecido. Os mesmos promotores que, na semana passada, denunciaram criminalmente Edir Macedo e outros integrantes da Igreja Universal indagam também a suspeita de que a segunda parcela da compra da Rede Record possa ter sido saldada com recursos do Cartel de Cali. Carlos Magno de Miranda é uma das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, e os promotores cogitam pedir a abertura de mais um processo contra os donos da Rede Record.

Carlos Magno de Miranda era um dos líderes da Igreja Universal. Em 1990, ele se desentendeu com Edir Macedo e passou a atacá-lo publicamente. Num dos documentos obtidos pelo Ministério Público, ele relatou os detalhes de sua ida a Medellín, para receber o dinheiro dos narcotraficantes colombianos. Ele teria viajado com os pastores Honorilton Gonçalves e Ricardo Cis, todos acompanhados de suas mulheres. Permaneceram dois dias na cidade. No primeiro dia, aguardaram no hotel. No segundo dia, um mensageiro entregou-lhes uma pasta contendo 450 000 dólares. As mulheres dos pastores esconderam o dinheiro nas calcinhas e, de madrugada, retornaram ao Rio de Janeiro num jato fretado. Segundo Carlos Magno de Miranda, os fatos teriam ocorrido entre 12 e 14 de dezembro de 1989. Os promotores do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) analisaram os registros aeroportuários da Polícia Federal e – epa! – documentaram que, naqueles dias, os pastores da Igreja Universal realmente foram a Medellín, com escala em Manaus.

O Ministério Público, além disso, entrou em contato com autoridades americanas para poder interrogar o narcotraficante colombiano Víctor Patiño, que foi preso em 2002 e extraditado para os Estados Unidos. Seu nome foi associado ao da Igreja Universal em 2005, quando a polícia colombiana descobriu que uma de suas propriedades em Bogotá – uma cobertura de 600 metros quadrados – era ocupada por Maria Hernández Ospina, que alegou ser representante de Edir Macedo.. Uma das dificuldades dos promotores do Gaeco é que Edir Macedo tem cidadania americana, dado confirmado oficialmente pelo consulado. O Ministério Público já encaminhou todos os documentos do processo contra Edir Macedo aos Estados Unidos, para que os americanos possam abrir um inquérito próprio.

A Igreja Universal, nos últimos dias, atrelou sua imagem à de Lula. É a mesma estratégia empregada por José Sarney. Um apoia o outro. Um defende o outro. Edir Macedo está com Lula e com Dilma Rousseff. Agora e em 2010. Se a Igreja Universal tem um Diploma do Dizimista, assinado pelo senhor Jesus Cristo, Dilma Rousseff tem um Diploma de Mestrado da Unicamp, supostamente assinado pelo senhor Espírito Santo. O senhor Edir Macedo e o senhor Lula se entendem. Eles sabem capitalizar a fé.’

 

VIOLÊNCIA

Duda Teixeira

Mata, filma e mostra

‘O repórter caminha em um matagal enquanto fala ao microfone. ‘Cheiro de churrasco queimado’, diz ele, cobrindo o nariz com a gola da camisa. ‘Taí o corpo’, afirma alguns passos mais adiante. ‘É do sexo masculino. Foi desovado aqui. Inclusive tacaram fogo nele.’ A cena foi ao ar em Manaus, pouco antes da hora do almoço, no programa Canal Livre, em setembro de 2008. Depoimentos colhidos pela Justiça do Amazonas neste ano indicam que o corpo, que ainda exalava fumaça nas imagens da TV, era de um traficante de drogas assassinado por ordem do filho do apresentador do Canal Livre, Wallace Souza. Os detalhes revelam uma surpreendente associação entre o crime e a busca por audiência.

A história completa, de acordo com o inquérito, é a seguinte: ao saber que um carregamento de 30 quilos de cocaína chegaria ao Porto de Manaus, o filho do apresentador, Raphael Souza, reuniu um grupo de policiais militares para matar o traficante. Eles se apossaram da carga e avisaram o programa de TV. No mesmo mês, de acordo com depoimentos que estão no inquérito, Wallace e uma equipe de TV esperaram pacientemente na rua até o apresentador ser avisado, por telefone, da ocorrência de um crime. A equipe chegou a tempo de filmar a agonia da vítima, morta com quatro tiros. Para a polícia, o crime foi cometido por seguranças de Wallace. O Ministério Público denunciou o apresentador e o filho por seis homicídios, número que, dependendo das investigações, pode passar de dez.

Além de apresentador, Wallace é o deputado estadual mais votado do Amazonas. Em companhia do filho e de policiais militares, de arma na mão e colete à prova de balas, ele foi filmado várias vezes invadindo casas, agredindo pessoas e estourando bocas de fumo. Seu lema era ‘bandido bom é bandido morto’. A polícia diz que, além de obter imagens inéditas para o programa, o propósito era se apossar da droga de outros traficantes e conquistar pontos de venda. Em todos os homicídios que podem ter tido a participação dos Souza a vítima era ligada ao narcotráfico. Por sinal, Raphael ainda fazia questão de comparecer aos enterros.

Também está no processo que pai e filho ordenaram atos de vandalismo, quebrando vitrines de lojas e janelas de prédios públicos. Além de usar as cenas no programa, eles tinham como objetivo criar uma sensação generalizada de insegurança em Manaus. O pânico, acreditavam, facilitaria a ascensão de Wallace ao cargo de secretário de Segurança Pública. Por ser deputado, Wallace conta com foro privilegiado e está sendo julgado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas. Pode ser indiciado por formação de quadrilha, porte ilegal de armas, corrupção de testemunhas e associação ao tráfico de drogas. Seu filho terá a sentença decretada no fim deste mês. Bandido bom é bandido preso.’

 

TELEVISÃO

Sérgio Martins

Conectada e comportada

‘Carly Shay tem 15 anos, é órfã de pai e mãe e mora em Seattle com o irmão mais velho. Com a ajuda de dois amigos, o maníaco por computação Freddie e a hiperativa Sam, apresenta um programa de variedades na internet, no qual exibe vídeos e dá dicas de comportamento. Com esse argumento, a série iCarly estourou entre crianças e adolescentes. Nos Estados Unidos, tem alcançado, em média, 5,6 milhões de espectadores a cada episódio, batendo outro fenômeno jovem, Hannah Montana, da Disney. No Brasil, onde é exibido pelo canal pago Nickelodeon, iCarly, com média de 12 500 espectadores entre 4 e 11 anos, também está à frente de Hannah Montana, com 9 200. ‘Bem que eu percebi um aumento nos e-mails vindos do Brasil’, disse a atriz Miranda Cosgrove, que interpreta Carly, em entrevista a VEJA. O e-mail é parte essencial da fórmula de iCarly – assim como sites de vídeos como o YouTube e de relacionamento como o Facebook. Carly é a heroína perfeita para uma geração conectada à internet..

Descoberta aos 9 anos, quando cantava em uma pizzaria de Los Angeles, Miranda, hoje com 16, tinha um vasto repertório de pontas no cinema e na televisão antes da estreia de iCarly, em 2007. Fez uma garota enjoada de tão certinha na comédia Escola do Rock. Em 2004, ganhou um papel permanente em uma série adolescente de menor repercussão, Drake & Josh – era a irmã mais jovem e malvada dos protagonistas. ‘Em iCarly, finalmente pude interpretar alguém de bom coração’, brinca. Como tantas outras garotas da sua idade, Miranda, a atriz, tem seu perfil no Facebook. Carly, sua personagem, também. O fã da série é convidado a interagir com os personagens por meio da internet. Em um dos mais divertidos episódios da primeira temporada – atual-mente a Nickelodeon exibe a segunda temporada no Brasil –, Carly e seus amigos promoveram um concurso de vídeos de dança. Os espectadores enviaram seus clipes pelo site da série, e os personagens apresentaram os melhores no programa. ‘Às vezes, fico até de madrugada lendo dicas e assistindo a vídeos que os fãs mandam’, diz Miranda.

Na vida além do computador, iCarly apresenta os dramas típicos da idade – namoros, problemas na escola, pequenos conflitos domésticos. Na melhor linha da concorrente Disney, é um programa ‘família’, com personagens comportadinhos. Até a alimentação é saudável. Nada de lanches gordurosos com batata frita: Carly e sua turma comem manga e melancia. Miley Cyrus, a estrela de Hannah Montana, está se remodelando para parecer mais sexy – recentemente, na cerimônia de entrega do prêmio Teen Choice Awards, fez uma dança em torno de um poste de stripper. Miranda, por enquanto, atém-se ao figurino certinho. ‘Sou comportada, sim. Na minha casa, ainda tenho de arrumar a cama e fazer tarefas domésticas’, diz.’

 

Marcelo Marthe

Vã psiquiatria

‘Com Yvone, a personagem de Letícia Sabatella em Caminho das Índias, a noveleira Glória Perez quis retratar um grave distúrbio de personalidade: a psicopatia. Por um defeito na conformação neurológica, psicopatas são incapazes de nutrir sentimentos como empatia ou remorso. Estima-se que representem 1% de qualquer população. Há vários graus de psicopatia. Os assassinos são uma minoria dentro dessa minoria. Yvone estaria entre os psicopatas moderados, propensos a pequenas maldades. No momento, está empenhada em chantagear a dondoca Nanda (Maitê Proença). Na sexta-feira retrasada, foi castigada por uma outra torpeza: levou uma surra descomunal da perua Melissa (Christiane Torloni), que descobriu que ela era amante de seu marido. Pega assim, de jeito, Yvone nem conseguiu reagir. Sua única resposta foi um uivo gutural.

Atriz engajada em causas ecológicas e sociais, Letícia Sabatella entrou em sérias elucubrações para viver a malvadona. ‘Conversei muito com os amigos sobre como lidar com a existência do mal no mundo e dentro de nós’, conta. Já a noveleira Glória Perez buscou assessoria da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, autora de Mentes Perigosas, espécie de manual de autoajuda que ensina a lidar com tais ‘predadores humanos’. ‘Glória alerta para o fato de que sempre pode haver um psicopata à espreita para se aproveitar da nossa boa-fé. Mas as pessoas do bem podem se unir e vencê-lo’, diz a psiquiatra. Para ela, o uivo da personagem foi carregado de simbolismo: ‘Yvone reagiu como um animal frustrado ao ser enganado por sua presa’. O castigo provocou comoção: na segunda-feira passada, o serviço de atendimento ao público da Globo computou dez vezes mais mensagens que o usual. Mas as implicações psiquiátricas da cena não foram as mais comentadas. Louca ou não, Yvone seduziu o homem alheio. Muitas mulheres traídas escreveram para dizer que se sentiram vingadas com os tapas aplicados – isso sim – àquela boa bisca.’

 

DISCURSOS

Mario Sabino

Lula, como nunca antes…

‘Está no verbete Discurso(s): ‘Um dia vão ganhar dinheiro pela quantidade de discursos que eu faço todos os dias. Eu ficaria milionário’. É improvável que Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, fique rico com sua mais nova empreitada, Dicionário Lula – Um Presidente Exposto por Suas Próprias Palavras (Nova Fronteira; 59,90 reais), recém-chegado às livrarias. Porém é certo que se trata de um livro com chance de render bons frutos ao seu autor. Afinal de contas, como nele está contido praticamente todo o pensamento político de Luiz Inácio Lula da Silva, verbalizado e sem a mediação de penas de aluguel, Dicionário Lula é ótima obra de consulta para o presente – e de referência para a posteridade que se debruçará sobre um presidente como nunca houve nesta República. Mais completa reunião das falas do atual ocupante do Palácio do Planalto, é um livraço também no que se refere ao tamanho: 672 páginas.

Ao contrário de seus dois trabalhos anteriores, Não Somos Racistas, de 2006, e Sobre o Islã, de 2007, nos quais Kamel firmava pontos de vista tão racionais quanto intrépidos sobre os temas abordados, neste não há julgamento ideológico e moral. Ele não opina se Lula está certo ou errado, não aponta se mente ou se atém à verdade. Também não se dedica a coligir os erros de português, as falhas de lógica e as metáforas pedestres do presidente. Não é um Lula de anedotário, o que emerge no livro de Kamel. A intenção é registrar, com o máximo de objetividade e, não menos essencial, organização, o que o presidente diz pensar a respeito de uma série de assuntos, inclusive ele próprio e sua trajetória. Desenhada a linha, Kamel desprezou os discursos protocolares de Lula, para concentrar-se naqueles improvisados no todo ou em parte. Para além de o presidente ser o rei do improviso, aspecto incancelável de seu passado de líder sindical acostumado a mobilizar assembleias de trabalhadores, o autor explica que, a seu ver, é na fala espontânea que aparece o Lula por inteiro, ‘mais real’.

O Dicionário Lula começou a nascer em 2004, quando Kamel leu um estudo de um acadêmico americano que analisava a cobertura das eleições presidenciais de seu país – naquele ano, o republicano George W. Bush conquistou seu segundo mandato ao derrotar o democrata John Kerry. O estudo procurava identificar o viés ideológico da grande imprensa americana, por meio de um programa de computador que contava quantas vezes as palavras mais associadas ao ideário republicano ou democrata apareciam nas reportagens de cada veículo nos meses que antecederam o pleito. Kamel achou o método um tanto ingênuo, porque uma palavra podia ser contabilizada como ‘republicana’, por exemplo, mesmo quando era reproduzida numa reportagem com o intuito de criticar a visão do partido. Mas ele ficou fascinado com as possibilidades abertas pelo uso do computador para fazer levantamentos de conteúdo, e logo concluiu que os pronunciamentos de Lula seriam um objeto ideal: todas as falas do presidente estão reproduzidas no site da Presidência da República.

Em 2007, resolvido a enfrentar o desafio de montar um ‘léxico Lula’, Kamel chamou o historiador Rodrigo Elias para ajudá-lo. Na fase inicial, que consumiu cinco meses de trabalho, foi colocado num único arquivo de computador tudo o que Lula falou entre janeiro de 2003 e março deste ano – um total de 1 554 textos, dos quais 847 discursos, 503 entrevistas e 204 programas radiofônicos. Depois, por intermédio de um software livre – disponível gratuitamente na internet –, o TextStat, verificou-se a frequência com que certas palavras surgiam. Como o programa era incapaz de cruzar os termos, condição necessária para conferir quando Lula os utilizava no mesmo discurso ou até na mesma frase, Kamel contratou o analista de sistemas Wilson Pacheco de Albuquerque. Ele levou um mês para desenvolver um programa que permitia não apenas contar palavras, mas localizá-las e relacioná-las.

Ao final, o autor chegou a um vocabulário básico das 540 palavras mais usadas pelo presidente. Para refinar ainda mais esse repertório, Kamel contou com a ajuda de uma pesquisadora, Ana Frias, para separar os momentos em que Lula enunciava frases relevantes sobre um assunto de outros instantes em que só citava o vocábulo ou um derivado em contextos desprovidos de importância. Para completar, foi preciso expurgar termos que Lula mencionou de forma recorrente, mas que o contexto revelou serem irrelevantes – e, na direção inversa, incluir na seleção palavras que, embora menos utilizadas, fossem significativas. Entre elas, ‘mensalão’, proferida apenas 35 vezes, mas que, por quarenta motivos de uma obviedade ululante, não poderia ficar de fora. Passado o pente-fino, Kamel chegou aos 345 verbetes que compõem o Dicionário Lula. O trabalho entrou a partir daí na fase final, que consistiu em mergulhar nas falas do presidente para extrair o que o autor chama de ‘unidade de sentido’ – uma espécie de súmula do que o presidente diz pensar sobre determinado assunto. Algumas entradas resumidas podem ser lidas nos quadros que ilustram esta reportagem.

Foi dito no início que Kamel, em seu dicionário, não emite opinião sobre o presidente. Mas ele não cumpriria integralmente a tarefa a que se propôs, expressa no subtítulo do livro, se deixasse de mostrar, tanto na introdução de 87 páginas quanto na edição dos verbetes, as contradições e idas e vindas do presidente que certa feita se autodefiniu uma ‘metamorfose ambulante’. Elas estão lá, para que leitores comuns e historiadores façam sua exegese. Partidários e opositores de Lula continuarão a divergir na interpretação de um fato que, agora registrado em centenas de páginas, se torna mais evidente: o presidente adora falar sobre si próprio e de seu passado de retirante e operário. Para os primeiros, a autorreferência é iluminação; para os segundos, limitação. Equidistante de uns e outros, Kamel arremata que, ‘muito longe do estereótipo do líder da esquerda operária tradicional – geralmente ateu, arauto de um novo homem, advogado da reestruturação da família em novos moldes, proponente de um regime político-econômico em que haja supremacia dos trabalhadores em relação aos patrões –, Lula acaba exposto, por suas próprias palavras, como um brasileiro médio mais ou menos crente em Deus, defensor do modelo tradicional de família e que se vê como o proponente de uma sociedade capitalista onde haja mais harmonia entre pobres e ricos’. E poderia ser acrescentado que, como todo brasileiro médio, ou nem tanto, ele gosta de uma cervejinha, que ninguém é de ferro, companheiro.

Com reportagem de Marcelo Marthe

Aliança(s)

…não devem ser feitas com o diabo: Qual é a hipótese que um candidato à reeleição tem que fazer? Se for uma pessoa honesta, que quer sair do governo do mesmo jeito que entrou, de cabeça erguida, só pode ser candidato se, em primeiro lugar, tiver a convicção muito forte de que o segundo mandato será melhor do que o primeiro. Segundo, se para ser candidato não tiver de vender a alma ao diabo nas suas alianças políticas. Caso contrário, se ganhar é vitória de Pirro, ganha e não governa.

Em dezembro de 2005

…devem ser pragmáticas: Mas eu precisava ampliar a minha base de alianças no Congresso Nacional. Eu percebi, rapidamente, a diferença entre ‘eu acho’ e ‘eu faço’. Quando a gente está teorizando, a gente pode achar tudo, quando a gente está governando, a gente tem que fazer, então precisa deixar de ‘achar’.

Em outubro de 2004

Brasil

Eu digo sempre que o Brasil é um país abençoado, porque Deus nos deu a vantagem comparativa. (…) O que era preciso, na verdade, era a gente fazer a nossa parte. Deus fez a parte dele, os portugueses fizeram a parte deles quando demarcaram tão bem o nosso país, e durante muitos anos ficamos esperando que nós fizéssemos a nossa parte, que o Banco do Brasil fizesse a sua parte, que o ministro da Fazenda fizesse a sua parte, que a Câmara dos Deputados fizesse a sua parte, que o ministro da Agricultura fizesse a sua parte, que os empresários fizessem a sua parte, e isso, graças a Deus, está sendo feito.

Em junho de 2004

…é um país que ninguém segura: Não poderia ter coisa melhor do que um presidente da República saber que uma escola de samba e o carnaval não podem ser tratados de forma pejorativa, como quando a gente encontra às vezes, pelo mundo afora, alguém dizendo: ‘O Brasil é um país que só tem carnaval, que só sabe jogar bola e que só tem crianças de rua’. É verdade, nós temos carnaval, temos futebol, temos criança de rua. Mas este país conquistou o direito de andar de cabeça erguida no mundo e competir, do ponto de vista da tecnologia, com qualquer país do mundo. Quando uma escola de samba, que é o retrato fiel da imagem mais pura do povo brasileiro – normalmente saída dos bairros mais pobres dos estados brasileiros –, adota para si a responsabilidade de colocar um tema da magnitude política que é esse, das Metas do Milênio, como samba-enredo, eu sou obrigado a olhar para vocês e dizer: eu acho que ninguém segura este país.

Em novembro de 2004

…avacalha tudo: Graças a Deus, o sistema financeiro não está envolvido no subprime. Lá, eles falam subprime, se fosse aqui no Brasil era caloteiro, aqui no Brasil nós avacalhamos tudo logo.

Em março de 2008

…é fácil de consertar: Eu confesso uma coisa a vocês, eu tive a impressão, quando cheguei ao governo, que o Brasil era como uma casa. Vocês já entraram numa casa em que você chega no banheiro e a descarga não está funcionando, a torneira da pia está com um monte de pano enrolado e está pingando, vazando, quando na verdade uma borrachinha para consertar custa, acho, dez, quinze centavos? O Brasil é um pouco isso.

Em outubro de 2004

Chefe

…fica com a melhor parte do trabalho: Eu trabalhava no Departamento de Previdência Social, no sindicato, e tinha um advogado que trabalhava comigo, o Luizinho – nem sei se ele está mais no sindicato. E eu falava assim… Eu cuidava das viúvas que iam lá procurar atestado de vida, cuidava de habite-se, cuidava de uma série de documentos que naquele tempo exigiam, não sei se exigem tudo isso hoje ainda. Eu disse para o Luizinho: ‘Olhe, se aparecer uma viuvinha bonita aqui, você me fala’. Porque eu era o chefe do departamento e era justo que eu atendesse. Aí, um dia, ele falou assim para mim: ‘Ó, Lula, tem uma lourinha aí bonita’.

Em dezembro de 2007

…gosta de ganhar crédito pelo trabalho dos bons funcionários: Muitas vezes, eu fico chateado quando eu não vejo lealdade na relação humana, eu fico chateado. Eu quero dizer para vocês que a coisa mais triste que um governante, e não eu, pode viver é ele saber que nas obras para as quais ele deu dinheiro para fazer sequer é citado o nome dele na maioria das cidades e na maioria dos estados brasileiros. Então, é o pior dos mundos, porque, quando a coisa está boa, ‘fui eu que fiz’. Eu aprendi na minha vida com chefe de fábrica. Eu durante muito tempo trabalhei e tinha muito chefe me olhando. Era um peão trabalhando e três em cima, olhando trabalhar. Bem, mas eu não me preocupava. Agora, quando saía uma peça boa, o chefe batia no peito e falava para o outro chefe: ‘Nós fizemos a peça boa’. Quando, por azar, a gente estava cansado e estragava uma peça, ele dizia: ‘Ele estragou a peça, não fomos nós, foi ele só’.

Em fevereiro de 2006

Congresso

…teve os presidentes da Câmara e do Senado ‘feitos’ por Lula: Vocês estão lembrados que diziam assim: ‘O Lula não vai conseguir trabalhar com o Congresso Nacional, vai ser muito difícil trabalhar com o Congresso Nacional, porque ele não tem maioria’. Nós fizemos o presidente da Câmara e o presidente do Senado.

Em março de 2003

…não deve ter os presidentes da Câmara e do Senado ‘feitos’ pelo presidente da República: Ora, todo mundo sabe que a lógica do Congresso Nacional funciona assim: quando um partido tem a Presidência da Câmara, outro partido tem a Presidência do Senado. O PT tem a Presidência da Câmara. O PMDB, como maior partido no Senado, tem o direito de ter a Presidência do Senado. Isso é um problema dos senadores, não haverá hipótese alguma de ingerência do presidente da República na disputa do que vai acontecer no Senado.

Em outubro de 2007

Comunista

Eu confesso que não gosto de rótulo. Eu acho que os mais velhos aqui se lembram que a primeira entrevista que eu dei, ainda no tempo da TV Tupi, tinha o Mesquita (Ruy Mesquita, jornalista, entrevistou Lula em 1978 para a TV Cultura), que me perguntou: Você é comunista? Eu falei: Não, sou torneiro mecânico. Porque eu acho que o rótulo não ajuda. Eu prefiro ser o Lula, torneiro mecânico, pernambucano de Garanhuns, que chegou à Presidência da República.

Em outubro de 2003

…era algo que Lula nunca quis ser: Eu fui para o sindicato na marra. Eu não gostava do sindicato também. Eu achava que lá só tinha comunista. Eu tinha 21 anos de idade. Meu irmão era militante, era muito atuante e tentava me convencer, mas eu nunca tive vontade de ir para o sindicato.

Em maio de 2003

…quando deixa de ser, fica sectário: Muitos desses meninos e meninas que estão protestando são oriundos do PT. Vocês sabem que ex-marido, ex-mulher, ex-fumante, ex-comunista, ex-petista vão ficando cada vez mais sectários, cada vez mais radicais e nós aprendemos a conviver com isso.

Em abril de 2006

Corrupção

…está em todos os setores da sociedade: Em todo setor… o da polícia tem corrupção? Tem, e na política não tem? No empresariado não tem? No Poder Judiciário não tem? Em todo segmento da sociedade tem. O que nós precisamos é separar o joio do trigo.

Em março de 2008

…é uma acusação à qual Lula diz estar imune: Todo mundo tem obrigação de ser honesto. Isso eu herdei da minha mãe e os brasileiros sabem disso, mesmo os adversários mais tenazes sabem. Eles podem acusar qualquer pessoa no Brasil, isso pode chegar até na porta da minha casa, mas eles sabem que não vão me acusar de corrupção porque sabem que eu sou honesto.

Em julho de 2007

Imprensa

…para o bem ou para o mal, é importante na democracia: Nós não teríamos chegado aonde chegamos se não tivéssemos tido a compreensão e, ao mesmo tempo, a incompreensão da imprensa.. Porque eu digo sempre que para o bem ou para o mal a imprensa é muito importante para garantir o processo democrático de uma nação.

Em março de 2004

…não conseguiu jogar a opinião pública contra o governo: A existência do mensalão, propalada pela oposição e difundida pela imprensa, não foi comprovada. A despeito da enorme campanha contra o governo, a maioria da opinião pública do país assim o entendeu, e por essa razão continuou apoiando o governo e minha candidatura presidencial.

Em julho de 2006

Lula

…é um homem de sorte: Eu não tenho tempo para levantar de cara feia. Eu sou um homem de muita sorte. Então, eu quero continuar, todos os dias, tendo muita sorte. É o seguinte: tudo o que dá errado é culpa minha, tudo o que dá certo é porque eu tenho sorte. Eu acho que o povo não vai votar num azarado para ser presidente da República, nunca. Tampouco uma mulher vai escolher um marido azarado..

Em março de 2008

…acha que todos que quiseram governar apenas para entrar para a história fracassaram: Eu queria dizer a vocês que tem gente que quer governar uma cidade, um estado ou um país, para marcar seu nome na história ou, quem sabe, construir uma biografia. Eu acredito que todos que pensam assim ou que pensaram fracassaram antes de começar.

Em março de 2003

…sabe como quer entrar para a história: Eu vou passar para a história do Brasil como o presidente que fez a maior política social, como o presidente que mais construiu universidades públicas no Brasil e, ao mesmo tempo, como o presidente que levou mais benefícios para os pequenos agricultores nas regiões mais pobres do país.

Em julho de 2007

Diploma

Eu sou filho de uma mulher analfabeta, que já morreu. E eu, de oito filhos, fui o primeiro a ter um diploma profissional. Por conta desse diploma profissional, eu fui o primeiro a ter uma casa, uma televisão, um carro. Eu fui virando ‘chique’, fui tendo as coisas. E tudo por conta de um diploma.

Em abril de 2003

…não é necessário para governar: Eu quero dizer isto para vocês: eu não tenho um diploma universitário, mas este país vai ficar orgulhoso de ver como é que um torneiro mecânico, formado no Senai, pode cuidar deste país melhor do que alguns doutores que governaram o Brasil durante tantos anos.

Em maio de 2003

…de economia é algo que Lula gostaria de ter: Lamento profundamente não ter tido um diploma universitário, lamento. Não digo isso com orgulho, não, gostaria de ter. Até gostaria de ser economista, viu, Aloizio (Mercadante, senador pelo PT de São Paulo)? Veja que coisa. Até gostaria de ser economista, não fui.

Em junho de 2006′

 

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