“A política acaba por roubar a cena, pois é ali que há ‘a’ notícia”, diz Aly Silva.
António Aly Silva é um jornalista guineense, conhecido por sua luta pela liberdade de imprensa e informação na Guiné-Bissau. Desde 2016, ele é editor e redator do blog Ditadura de Consenso, um espaço de jornalismo independente, com mais de 30 milhões de acessos e dedicado a noticiar questões relacionadas à defesa dos direitos humanos e denúncias de corrupção em seu país. No blog, o jornalista dedica ainda especial atenção a temas pertinentes às nações da África lusitana.
Com registro profissional pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista de Portugal desde 1995, neste país europeu Aly trabalhou no semanário O Independente, na Visão Online e dirigiu o jornal Lusófono. A seguir, uma conversa com ele.
Enio Moraes Júnior – Você é um crítico da política da Guiné-Bissau. Em março passado, segundo publicado na imprensa internacional, você sofreu um grave atentado. Quais foram as motivações para isso e como estão as coisas agora, passados quatro meses?
António Aly Silva – A verdade é que ainda antes, em 12 de março de 2020, escapei de um sequestro noturno que envolveu tiros (um atingiu o vidro traseiro do meu carro) e perseguição em alta velocidade pela cidade de Bissau. Esse de 9 de março deste ano foi infelizmente consumado com consequências que podiam ter sido mais graves para a minha saúde. Até hoje, três meses depois, ainda tenho dores do lado esquerdo da cabeça. Mas desde 1992 sou espancado na Guiné-Bissau. As motivações são sempre o meu trabalho de investigação e as denúncias dos males que assolam a Guiné-Bissau: corrupção, nepotismo e, sobretudo, tráfico internacional de drogas, em que o Brasil tem um papel importante.
EMJ – Além dos atores políticos e suas ações, que temas a imprensa pauta mais frequentemente? Qual o espaço para a economia e a cultura popular na mídia guineense, por exemplo?
AAS – Nos poucos jornais que existem, há espaço para a cultura, para as artes. Mas a política acaba por roubar a cena, pois é ali que há ‘a’ notícia. E como se sabe, o jornalismo vive do ‘sangue’… Há ainda um jornal satírico, bastante contundente, que ilustra o dia a dia, as polêmicas etc.
EMJ – Como avalia a cobertura dos direitos humanos, como pautas relacionadas à fome, à pobreza e às minorias?
AAS – Existem instituições muito fortes na defesa dos direitos humanos (sobretudo das mulheres e das crianças). A juventude tem o seu espaço, que é bastante agitado e barulhento, e os músicos da nova geração criticam e satirizam bastante os políticos nas suas letras… Há muita pobreza no país, bastante mesmo. Mais de 70% da população vive no limiar ou abaixo da linha da pobreza. É degradante a miséria em que vive este povo. E a culpa de tudo é uma só: a educação. A falta dela, bem entendido.
EMJ – O jornalismo local diz respeito à cobertura das particularidades da vida em comunidades. Esse tipo de questão costuma ocupar espaço na imprensa da Guiné-Bissau, seja através de rádios, jornais ou sites? Você incluiria o Ditadura de Consenso como um exemplo desse tipo de jornalismo?
AAS – Há reportagens junto às comunidades, mas poderiam ser mais. É mais fácil serem as rádios a tirar proveito e estar na linha da frente desse combate. As rádios cobrem todo o país – que tem uma rede de estradas bastante danificada, limitando os deslocamentos – e diariamente há programas em que os ouvintes telefonam para falar dos seus problemas ou dos problemas da sua comunidade. Falam dos abusos da autoridade, das cobranças ilícitas feitas pelos agentes de trânsito e outras autoridades, das lotações das canoas (conhecidas como “pirogas”), que põem em perigo as vidas humanas, do estado das estradas. Enfim, falam de tudo e mais alguma coisa. Chega até a ser engraçado ouvir. Para mim, como sou o único blogueiro e por causa da péssima condição das nossas estradas, torna-se difícil o deslocamento. Mas vou recebendo informações de leitores do blog, espalhados por todo o país.
EMJ – De que forma as mídias sociais afetaram a participação dos cidadãos e a imprensa em seu país nos últimos 20 ou 30 anos?
AAS – Foi uma autêntica revolução, que atingiu em cheio o mundo em geral e a imprensa tradicional em particular. Desapareceram vários órgãos de comunicação social, alguns até centenários. O seu aparecimento permitiu com que todos nós vivêssemos como que uma vida “em directo” (ao vivo): há sempre um smartphone por perto e estes foram evoluindo em termos de câmaras e objetivas… Na Guiné-Bissau – que nunca teve mais do que quatro ou cinco jornais operacionais, com ‘extraordinárias’ 12 páginas, alguns saindo ‘quando Deus quer’ – notou-se mais a chegada das redes sociais do que propriamente o desaparecimento de alguns pasquins da praça.
EMJ – Como o jornalismo está cobrindo a pandemia de Covid-19 na Guiné-Bissau? Em questões como medidas de prevenção, há discrepâncias entre o discurso dos políticos e a posição de instituições internacionais de saúde, como a OMS?
AAS – Fala-se, como em todo o lado. Mas os próprios políticos, que deviam dar o exemplo, promovem grandes manifestações sem qualquer proteção, numa grande demonstração de irresponsabilidade e de gozo na cara do povo. A pandemia já matou quase 70 guineenses, mas faz-se poucos testes. Não há um fio condutor no que toca a vacinas: qualquer um (menos as crianças e os jovens) chega e diz que quer ser vacinado e é vacinado. As vacinas chegam com um prazo muito curto para serem utilizadas e há que vacinar, mostrar que se está trabalhando.
EMJ – Qual o perfil do jornalista na Guiné-Bissau? Como ele se forma e quais as perspectivas profissionais da categoria? No seu caso específico, como surgiu o seu interesse pelo jornalismo?
AAS – Sem qualquer dúvida diria que 80%, ou mesmo mais, de todas as publicações que leio (e falo tanto dos jornais como das redes sociais), estão cheias de erros de todos os tipos. O problema, penso eu, estará também nas instituições de ensino. Os alunos não lêem sequer um livro por semestre, mas passam as 24 horas do dia nas redes sociais. Consequência: hoje, a língua francesa é possivelmente a mais falada na Guiné-Bissau, um país de língua portuguesa… Um absurdo! Assim, as perspectivas não podem ser nada animadoras. Em suma, é o jornalismo possível num país com uma democracia “musculada” e em evidente decadência moral. E há o medo. Mas o G. Bona (Gian Piero Bona) deixou escrito na pedra que “o primeiro grau do heroísmo é vencer o medo”.
Esta entrevista faz parte de uma série sobre jornalismo no mundo, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor — Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.
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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: EnioOnLine.