Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

10xFavela – Agora… por quem mesmo?

Verão aqui é legal
Brasil, bunda, carnaval mas,
Na verdade todo mundo quer ver sangue
Ver sangue é que é legal
Todo mundo pára para ver o caos
O batuque e o massacre
O batuque e o crack
O batuque e a bola
O pobre sempre é a bola…
A bola da vez vejam vocês

Trecho da música “Somos Extremes No Esporte E Na Musica”, de Charlie Brown Jr.

O cinema nacional da retomada usou as favelas como personagens de filmes cada vez mais rápidos, barulhentos e espetaculares. Por seu lado, o jornalismo quase sempre se omite quando é necessário um debate mais profundo sobre a violência e a pobreza que rondam as comunidades cariocas, e raramente se permite publicar notícias que não aquelas extremamente negativas, rasas e estereotipadas.

Como exemplo dessa apropriação da violência nacional pela mídia, tomemos a semana de “guerra” no Rio de Janeiro, no final de novembro de 2010. Favelas foram ocupadas pela polícia depois que bandidos incendiaram vários ônibus e carros nas ruas. A imprensa falou exaustivamente sobre causas e consequências da situação, ouvindo especialistas e na Internet ouve um boom de discussões entre agentes das classes média e alta, armados de suas redes sociais. Durante o conflito, em nenhum momento vimos moradores ou componentes das classes subalternas debatendo o problema. Os “pobres” apareceram apenas como personagens de inúmeras matérias sempre colocados numa posição de vítima.

Este caso pode mostrar facilmente o comportamento da grande mídia: poucos falam, ou seja, comandam. Os grupos subalternos ou as favelas não têm e nunca tiveram espaço para dizerem o que efetivamente querem na mídia massiva. Mesmo aparecendo como “personagens” em filmes, notícias e novelas, todas essas atividades não são produzidas por negros ou favelados. Por isso, nossa pesquisa se inicia a partir da constatação da quase ausência de discursos enunciados pelas classes subalternas sobre si, e a impossibilidade que estes têm de formarem suas próprias identidades.

O fato de grupos subalternos serem representados por pessoas que não fazem parte de seu universo, sendo massivamente publicados em manchetes e filmes sensacionalistas, é agravado quando lembramos que vivemos na sociedade do espetáculo. Nessa sociedade, as imagens chocantes apontam a direção do interesse público e a mídia é capaz de criar personagens atrás de audiência, como atesta Hamburger (2007):

“(…) Marcinho VP, personagem incógnita do filme de João Salles, (…) disse aos jornalistas que cobriam sua prisão: `Eu sou o monstro que vocês criaram.´ A frase revela sensibilidade crítica para o jogo de espelhos que define personalidades mais ou menos estereotipadas e que Guy Debord, cineasta (ou anticineasta) e filósofo francês cujo livro ficou conhecido com os movimentos de maio de 1968 na França, definiu como sociedade do espetáculo” (Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200011).

Em um dos momentos de maior repercussão da semana citada como exemplo, traficantes fugiram da Vila do Cruzeiro, na zona norte do Rio, pelo mato para a favela vizinha, enquanto o helicóptero da Rede Globo transmitia tudo ao vivo, como um reallity show. Passamos a assistir acontecimentos sérios como se fossem atrativos ou shows de entretenimento. Numa palavra: como se fossem personagens. Assim, tentamos entender como a mídia jornalística e o cinema constroem esses personagens e os impõe para uma sociedade educada por discursos e imagens “sensacionais”.

Mesmo existindo algumas linhas de resistência, estas duas formas de discursos massivo-midiáticos se entrelaçam, contribuindo para a construção de uma identidade padronizada sobre as classes subalternas. Isso significa que diante da possibilidade de se auto-representar, indivíduos da classe “debaixo” podem contaminar o resultado dessas experiências com os mesmos estereótipos que a grande mídia sustenta.

Nosso objeto empírico foi composto pelos filmes Cinco Vezes Favela e 5xFavela – Agora por nós mesmos. A partir de uma análise de inspiração culturalista de ambos fomos dirigidos a seguinte problemática: qual tipo de representação contra-hegemônica é possível obter quando um segmento historicamente subalternizado detém o poder de produzir sentido sobre si mesmo?

Nossa hipótese sugeria que existe uma margem de negociação para os grupos subalternos ao lidarem com a grande mídia, em especial a jornalística e a cinematográfica, e a indústria cultural em geral. Acentuamos que aqui não se nega o maior poder de manobra da mídia hegemônica, mas que existe uma contaminação mútua, ainda que desigual, no sentido da interação: subalternos versus hegemonia e hegemonia versus subalternos.

O objeto foi olhado a partir das proposições sugeridas pelos Estudos Culturais. Ou seja, escrevemos atentos para a ideia de uma sociedade profundamente atravessada por visões de mundo hegemônicas: visões “brancas”, eurocêntricas e extremamente elitizadas. Nesse sentido foram enriquecedoras principalmente as contribuições de: Tomaz Tadeu da Silva (2000), Shohat e Stam (2006), Amaral Filho (2010) e Esther Hamburger (2007). Essa apropriação teórica acabou funcionando, ela mesma, como uma metodologia de investigação de objetos culturais da mídia contemporânea. Em nosso caso, os discursos cinematográficos e jornalísticos.

O objetivo último deste artigo é contribuir para as aproximações analíticas entre o jornalismo e o cinema. Acreditamos ainda que trabalhos como esse contribuem para a análise do “agora da cultura”, neste momento de novas negociações sociais, econômicas, culturais e tecnológicas.

Desenvolvimento

De acordo com Escosteguy (2002), nos anos 70, os meios de comunicação de massa passaram a ser claramente percebidos como aparelhos ideológicos do Estado, e alguns grupos antes omitidos na, e pela mídia, passam a receber atenção e certo espaço. A emergência de subculturas que, de certa forma pareciam resistir à estrutura dominante de poder, pode ter sido considerado um fato novo para a época. Os Estudos Culturais se dedicaram a entender como os “sistemas contribuem para a constituição de uma identidade coletiva e como se articulam as dimensões de resistência e subordinação das classes populares” (Idem, 2002, p. 161).

Tanto no passado quanto nos dias de hoje são pessoas com certo envolvimento político e econômico que formulam os conteúdos e direcionamento desses veículos e da grande mídia. Logo, as identidades são definidas por poucos, embora sejam “seguidas” por todos. Assim, para Tadeu da Silva (2000, p. 89):

A identidade e a diferença são estreitamente dependentes da representação. É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença adquirem sentido. É por meio da representação que, por assim dizem a identidade e a diferença passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer: ‘essa é a identidade’, ‘a identidade é isso’. É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade.

Assim como o jornalismo, o cinema também exige aporte econômico para sua produção, limitada quase sempre às classes altas. Mais uma vez discursos, representações e estereótipos são proferidos por uma minoria, mas consumidos por todos.

No Brasil desenvolvemos uma lógica colonialista em relação ao cinema. Fomos educados para consumir e “escolher” produções internacionais. E mesmo quando produções brasileiras eram destaques sustentavam representações estereotipadas sobre as classes subalternas.

Quando um primeiro movimento de abertura temática ocorreu, favelas e sertões foram personagens marcantes, e de certa forma apontaram para uma reflexão social. Foi o movimento do Cinema Novo iniciado na década de 60. Esse movimento tinha como objetivo construir uma estética que se adequasse à situação econômica do Terceiro Mundo. Os cineastas brasileiros não tinham os recursos e orçamentos que eram alcançáveis aos de Primeiro Mundo. Esse fato, que deveria ser um ponto negativo acabou sendo a bandeira do Cinema Novo. Como se a miséria que agora era temática cinematográfica fosse ali “elevada a uma estranha positividade” (DELEUZE apud SHOHAT e STAM, 2006, p.368).

Um dos filmes que ficou reconhecido como um dos pilares do Cinema Novo foi o Cinco Vezes Favela. Em 1962 cinco cineastas universitários de classe média se juntaram e subiram os morros cariocas. Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andradee Leon Hirszman dirigiram um episódio cada um e lançaram o filme através do Centro Popular de Cultura da UNE.

Com o fim do Cinema Novo, a produção audiovisual brasileira sofreu um hiato até o início do cinema da retomada. Esta nova fase também elegeu as favelas cariocas como personagens centrais. A partir da década de 90, houve um boom de filmes que abordaram a violência e o tráfico de drogas. Mesmo assim, os personagens “reais” eram apenas representados por pessoas do “asfalto”. Diretores renomados e superproduções de altíssimo orçamento encontraram nos morros e nos favelados uma “mina de ouro”. Filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), Carandiru (Hector Babenco, 2003), Tropa de Elite (José Padilha, 2007), Última Parada 174 (Bruno Barreto, 2008), foram premiados dentro e fora do país e tiveram grande retorno financeiro.

Telenovelas e seriados também passaram a abordar temáticas vindas de favelas ajudando o jornalismo e o cinema a manterem essa novidade temática, buscando lucro e audiência, e construindo os estereótipos sobre essas classes.

Constatar que uma minoria é responsável pela producao midiática e cinematográfica não significa afirmar que não existem possibilidades contrárias. A hegemonia informacional é contestada por alguns movimentos da comunicação comunitária, por exemplo. A rádio e a TV foram usadas por diferentes comunidades que queriam defender interesses próprios e mostrar sua verdadeira identidade. Assim como a mídia massiva defende seus interesses genéricos e comerciais, um veículo comunitário visa a trazer consequências para aquela região e seus moradores (PAIVA, 2003). Movimentos como o feminismo e o cinema marginal também podem ser exemplos de manifestações contra-hegemônicas bem sucedidas.

Nos últimos dez anos, a contra-hegemonia teve uma nova aliada: a revolução da imagem digital. Paralelo ao sucesso do gênero favela movie a imagem digital sofreu grandes transformações. Uma espécie de revolução que misturou a internet e o audiovisual começou a possibilitar o envolvimento de classes baixas em produções cinematográficas alternativas e de pequeno porte. Diversas organizações culturais e ONGS levaram para comunidades cursos e centros audiovisuais. Alguns destes centros até se destacaram e chamaram a atenção do “asfalto”. Por exemplo, a Central Única de Favelas (CUFA-RJ), organização preocupada com a auto-estima dos moradores de favelas, realiza desde 2007 uma mostra de cinema de periferia, que exibiu sua última edição no CCBB do Rio de Janeiro. Local símbolo da cultura erudita que é normalmente freqüentado pela elite cultural.

No bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, existe uma ONG chamada Cinema Nosso. Essa instituição oferece cursos na área do audiovisual para estudantes da rede pública carioca e incentiva que eles produzam seus próprios filmes. O Ministério da Cultura iniciou um projeto em 2004 que neste ano de 2010 chegou a sua quarta edição. O projeto Revelando os Brasisvisa a orientar e estimular a inclusão e formação audiovisual em municípios com até vinte mil habitantes. Qualquer cidadão das cidades com esta característica pode enviar um filme contando sua história.

Julio Pecly e Paulo Silva, dois cineastas moradores da comunidade Cidade de Deus e militantes ativos da democratização do audiovisual, lançaram juntos com o músico Marcelo Yuka e o ator Leandro Firmino o Manifesto Brasileiro de Cinema Barato.

Iniciativas como todas essas citadas acima podem vir a transformar o cenário midiático em novas oportunidades de auto-representação, que ajudam a construir novos universos temáticos e possibilitam a formulação de uma identidade própria. Além desses movimentos localizados fisicamente em algumas comunidades, hoje em dia é possível gravar qualquer conteúdo até mesmo de um aparelho celular. O que pode nos levar a refletir, junto com Zanetti (2008):

“(…) como certas práticas audiovisuais existentes em favelas e periferias das grandes cidades brasileiras se configuram em estratégias de auto-representação e são tomadas como instrumento de lutas por reconhecimento social” (Disponível em: http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/218/272).

Em 2010, o diretor Cacá Diegues iniciou um projeto audiovisual comunitário, quando inaugurou oficinas de capacitação em todas as áreas profissionais do cinema para jovens de diversas favelas do Rio. Nascia o projeto 5xFavela – Agora por nós mesmos. Comunitário no sentido de que a intenção do diretor foi oferecer para estes jovens uma formação técnica e teórica; e depois deixar nas mãos deles um orçamento e equipamentos no mesmo nível utilizado por produções de filmes nacionais consagrados, para que eles mesmos escrevessem, dirigissem e filmassem suas histórias. O argumento deste projeto se configuraria então no âmbito da comunicação comunitária a partir do momento que se coloca como um contraponto aos filmes e a mídia tradicionais. O objetivo de Cacá Diegues foi permitir que moradores de favelas se mostrassem como são e construíssem as próprias identidades.

Analisando o filme, nos pareceu que o então projeto comunitário, passou a ser só mais um filme de favela. E isso sem que o fato de ter sido “produzido e totalmente feito” pelos próprios subalternos alterasse o resultado (previsível) da obra.

Para esclarecermos nossa reflexão sobre o 5xFavela – Agora por nós mesmos, analisamos os episódios do primeiro filme e os comparamos aos episódios do segundo. O primeiro, construído por cineastas da classe média alta do Sudeste e o segundo por moradores de favelas.

Cinco Vezes Favela, 1962

Os cinco episódios

No primeiro curta do filme, Um Favelado, que foi dirigido por Marcos Farias, um homem que mora na favela está sem dinheiro para pagar o aluguel e só tem um dia para o pagamento até ser despejado. Ele tenta arrumar emprego em uma construção, mas o chefe do local pede para ele voltar na próxima semana. Vivendo essa situação de emergência, o homem aceita participar de um assalto a um ônibus. O assalto fracassa, e ele acaba preso.

O segundo curta do Cinco Vezes Favela,que é chamado Zé da Cachorra e foi dirigido por Miguel Farias, conta a história de uma família que chega a uma favela para pedir abrigo em um barraco. Porém, a favela tem um “dono” que é chamado de Grileiro, e sem a autorização dele o barraco não pode ser habitado. Mesmo assim, o personagem Zé da Cachorra, que é um morador bem popular e atua como uma espécie de mediador entre todos os moradores, autoriza a ocupação. Grileiro pede ajuda a um político para esvaziar o barraco pacificamente, pois ele tem interesse na valorização do terreno. Alguns moradores, incluindo o chefe da família que ocupou o barraco, vão à casa de Grileiro para negociar a situação. O dono do barraco ordena que a família desocupe o local em duas semanas. Zé da Cachorra não aceita a decisão e decide então ficar no barraco para proteger a família. Ele termina o filme desafiando: “Quero ver alguém me tirar daqui.”

O terceiro episódio se chama Couro de Gato. No início do curta, um menino sai de casa para vender amendoim. Esse episódio mostra a movimentação de uma escola de samba em relação aos preparativos para e a proximidade do carnaval. Uma voz em off diz que quando o carnaval se aproxima os tamborins não tem preço, e que na falta de material para sua confecção, o couro dos gatos são muito utilizados. Durante o curta, crianças da favela correm atrás de gatos para vendê-los. A distância cultural e física da favela para a classe alta (AMARAL FILHO, 2008) fica clara quando um dos meninos que está na caçada pelos bichos pára na porta da casa de uma “madame” que esta sentada no jardim. Ela possui um gato branco com pedigree e com pêlos bem cuidados A moça percebe a presença do menino em seu portão e o convida para entrar. O menino pega o gato e foge, mas acaba se apegando ao animal. Mesmo assim, a necessidade de conseguir dinheiro fala mais alto, e ele acaba vendendo o gato.

O quarto episódio do filme se chama Escola de Samba, Alegria de Viver e foi dirigido por Carlos Diegues (mentor do projeto 5xFavela, Agora por nós mesmos). O curta mergulha no universo das escolas de samba e seus preparativos para o carnaval. Mostra uma reunião de moradores da favela que debatem sobre as fantasias, sobre disciplina e uma eleição para a diretoria da escola. Um homem mais velho é tirado do comando da escola por um mais jovem, eleito pela maioria. A partir daí começam os ensaios, e o novo diretor precisa arrecadar dinheiro entre os moradores do morro.

O último episódio de Cinco Vezes Favela se chama Pedreira de São Diogo e foi dirigido por Leon Hirszman. Esse curta contém pouquissimos diálogos e mostra um dia de trabalho numa pedreira. Em cima da pedreira está localizada uma favela. Quando o chefe da obra ordena aos empregados aumentar a carga explosiva, eles percebem que a favela certamente correrá perigo, e decidem então avisar aos moradores. Os moradores e os empregados da favela fazem uma “manifestação” contra a explosão e o filme termina trasmitindo a ideia de que os operários venceram.

5xFavela – Agora por nós mesmos

Os cinco episódios

No episódio Fonte de Renda, dirigido por Manaira Carneiro e Wavá Novais, o personagem de Maicon, interpretado por Silvio Guindane, mora na favela, é negro e entra para uma faculdade pública de direito. Rapidamente ele se vê sem saída para assumir os gastos com o transporte e cópia de textos. Um amigo de classe alta do personagem principal, ao descobrir que ele é morador de uma “comunidade” pede para ele comprar e trazer drogas para a faculdade, associando imediatamente o fato de morar em favela com o acesso livre às drogas. A facilidade com que Maicon se rende à venda das drogas é curiosa. Como se a única e mais prática forma de ganhar dinheiro numa favela fosse o envolvimento com o tráfico. O filme reforça esse determinismo. O personagem principal acaba vendendo drogas para os companheiros de curso. Maicon guarda as drogas em casa e seu irmão mais novo as ingere acidentalmente. Na cena dramática que se passa no hospital público, o padrinho de Maicon,interpretado por Hugo Carvana, que já o havia alertado sobre o risco do tráfico, o agride. Mas ao final do episódio o personagem consegue concluir o curso, e a harmonia retorna à família.

No segundo episódio, intitulado Arroz e Feijão, com direção de Rodrigo Felha e Cacau Amaral, conta a história de um menino chamado Wesley, interpretado por Juan Paiva, que quer presentear o pai comprando um frango para o jantar. Pois todos os dias em sua casa o almoço e o jantar se resumem a um prato de arroz e feijão. Durante a história ele e seu amigo Orelha, vivido por Pablo Vinicius, lavam um carro e até ajudam um funcionário de uma hípica a limpar as fezes de um cavalo, tudo para tentar conseguir os cinco reais para comprar o frango vendido por Seu Manoel, interpretado por Ruy Guerra.

Uma cena típica do cinema americano e europeu acontece quando os dois meninos roubam uma galinha que estava em cima do balcão de Manoel, que estava bebendo cachaça: quando Ruy Guerra percebe que a galinha que havia sumido “retorna” para o balcão, ele derrama o líquido atônito, como se quisesse transmitir aos expectadores que acabou de decidir que “nunca mais vai beber”. Esse fato ocorre, pois os meninos se arrependem do furto e decidem “devolvê-la”.

O episódio Concerto para Violino foi dirigido por Luciano Vidigal e pode ser considerado o mais “americanizado” de todos os cinco. O ator global Thiago Martins interpreta Jota, um traficante que comanda um assalto de armas a um batalhão da polícia. Ademir, vivido pelo ator global Samuel de Assis é um policial. E Marcinha, interpretada pela atriz Cintia Rosa, mora na favela e tem uma relação afetiva com Jota. Esses três personagens eram melhores amigos quando crianças, e cenas “atuais” são misturadas com flashbacks dos três juntos. Traficantes inimigos decidem se vingar de Jotaque pede abrigo na casa de Marcinha. Quando os traficantes chegam, Marcinha e Jota estão se beijando e são levados para fora da casa. Tiziu, interpretado por Washington Rimas (que já teve envolvimento com o tráfico de drogas na vida real [“Eu chefiei o tráfico da favela de Acari por anos e usei as características dos caras que andavam comigo. Eu mesmo não era tão sanguinário. Só me pareço ao Tiziu na vaidade – diz o sorridente Feijão, como é conhecido, que já cumpriu pena por seu envolvimento no crime e hoje trabalha no AfroReggae, ajudando a afastar jovens desse caminho”. Rio Show, p. , O Globo, 27 de agosto de 2010]), é o chefe do “bonde” que é formado por bandidos e policiais, entre eles Ademir.

Ele ordena ao resto dos homens que eles torturem o casal. Porém, Ademir, querendo diminuir o sofrimento dos amigos, atira nos dois antes da provável tortura acontecer.

Esse tipo de sacrifício para salvar alguém nos finais dos filmes é muito comum no cinema comercial. Personagens de filmes americanos estão sempre envolvidos em situações-limite, onde tem que optar por uma pessoa ou outra, esconder um fato de outro personagem para evitar seu sofrimento, ou até mesmo trocar de lugar com alguém “querido” numa situação negativa. Filmes como A Lista de Schindler (1993) e Armageddon (1998) retratam muito bem essa questão. Esse episódio se destaca como o mais apelativo do filme.

No penúltimo episódio, Deixa Voar,que teve direção de Cadu Barcellos, a questão dos limites físicos de uma comunidade é colocada como eixo central. Amigos que estudam no mesmo colégio têm que se separar na hora de voltar pra casa, pois só a menina Carol, vivida por Joyce Lohanne, mora do outro lado da ponte. Esse “do outro lado” significa que aonde ela vive o comando é ostentado por uma facção rival aquela que impera no lado de seus amigos.

Quando uma pipa cai na favela “inimiga” Flavio,que é interpretado por Vitor Carvalho, precisa ir buscá-la. Ele consegue pegar a pipa e descobre que os meninos que estão jogando bola e soltando pipa também, são pessoas legais e podem ser amigas. Flavio aproveita para passar na casa de Carol e eles passeiam juntos na “área” dela. No final do passeio, a menina leva Flavio até a saída onde eles se despedem. Nesse momento, Carol diz a seguinte frase a Flavio: “Viu como aqui é tranquilo?” Este curta deixa bem representado como é viver e conviver dentro de limites físicos e simbólicos que impõe certa autonomia aos moradores.

No último episódiodo filme Acende a Luz, mais uma vez a questão dos estereótipos fica clara. É véspera de natal e uma rua dentro da favela está sem luz. Funcionários da Light entram e saem da favela sem resolver o problema dos moradores, que se veem abandonados em um dos dias mais importantes do ano. Até que Lopes, interpretado pelo ator Márcio Vito, decide ficar na favela até conseguir trazer a luz de volta. Lopes trabalha em meio à preparação da festa e a chegada de vários familiares dos moradores. O personagem acaba se envolvendo com os moradores e já faz parte da comemoração. Finalmente, Lopes consegue concertar a luz e vira o “herói” do natal para todos que moram ali. Durante o episódio as mulheres são muito ligadas a um valor sensual. Até mesmo o funcionário da companhia de luz que é um dos personagens principais acaba se envolvendo com uma das mulheres da casa e o estereótipo da negra “boazuda” é afirmado a todo o momento.

Comparações entre os dois filmes

O primeiro episódio do filme do Cinema Novo pode ser sutilmente comparado com o primeiro episódio do novo filme. Fonte de Renda, onde o personagem principal também precisa conseguir dinheiro e acaba se rendendo à venda de drogas. Os dois curtas, tanto o de 1962, dirigido por um cineasta de classe média, quanto o de 2010, dirigido por um cineasta morador de uma favela, acabam transmitindo a ideia de que é quase impossível para alguém que vive nessas comunidades trabalhar e ganhar dinheiro “normalmente”. Ou seja, para um favelado a única saída se resume à ilegalidade, a criminalidade ou as drogas. O personagem do curta de Marcos Farias também hesita antes de se render à criminalidade, assim como Maicon, personagem central de Fonte de Renda. Quando alunos na faculdade pedem para Maicon trazer drogas ele não aceita no princípio, assim como o personagem principal de Um Favelado, episódio da primeira versão: em uma das cenas do curta ele vai até um homem que organizaria o assalto, o encara por uns instantes e vai embora, transparecendo a dúvida, de se render ou não ao crime.

O episódio Couro de Gato também pode ser conectado com um dos episódios do novo filme. Na nova versão o episódio Arroz com Feijão também tem crianças como personagens centrais. Outro forte estereotipo relacionado às favelas cariocas parece ser o do envolvimento infantil na soma da renda familiar.

O corpo da mulher como instrumento sensual também está presente nos dois filmes. Nos episódios Zé da Cachorra eUm Favelado do filme original, as mulheres praticamente não possuem falas, e quando aparecem estão sempre seduzindo os personagens masculinos. Assim como no último episódio do novo filme Acende a Luz. O filme acaba se enquadrando um contexto feminino ligado apenas ao lado da sensualidade. Closes de decotes ou outros enquadramentos que dão destaque ao corpo feminino podem acentuar essa colocação. No final deste curta, o funcionário da Light beija uma das moças da favela reafirmando o estereótipo da “negra boazuda” (RODRIGUES, 2001) a todo o momento.

A alegria foi uma das mais fortes “propagandas” do novo 5x Favela. Autores e críticos posicionaram a obra como “novidade” num sentido de que filmes da mesma temática lançados anteriormente apenas abordavam o lado negativo das favelas, e que este novo filme se concentrava principalmente em mostrar que a alegria e a leveza também estavam presentes naqueles ambientes. O fato de moradores de favela conseguirem se divertir mesmo imersos na violência foi bastante citado pela mídia. E é curioso como esse fato também pode ser encontrado no primeiro filme. Em uma das cenas de Um Favelado que se passa em um lixão, uma criança encontra um apito e passa a fazer barulho. Uma mulher e outras crianças começam a sorrir e se divertir. Podemos lembrar também que o carnaval e o samba, personagens sonoros quase marginais, estão presentes massivamente neste primeiro filme.

É importante destacar que o samba viveu suas décadas iniciais sendo considerado um gênero da “bandidagem” e foi perdendo essa imagem por ser consumido e reconhecido, com o passar do tempo, por todas as classes sociais. Nos dias de hoje, o gênero que pode facilmente representar o que o samba simbolizava antigamente, é o funk carioca. O gênero funk é associado ao tráfico atualmente como o samba foi associado a bandidos no passado. O samba compõe quase que totalmente a trilha sonora da primeira versão, e o funk, o da segunda.

Conclusão

O gênero favela movie entrou “na moda” desde o início do cinema da retomada até os dias de hoje. Favelas, becos e crianças com arma na mão viraram referência do cinema brasileiro recente e até em série de TV no canal mais visto do país (Cidade dos Homens,Rede Globo, 2002-2005). Esse fato ajudou a enfatizar os estereótipos já enunciados pela mídia jornalística, além de “espetacularizar” ainda mais as imagens referentes às favelas.

A mídia em geral, e os discursos jornalístico e cinematográfico em especial, interferem na formação da identidade de cada cidadão, impondo a obediência dos binarismos como homemmulher, negroranco, asfaltomorro. A vida em sociedade depende dessas escalas identitárias, que acabam hierarquizando o lugar de cada cidadão e o papel que ele exerce (TADEU DA SILVA, 2000). Dessa forma, as classes hegemônicas e as classes subalternas possuem a mesma visão e os mesmos valores sobre si e sobre o mundo. Valores que são a todo tempo afirmados e confirmados pela mídia através de discursos e signos culturalmente construídos. O valor de cada identidade, o lugar que ele ocupa, e a função que cumpre são profundamente impostos por instâncias, hoje, controladas pela mídia.

O projeto 5xFavela – Agora por nós mesmos pode ser considerado um projeto com características de uma ação comunitária. Uma “ação” comunitária diz respeito a produzir um conteúdo, um canal, ou qualquer manifestação que tenha como objetivo gerar consequências para o local e as pessoas que a produziram (PAIVA, 2003). Normalmente, a grande mídia é responsável por representar os locais ao divulgá-los para o resto do mundo. Quando um desses grupos não se vê nesse espaço midiático massivo pode tomar a decisão de se “auto-representar”. A partir de um veículo de comunicação, por exemplo, o grupo é capaz de construir a própria imagem. Quando essa imagem é ‘autoproduzida’ acaba gerando benefícios e defendendo interesses que dizem respeito especificamente àquele local e seus moradores.

A grande mídia costuma não se preocupar com os interesses específicos de locais ou comunidades. É prioritariamente guiada por uma lógica comercial. Por isso, podemos considerar que ela sustenta a hegemonia ideológica que ajuda a definir a opinião pública, e a identidade “padrão” dos cidadãos. A mídia massiva é aquela que briga por audiência e, segundo Werneck Sodré (1999), se comporta como uma empresa. Nessa mesma direção, Bellan Rodrigues (2005) argumenta:

“(…) a mídia é vista como um dos principais veículos de construção hegemônica possuindo um papel de destaque na formação de representações, condutas e valores. Ao aparecer como aparelho privado de hegemonia os meios de comunicação se tornam um espaço de luta política fundamental na disputa pela direção moral e intelectual da sociedade” (disponível em www.faac.unesp.br)

Diferenciando a mídia comunitária da grande mídia podemos concluir nossa pesquisa da seguinte maneira: o projeto do filme 5xFavela – Agora por nós mesmos teve uma “intenção” comunitária ao possibilitar que moradores de favelas cariocas produzissem sua própria imagem. Mesmo que o projeto tenha nascido fora das comunidades, seus objetivos (o projeto foi lançado justamente enfatizando o fato de estar fugindo da mídia convencional: ao dar espaço e condição a um grupo subalterno de construir sua identidade, o projeto se inclinaria às características teóricas que dizem respeito à comunicação comunitária) se enquadram às características da comunicação comunitária.

O que fez a teoria (o projeto do filme e os discursos proferidos sobre ele) se desvirtuar da prática (o filme em si) foi um exemplo da força ostentada pela grande mídia. A mídia massiva transmite todos os dias por todos os seus canais o que são e como devem agir as pessoas “corretas”. Ela constrói o mundo ideal, o mundo ao qual todos devem se curvar. Ao ler os jornais ou assistir telenovelas nos deparamos com um cidadão-padrão. Aonde devemos morar, com quem andar, o que comprar. Todas essas questões são apontadas pela mídia e impostas a nós, desde nosso nascimento. E é por isso que não conseguimos enxergar esse processo acontecendo sem auxílio teórico. São mensagens subjetivas que nos atravessam a cada propaganda ou notícia. Nem sempre estas mensagens são intencionais, mas direta ou indiretamente construímos nossas identidades baseadas no que achamos ser “correto”. E quem diz o que é correto nos dias de hoje é a mídia (BELLAN RODRIGUES, 2005).

Teoricamente o conteúdo do filme deveria ser libertador e bem diferente de outros filmes do gênero favela movie. Mas não foi. Até o filme Tropa de Elite 2 (2010) dirigido por José Padilha pode ser considerado menos “estereotipado” que o 5xFavela – Agora por nós mesmos. O segundo filme da série que retrata o dia a dia de policias do Bope mostrou a relação do governo com a “bandidagem”, acentuando para o Brasil inteiro que há corruptos, e muitos, ocupando cargos políticos. A primeira versão filme de Padilha contou polemicamente que estudantes de classe alta que “fumam maconha” são tão responsáveis pela violência nos morros quanto os traficantes. Curiosamente, um filme comercial de grande porte, que bateu recorde de público em poucos dias teve uma “alma” mais crítica e com mais intenção de denúncia do que o 5xFavela – Agora por nós mesmos, que foi lançado como um filme que mostra a realidade de um jeito novo, de um ângulo inédito, ou até mesmo “nunca mostrada antes”.

Nós já sabemos o que esperar de um negro, de um pobre, ou de um playboy da zona sul do Rio, porque a mídia já construiu e definiu todos esses “personagens”, suas características e comportamentos.

“(…) Espectadores na periferia discutem em que medida, ao romper o silêncio e a invisibilidade a que os pobres foram em larga medida relegados, esses filmes contribuem para fixar a imagem do favelado como marginal. Ao invés de incluí-lo plenamente, reforçariam, uma vez mais, sua identidade de excluído. Questionam a relativa homogeneidade da periferia tratada no cinema. Questionam a autoridade de diretores não oriundos da periferia para tratar do assunto” (HAMBURGER, 2005).

Esse discurso midiático pode ser definido como um olhar: é um olhar padrão, que ela impõe a toda a sociedade, independente da classe. E é por isso que os moradores das favelas se veem da mesma forma que um playboy da zona sul os vê. E é por isso que o filme 5xFavela – Agora por nós mesmos não conseguiu se livrar dos estereótipos relacionados às favelas. Pois estes estereótipos estão “naturalmente” dentro de nós sem que possamos enxergá-los facilmente (AMARAL FILHO, 2010).

Não acreditamos que o filme possa ser considerado comunitário, pois não defendeu interesses específicos de moradores. E provavelmente porque não vai trazer benefícios ou nenhuma consequência positiva sequer para a maioria das pessoas envolvidas diretamente com sua produção (os subalternos), quanto mais para a coletividade (um número maior de subalternos). Na nossa sociedade uma mulher pode ser tão machista quanto um homem, um gay pode ser tão sexista quanto um heterossexual, e um negro, tão racista quanto um “branco”. Podemos sustentar que, em razão da hegemonia cultural-ideológica imposta principalmente pela mídia, não basta “colocar” uma câmera na mão de um grupo subalterno para que ele se auto-represente livre de estereótipos e preconceitos sobre si mesmos.

“Imaginar formas estéticas que desarticulem estereótipos e esvaziem ações violentas permanece um desafio interessante” (HAMBURGER, 2005). Porém, um desafio que não pode ser abandonado. É preciso existir a possibilidade de se fazer um cinema comunitário. Assim como a TV e o rádio conquistaram um pequeno espaço e um grande valor, o cinema pode ser um facilitador de aproximação e interpretação efetivamente de mão dupla; e não apenas as formas tradicionais e hegemonizadoras de representar o subalternizado. Esperamos assistir em breve a evolução do cinema nacional, feita de liberdade, possibilidades e novos universos temáticos.

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Assistente de produção de TV, Rio de Janeiro, RJ