Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A vez e a voz de Calibã

Uma desigualdade enorme fica cada vez mais evidente nas ruas, nas mídias, nas falas e na história. Ainda mais quando seres humanos morrem pisoteados em Paraisópolis, em São Paulo, apenas por serem jovens, periféricos e gostarem de funk. Dentre as desigualdades, existe uma gritante: a racial. Se misturada às de gênero e de classe, então, temos a mais profunda chaga de nossa sociedade: a interseccionalidade entre raça, gênero e classe. Mulheres negras, em sociedades como a nossa, quando se movem, podem transformar a estrutura, já alertara a filósofa estadunidense Angela Davis. Por isso, é preciso pensar a questão de gênero se quisermos evoluir como civilização, mas antes é necessário pensar a questão de raça. E, neste ponto e neste artigo, não vamos falar das “bruxas” (referência ao livro indispensável de Silvia Federici, Calibã e a Bruxa, 2004), mas vamos falar de Calibã!

Quiseram o charme e o destino que, na última obra, na derradeira tragédia escrita por Shakespeare, em 1611, surgisse um personagem cheio das mais entranhadas camadas de nosso tempo e cheio de marcas de um Brasil a ser ainda descoberto. Tal personagem é tão potente e tão cheio de significações que diz muito sobre um povo de passado colonizado, não só por questões econômicas mas também pela ordem dos discursos e pelo apagamento da diversidade, como ideologia de mídia e de Estado. Em A Tempestade, peça do dramaturgo elisabetano, o negro e a diversidade são tratados, mais uma vez, como aberração e maldição (como “bruxas”). Não muito distante do tratamento dado aos negros no Brasil, mesmo cinco séculos depois. Contudo, Calibã, o personagem que agora emerge, parece ter conquistado seu espaço de fala na mídia!

Na obra A Tempestade, engana-se quem pensa que o protagonismo seja do nobre Próspero, mercador italiano, branco, colonizador. A centralidade dos conflitos está na presença do coadjuvante, Calibã. Não há movimento, tensão, conflito ou ato sem Calibã, por isso ele é fulcral na dialética da vida. Quando Calibã abre a boca e dá sua versão sobre as coisas, logo se vê algo maior sendo desmascarado: as camadas brutais da colonização dos corpos, das mentes e das linguagens, das mídias.

Na primeira aparição de Calibã, frente aos mandonismos de Próspero, o colonizado mostra-se arredio e articulado. Até que o mercador italiano cobra submissão do negro. E eis que a voz de Calibã se ergue em consistência, consciência e potência, dizendo que aprendeu a língua do colonizador para insultá-lo, blasfemá-lo e dizer as verdades que merece ouvir. Próspero tenta impedi-lo com mais mandonismos, chamando o colonizado de insolente e ingrato, porém Calibã esbraveja na língua do colonizador as suas verdades, diz em bom tom que o colonizador é um homem mal, pois tomou suas terras, violentou suas mulheres, matou seus anciãos e velhos, escravizou seu povo, executou suas crianças, forçou-o a esquecer própria língua e cultura.

Calibã para Próspero: “O senhor me ensinou sua língua e o que ganhei com isto foi aprender a praguejar. Que a peste vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado a sua língua.” (A Tempestade, William Shakespeare, ato 1.)

Calibã é a representação daquilo que Shakespeare encontrou para dizer que “quem bate esquece quem apanha, mas quem apanha quer se vingar”, ou, melhor dizendo, na história contada pelos “vencedores”, os colonizadores falam na sua língua como fora a sua versão do processo, mas há poucos registros de quem fora escravizado. Não existe “boa escravidão” ou “boa colonização”, portanto. Quase não há algo sobre a América e Colombo, do ponto de vista do “colonizado”. Muito mesmo há sobre o ponto de vista dos índios brasileiros, muito menos ainda no modo de ver dos escravizados africanos. Calibã é a encarnação dessas vozes oprimidas, logo ali no início século XVII. E o que ele diz não poderia ter sido calado, pois sempre fez parte de um grito voraz de diversidade.

Contudo, em um mergulho profícuo e importante dos povos aos seus passados, no Brasil uma nova e pujante onda vem se desenhando nos centros universitários, pesquisas e, principalmente, na mídia brasileira: a voz e a vez do negro (falar), pois não se pode mais calar as desigualdades brutais que a colonização e a escravidão promoveram, são “legados” históricos que nos afetam no presente.

E a mídia brasileira parece ter acordado para essas brutalidades e silenciamentos. Nós, os “Calibãs”, estamos soltando a voz, em inteligência e em linguagem que o antigo colonizador entende. Sabemos a língua de vocês, agora faremo-nos entendidos! Fora disso, tudo será racismo, ignorância e guerra. Agora, nós, os “Calibãs”, temos vez e voz e não é apenas por cotas, mas por mérito e luta. Seja no belo e confessional texto “Letra preta”, da revista piauí, que discute o cotidiano de trabalho e as agruras do jornalismo feito por pessoas pretas no Brasil, muito bem organizado pela potente Yasmin Santos; ou no excelente jornalismo da Alma Preta, dedicado a notícias com temática racial; ou mesmo na nova editoria de Diversidade, no jornal Folha de S.Paulo, surgida em abril de 2019, que trouxe Paula Cesarino Costa como responsável. O intuito da Folha é bem evidente, nas palavras dos editores: “A intenção é trabalhar de modo transversal na redação, atuando na discussão de pautas, na diversidade de enfoques, buscando ampliar as fontes ouvidas” ou, segundo Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha, “a editoria atuará analisando reportagens já publicadas – apontando, por exemplo, se as fontes ouvidas foram apenas heterossexuais e brancas – e olhando para a frente, ao sugerir novas fontes para pautas e artigos.” Ou seja, com o advento das novas editorias, Próspero, o homem eurocentrado, terá que dividir o palco mais vezes com Calibã, o diverso e multiétnico. Além do mais, em tempos de democracias liberais, não deveria existir mais protagonismos para absolutismos ideológicos e apagamentos de diversidade. O palco agora é polifônico, equipolente, colorido e dialógico.

Na mídia, Calibã chegou para falar! Não seremos interrompidos, muito menos aceitaremos ser pisoteados! É nossa hora, voz e vez!

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Fabrício César de Oliveira, irmão de quatro mulheres negras, professor, tradutor, escritor, mestre e doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – é também Calibã.