Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Viva a vingança dos plutocratas


O filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), conhecido simplesmente como Leibniz, dentre outros produziu dois conceitos que usarei para analisar o dia histórico do Jornal Nacional da TV Globo, nas palavras de seu âncora, William Bonner: o dia 2 de maio de 2011, dia suposto da divulgação ocidental do assassinato igualmente suposto de Osama bin Laden, o maior terrorista inventado, não sem estratégia terrorista, pelo maior terrorista que jamais a história humana conheceu e concebeu: o governo dos Estados Unidos da América, o soberano terrorista dono da vida e da morte; dono de Bin Laden, por tê-lo criado; e dono de sua morte por tê-lo, ainda que midiaticamente, matado.


Os dois conceitos de Leibniz que usarei para enfocar o histórico acontecimento do subserviente imperialismo do Jornal Nacional são o de compossibilidade e o de incompossibilidade. O primeiro, compossibilidade, significa aquilo que está em companhia do possível, como nos indica o prefixo ‘co(m)’, que quer dizer em companhia de, como na palavra coautor, aquele que escreve junto, em companhia de alguém, por exemplo, um romance, como seu coautor. Compossível é tudo o que está, assim, em companhia do que a nossa civilização considera possível, sob o ponto de vista das versões dos acontecimentos históricos; as versões que, não sem aversão terrorista, se tornaram padrão de referência e passaram a ser vistas, concebidas e vividas como verdade, como fato consumado.


Dizer, por isso mesmo, que Cristo morreu na cruz é um acontecimento compossível de nossa civilização cristã ocidental, assim como que Shakespeare é um autor inglês, que a Grécia foi o berço da civilização ocidental, que a Idade Média foi teocêntrica e o renascimento antropocêntrico ou que os Estados Unidos são o pais mais rico do mundo; ou ainda que as Torres Gêmeas de Nova York foram destruídas por aviões pilotados por terroristas e fundamentalistas islâmicos, sob o comando precisamente de Bin Laden, em 11 de setembro de 2001.


Presença de dominação justificada


Diferentemente daquilo que se tornou ou é compossível, que está em companhia do possível, o incompossível é tudo aquilo que destoa ou aparenta estar na contramão dos acontecimentos históricos consagrados ou cristalizados, aos quais damos o nome de história oficial. Atuar em nossa civilização alimentado pelo argumento ou perspectiva histórica de que Cristo não apenas não morreu na cruz, como liderou uma rebelião que trouxe o primeiro significativo abalo histórico ao Império Romano é, obviamente, uma versão histórica incompossível, assim como a versão de que Shakespeare não é inglês, mas um anônimo autor coletivo; ou que a Grécia não foi o berço da civilização ocidental, mas os bárbaros assim designados pelos próprios gregos; ou ainda que o antropocentrismo do Renascimento não passou de uma forma de teocentrismo disfarçado, logo mais violenta e fundamentalista e, por fim, que as Torres Gêmeas não foram destruídas por Al-Qaida, mas pelo Pentágono, portanto pelo governo terrorista dos Estados Unidos da América, imbuído que esta(va) do objetivo de dominar e submeter todo o mundo conhecido e desconhecido.


Tendo em vista essa relação ou jogo entre o campo do compossível e do incompossível, evidencia-se , penso, que a batalha pela dominação do mundo depende diretamente da vitória ou êxito na produção/edição/invenção de acontecimentos compossíveis. Detém poder, portanto, aquele país ou bloco de países que consegue produzir uma série – passado, presente e futuro – de acontecimentos compossíveis ao seu presente de dominação ou colonização de povos.


Considerando que o compossível se instala em rede no cotidiano, sendo simplesmente isso que chamamos de cotidiano, detém o poder, seja econômico, de gênero, étnico, epistemológico, civilizacional, o grupo cuja lógica ou interesse consegue ditar os ritmos do cotidiano, produzindo o cotidiano compossível de sua presença de dominação cotidianamente legitimada e justificada.


Invenção da dominação


Esta é a divisa: se queres o poder, espalhe-se no cotidiano, seja o próprio cotidiano compossível à sua dominação; o cotidiano dominado, colonizado, coberto por sua rede de sentidos dados e sedados, tal que o rosto do mal seja o mal contra si e o rosto do bem seja o compossível rosto seu, na sua igualmente compossível paisagem ou cenário econômico, cultural, tecnológico, epistemológico, cotidianamente, juridicamente, politicamente, filosoficamente, afetivamente, esteticamente, familiarmente tomado para si, em si.


Esta é, assim, a função da mídia dominante e oligopolizada mundialmente: constituir-se como uma máquina de fabricação/edição/montagem/invenção de acontecimentos compossíveis com a rede de interesses da dominação capitalista de todo o planeta. O principal objetivo dos meios de comunicação, com mais presença no cotidiano, portanto, é este: tornar compossível a rede de poderes cujos nós ou pontos de liga são econômicos, ao mesmo tempo que são étnicos, ao mesmo tempo que são de gênero, ao mesmo tempo que são geográficos, religiosos.


E tudo ao mesmo tempo, agora; tal que tudo é orquestrado compossivelmente para produzir o cotidiano da dominação capitalista: ser rico, ser pobre; ser branco, negro, índio, amarelo, miscigenado; ser cristão, muçulmano, judeu; ser homem, mulher, homossexual; ser americano, europeu, latino, africano, asiático; ser o lugar da democracia, o lugar da ditadura. Tudo, enfim, existe para cotidianizar o absurdo mundo ou lógica da dominação capitalista, como se fora, e é, o roteiro editado e sempre reeditado, manipulado, para estar a serviço da produção televisiva-cinematográfica-radiofônica-internética-musical-publicitária-noticiosa do cotidiano de dominação imperialista em relação a tudo que, sendo branco, não é branco, sendo negro não é negro, sendo mulher não é mulher, sendo homem, não é homem, sendo homossexual não é homossexual, sendo pobre não é pobre, porque, não resta dúvida: as identidades, todas elas, fazem parte da invenção compossível da dominação internacional de classe.


Morte midiática


Esta é, portanto, a divisa da alternativa à dominação capitalista do planeta: não seja você mesmo, seja outro de outro, como fora da dominação do capital. Seja branco, sendo negro, sendo pobre, sendo mulher, sendo palestino, até formar a rede sem fim do fora do capital, momento em que todos seremos incompossíveis, pois nos inventaremos permanentemente, como outro de outro, sem fixar pontos de compossibilidade, que são cristalizações de poderes, isto é, identidades.


É por isso que toda liberdade é incompossível e inverossímil, além de inacreditável, exatamente porque se constitui como potência de e do fora em relação ao passado, presente e futuro compossíveis de toda e qualquer forma de dominação. É igualmente por isso que toda e qualquer forma de poder é absolutamente incompossível, pelo simples fato de subjugar, de impor a sua incompossível dominação, transformando-a em compossível.


É aqui que entra a autodesignada edição história do Jornal Nacional do último dia 02 de maio; seu objetivo foi preciso e claro: transformar um acontecimento incompossível em compossível, a saber, o acontecimento de um assassinado suposto terrorista, cujo corpo não é mostrado ou não é concretamente visto há pelo menos 10 anos, desde a destruição das Torres Gêmeas em 2001.


Como matar alguém que há dez anos só aparece, como vivo, de forma editada, isto é, através de vídeos montados nos quais esse alguém, Osama bin Laden, ameaça o centro tornado midiaticamente compossível da dominação imperialista do mundo, os Estados Unidos da América? Como matar alguém que só existe, portanto, midiaticamente?


Muito simples: matando-o midiaticamente.


Toda vida é intocável


É por isso que a TV Globo montou um Jornal Nacional especial, supostamente histórico, para transformar o assassinato midiático de Osama bin Laden, pelos terroristas de Estado americanos, em compossível acontecimento histórico para a humanidade. A mágica editorial é, portanto, esta: misturar bem os editados dados biográficos sobre Osama bin Laden, omitindo uma informação aqui, outra acolá, fazendo prevalecer uma dada versão compossível aos interesses dos terroristas de Estado americanos, tal que o que era incompossível, torna-se compossível, a saber, a realidade como ficção ou edição midiática vira, num lance, a própria realidade compossível, como se não fosse o que é: uma edição interessada e americanizada de uma realidade de origem, igualmente editada e tornada compossível, a realidade da destruição das Torres Gêmeas por Osama bin Laden, como rosto ou identidade produzida e editada, cuja perseguição e desejo de vingança seria, e foi, o pretexto principal para a guerra atual dos Estados Unidos contra o mundo, seja invadindo Iraque – e matando milhões –, seja invadindo Afeganistão – e matando tantos outros –, seja invadindo Paquistão, Líbia, Somália, sem contar o planejamento do golpe de Estado contra Hugo Chávez, em 2002, contra Evo Morales, contra o Irã, contra, enfim, todos nós que precisamos da integridade ecossistêmica do planeta para aqui vivermos.


Diante disso tudo, esta é a nossa atual situação, como habitantes deste planeta: estamos sendo transformados gradativamente em bucha de canhão da incompossível guerra dos Estados Unidos contra todos nós, contra todo o mundo. A extrema traição da mídia oligopolizada, portanto, é esta: transformar em compossível, em fato histórico, a guerra da oligarquia americana contra tudo que respira, que vive, no planeta, humanos e não humanos.


Se tivermos um futuro não compossível com as trágicas consequências da guerra que os Estados Unidos travam contra o mundo – o fim da vida na Terra – a editada edição histórica do Jornal Nacional do dia 2 de maio certamente entrará para a história do jornalismo brasileiro como o histórico e vergonhoso dia em que uma TV brasileira traiu a todos nós ao se colocar escandalosamente a serviço da incompossível guerra do capital contra a vida, seu presente e seu futuro, através de uma edição especial a serviço dessa inominável guerra


Se, por sua vez, esse dia incompossível chegar, o do registro histórico compossível da TV Globo como traidora, então, se ainda existir a TV Globo, certamente ela estará a serviço da produção editorial de compossíveis acontecimentos históricos implicados, agora sim, com a plena justiça do povos, editando como incompossível, como inominável, como inaceitável, por exemplo, um pivete que limpa o vidro do carro de um Marinho, sem a autorização deste. Aí não existirá mais nem Marinho, nem seu carro e nem, portanto, o incompossível trânsito assassino das grandes cidades.


E nesse dia, a TV Globo será de todos e de ninguém; uma incompossível máquina a favor desta edição extraordinária, embora cotidiana: a de que toda vida é intocável, de modo que o ‘não matarás’ será a única compossível divisa infinitamente editada por todos nós.

******

Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo