Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fotografando o que não existe

Quando fui fotografar, num centro espírita em São Paulo, voltei pra casa com um legítimo Picasso, comprado por R$ 50 à vista. Sensacional! Aproveitei e encomendei ao médium uma foto psicofeita por Cartier-Bresson. Ele mandou avisar que aguarda o momento decisivo certo…

Picasso dizia que a arte é uma mentira que conta a verdade. Falava da fotografia. Mentira só é mentira se puder passar por verdade. O rosto todo torto e deformado de uma mulher com dois olhos do lado de cá do nariz não é uma mentira. É a verdade de Picasso. Mas a foto que fiz há dois anos e coloco no Facebook como sendo eu é pura mentira. A foto de ontem é mentira hoje. Eu não sou mais daquele jeito que era ontem, hoje. Não penso mais assim, não sou mais aquele (e aquela) cara. E a fotografia é tanto mentira pelo tempo quanto pelo espaço. A foto da praia nos dá a ilusão de que é ela, mas não tem nada da praia – nem cheiro, nem vento, nem molha, nem enche o carro de areia. Susan Sontag definiu bem isso: “Todas as fotos são memento mori, lembranças de algo que já desapareceu.”

Queremos que a vida não acabe, que nossa juventude não acabe, que as coisas boas nunca acabem. A fotografia surgiu disso, dessa fome do que não acaba nunca. Ela nasceu em 1824 nas mãos de Nicephore Nièpce, um inventor francês. Mas há controvérsias. Alguns dizem que foi Daguerre, em 1839. Um outro inventor, Bayard, quando soube que Daguerre havia sido reconhecido como tal, aceito pela Academia Francesa de Ciências, mandou-lhes uma foto de si mesmo afogado (!). Não só inventou a fotografia como também foi o primeiro grande mentiroso explícito do ramo. Enquanto isso, Fox Talbot inventava a fotografia na Inglaterra. Mais que isso, inventava a fotografia arte, já que era, de longe, o melhor fotógrafo dos três. Até aqui no Brasil, um francês chamado Hércules Florence, redescoberto pelo nosso brilhante Boris Kossoy, criou um método só dele de transferir o mundo pro papel.

Acabaram-se os analfabetos fotográficos

Antes disso, vários pintores utilizaram o artifício da câmera obscura para fazer sua arte. A câmera obscura foi descoberta pelo chinês Mo-Ti, 400 anos antes de Cristo. Na própria caverna de Platão, as pessoas presas viam imagens nas paredes, possivelmente sob o efeito da câmera obscura. É fácil fazer uma câmera obscura em casa: escolha um quarto com uma boa vista, feche as janelas com uma cortina preta, imune à luz, e fita adesiva. Abra um pequeno furo de um ou dois centímetros no meio do tecido e na parede oposta à janela deve aparecer, de cabeça pra baixo, a vista da janela. O fotógrafo cubano-americano Abelardo Morell utiliza a câmera obscura para fazer trabalhos lindos que estão na coleção de mais de cem museus do mundo. São imagens de imagens de imagens…

O pintor mais célebre a usar a câmera obscura foi o espanhol Diego Velásquez. Para pintar um dos quadros mais importantes da história, o “Las Meninas”, Velásquez usou uma câmera obscura. E não foi o único, Caravaggio também usava o artifício. A fotografia perseguia a pintura como uma assombração. A sanha era tanta pra nascer que ela foi inventada por cinco pessoas diferentes. E quando nasceu assustou de tal forma a pintura que essa virou o impressionismo. E, do impressionismo, a pintura foi distanciando-se cada vez mais da fotografia, com Braque e Picasso e o cubismo. Por anos a jovem arte fotográfica crescia nas mãos de grandes artistas como Talbot, Fenton, Muybridge, Nadar, Prokudin-Gorsii, Lartigue, Atget, Brassai, Stieglitz e Steichen. Nos anos 60 o fotógrafo americano William Eggleston revolucionou a fotografia tornando-a colorida e ainda mais presente nos museus. Claro, a foto colorida foi inventada muito antes, mas acabou potencializada nas mãos de Eggleston, que influenciou toda uma geração brilhante trabalhando com câmeras de grande formato: Stephen Shore, Joel Meyerowitz, Richard Misrach, Joel Sternfeld.

“No futuro o analfabeto não vai mais ser quem não sabe ler”, disse profeticamente o pensador Walter Benjamin no começo do século 20. “O analfabeto será quem não souber ver fotografias.” Isso hoje acabou. Acabaram-se os analfabetos fotográficos. Só que fotografia mesmo é um alfabeto. “Quem conhece e desenha bem as letras é um ótimo calígrafo”, dizia o fotógrafo húngaro André Kertész, cuja exposição abre no MIS em maio. “O bom escritor tem que ter algo a dizer.”

Sorriso largo

E algo a dizer nestes novos tempos de completa literacia fotográfica é o que não falta. Redes sociais como o Facebook e Instagram aumentam a cada segundo nossa capacidade de compartilhar e mostrar domínio sobre o alfabeto fotográfico. A foto publicada é, queiramos ou não, editada e assimilada por quem vê e assim produz novas imagens melhores e mais sofisticadas. É um processo que ninguém sabe onde vai parar. Mas, se o que está acontecendo agora é alguma pista, a fotografia vai crescer de tal forma que os tempos atuais serão apenas a pré-história da nossa arte. Já vemos isso acontecendo aos poucos aqui no Brasil, nas mãos geniais de Miguel Rio Branco, Claudia Jaguaribe, Cassio Vasconcelos, Cristiano Mascaro, Sebastião Salgado, Pedro Martinelli, João Castilho, Pedro Motta, Eustáquio Neves, Gustavo Lacerda, Caio Reisewitz, Gal Oppido, Bob Wolfenson, Julio Bittencourt, Christian Cravo, Iatã Cannabrava, Juan Esteves, Juliana Stein, Rogerio Reis, Tiago Santana, Eduardo Muylaert, Betina Samaia, Marcos Bonisson, Bruno Veiga, Rosangela Rennó, Rochele Costi, Tuca Vieira, Gui Mohallen, Cia de Foto, Lost Art e muitos, muitos outros.

Imagino o médium do centro espírita recebendo o espírito de Nièpce, vendo o que está acontecendo, abrir um largo sorriso. Quem diria que aquela sua simples foto, do fundo do quintal, iria dar nisso…

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[Claudio Edinger é fotógrafo, ganhador, por duas vezes, da Leica Medal of Excellence (pelos livros Chelsea Hotel, Venice Beach), e do Life Magazine Award (por Loucura)]