Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tratem com carinho o meu dinheiro

Depois que a imprensa divulgou a quantidade de recursos que as Assembleias Legislativas estão disponibilizando aos deputados pelo Brasil afora, resolvi fazer um apelo em defesa do meu dinheiro. É um apelo de alguém preocupado com a distância (cada vez maior) dos salários dos que recebem em relação aos salários dos que pagam. Esse assunto precisa passar a ser tema de campanha eleitoral. Não questiono se deputados merecem ter uma verba indenizatória de cem mil reais mensais, mais dois mil e quinhentos relativos a diárias quando viajam, mas pergunto: por que isso é decidido como se fosse algo irrelevante? Aplaudo uma Assembleia que resolveu diminuir os dezoito salários anuais de seus deputados para quinze. Que exemplo de patriotismo e desapego a valores materiais…

A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB trouxe à tona um assunto que estava “deitado em berço esplêndido”. A entidade informou sua intenção de questionar junto ao STF a inconstitucionalidade de leis que concedem pensões vitalícias a alguns ex-governadores, não sei em que pé está. Um dos beneficiados acumula pensão com salário de estatal, outro diz que merece porque “cumpriu seu mandato com a melhor dedicação possível”. Um dos beneficiados foi além, pede um milhão e seiscentos mil reais retroativamente. Diz que vai “doar” a importância a instituições de caridade. Li num jornal que a filha de outro – que exerceu mandato no século 19 – recebe pensão, apesar de ser proprietária de um cartório. Fico por aqui…

O feudalismo não pode ser ressuscitado

Espero que eles tenham sensibilidade suficiente para compreender que isso é preocupante, que entendam a inquietação dos contribuintes. No mundo civilizado, a ideia da cobrança de impostos é compreensível, mas quem sofre essa imposição precisa ter certeza de que está ajudando a construir um país melhor. Ela não pode ser reduzida a pagamento de salários autorreajustados em sessões que duram alguns minutos. Também não quero ver meu dinheiro ser usado para sustentar pensões vitalícias de quem exerceu uma função pública por alguns anos, alguns meses e, dizem, até alguns dias. Existem casos que os benefícios são maiores do que as remunerações dos atuais titulares. Não é difícil perceber que não ser reeleito passou a ser um bom negócio…

Se tudo continuar do jeito que está, espero que eles tratem com carinho algo que pode não trazer felicidade, mas, com certeza, ajuda muito… Estou sentindo desconforto em pedir em causa própria, mas tomo essa atitude porque sempre tratei com carinho as coisas que me ajudam a viver, não posso esquecer de quem ocupa um espaço grande entre os meus “afetos” – o meu imprescindível dinheiro. Embora pouco, ele sempre esteve ao meu alcance, agora sinto que estamos ficando distantes, virando estranhos. Mesmo achando nobre a finalidade, não consigo deixar de imaginar a cena: ele indo embora sem eu fazer nada para protegê-lo. Quase disse: vai “meu filho”, toma cuidado, fica longe dos aproveitadores; eles vão tentar te usar sem nenhum escrúpulo. Pede socorro e avisa as autoridades se tentarem, também, te despachar para terras distantes, com mar, sol, cerveja da melhor qualidade, e uísque doze anos…

Deixo claro que não estou defendendo a extinção da representação parlamentar, que não defendo a mendicância como meio de vida para ninguém, em especial a classe política. Estou consciente de que essa representação faz parte de uma democracia que o povo brasileiro conquistou com luta e sofrimento. Este apelo visa apenas pedir que o dinheiro público seja utilizado de maneira que beneficie a todos os brasileiros. Está na hora de revermos alguns costumes, certas despesas precisam ser repensadas – o feudalismo não pode ser ressuscitado…

Injustiças e privilégios

Concluindo, reafirmo minha crença de que o que está em jogo não é a democracia, e, sim, a responsabilidade necessária na utilização da representação política. Ela não pode servir de pretexto para enriquecimento de quem ocupa função pública. Nossos representantes nos devem explicações, questões importantes não podem ser decididas de costas para quem os elegeu. Alguns brasileiros precisam entender, de uma vez por todas, que, em pleno século 21, não há lugar para gente que pensa que pode usar dinheiro público como se ele existisse apenas para servi-la…

Lembro que tudo isto que o povo brasileiro está assistindo não é inédito na história dos povos A primavera árabe mostrou para todos que certos costumes cansam, ninguém atura eternamente injustiças e privilégios. A mudança pode ser feita enquanto é tempo.

PS: Nada existe de permanente a não ser a mudança.

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[Valacir Marques Gonçalves é policial federal aposentado e bacharel em Direito]