Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma histórica vocação reprimida

Será que poderíamos selecionar os assuntos de maior interesse de uma sociedade através do espaço que seus meios de comunicação dão a determinados temas? Tal classificação refletiria o interesse social se tivéssemos veículos midiáticos realmente democráticos. Talvez a internet seja o espaço que mais se aproxime deste ideal, pois apesar de ser um espaço de controle, ainda não se tornou um espaço totalitário e dificilmente um dia o será.

O fato é que quando se analisa a presença do tema Ciência & Tecnologia na mídia vemos que este tem ocupado muito pouco espaço na Bahia (principalmente nos meios impressos). Mas, sejamos justos, este não é um fenômeno tipicamente bahiano, é antes de tudo brasileiro. As razões deste fato se dão por origens sociais e históricas complexas. Uma linha de investigação que pode servir como ponto de partida para mapearmos estas origens seria a maneira como temos construído nossa história nacional e regional e qual o papel que a ciência e a tecnologia têm tido nesta construção narrativa.

Enquanto em países como Inglaterra, França, Alemanha, EUA etc., a história da ciência se entrelaça com a história da construção da soberania e da identidade nacional, aqui no Brasil a história da nossa ciência é colocada de forma marginal nos livros de história do Brasil, se é que ela aparece. Lembro que a narrativa mais forte em minha memória da época do ensino médio em relação ao aparecimento da interferência da ciência na história política e social do Brasil, se dá quando estudei a revolta da vacina no Rio de Janeiro. Porém, a imagem que ficou não se resumiu a uma sociedade revoltada contra uma obrigatoriedade do Estado e somos levados a concluir que esta revolta foi pautada na ignorância e no medo contra o novo e contra um cientista excêntrico e ditador.

Agências de amparo à pesquisa

Em outro momento, conhecemos um Santos Dumont que tanto se forma quanto ganha fama fora do Brasil e nos perguntamos se teríamos este grande inventor se ele não tivesse se mudado para Paris ainda jovem.

O ponto central destes exemplos acima é que não importa se tais leituras históricas são equivocadas ou incompletas (e provavelmente o são). O que importa é que a história contada nos livros didáticos (aqueles livros que formam a maioria dos futuros cidadãos brasileiros) parece nos mostrar um país não vocacionado à ciência e à inventividade técnica de ponta.

Já tivemos um ministro que disse, no início da década de 90, que tecnologia não precisa se produzir quando se pode comprar. Pois é, há um movimento no Brasil que crê que devemos aceitar a nossa vocação tupiniquim para fornecer matéria-prima e mão-de-obra barata em troca de consumir aquilo que é produzido por aqueles que têm a devida vocação para inventar e produzir.

Porém, o caminho para uma inevitável mudança de direção tem ocorrido. O Brasil tem despertado para o seu potencial inventivo, criativo e intelectual e este último tem sido usado não somente para inventar, mas também para compreender melhor o mundo. Nos últimos anos vimos várias agências regionais de amparo à pesquisa e à inovação tecnológica surgirem fora da região Sudeste.

D. Pedro II, um mecenas

Agências como a Fapesp, que vem para complementar os investimentos necessários em um país com um grande déficit de produção de novas tecnologias e patentes. E este último tema também nos trouxe novidades quando tivemos um debate nacional a fim de regulamentar a lei das patentes, viabilizando ainda mais o processo de investimento em pesquisa por parte da iniciativa privada. Vimos também as publicações e espaços (neste ponto, a Bahia tem estacionado) de divulgação científica se multiplicarem no Brasil (Revista da Fapesp, Ciência Hoje, Scientific American, entre outras), além do surgimento dos primeiros cursos de pós-graduação para formar jornalistas e cientistas na área. E por fim, a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, que tem ocorrido periodicamente em outubro juntamente com as olimpíadas de Matemática, Física e Química.

Hoje em dia já deveria ser lugar-comum afirmar que as ciências são um produto cultural tão impactante na vida social quanto qualquer arte ou filosofia e a história tem nos mostrado que este está entre os que têm mais influenciado, não importa quão distante estejamos do centro das decisões. Infelizmente, esta conclusão não se estabeleceu ainda como lugar-comum na maioria dos meios de comunicação de massa no Brasil.

E para não pensarmos que ciência e técnica no Brasil são coisas recentes, a história também tem nos mostrado que o Brasil teve influentes estadistas [assim como os EUA tiveram Benjamim Franklin] que também eram cientistas ou eram grandes mecenas. Um destes importantes personagens foi o naturalista português José Bonifácio. Este forneceu uma excelente formação intelectual ao imperador D. Pedro II e pouca gente sabe que este último por sua vez foi um grande incentivador das ciências da Terra no Brasil e no exterior. D. Pedro II foi um mecenas (assim como o Visconde de Mauá também o foi) no Brasil e um dos seus amigos no exterior foi o famoso inventor escocês-americano Alexander Graham Bell, o inventor do telefone. Nosso antigo imperador foi um dos primeiros incentivadores deste invento.

Um país sem vocação científica

Porém, se retrocedermos ainda mais, encontraremos astrônomos e inventores de formação jesuíta que gozavam de reconhecimento internacional, tais como Valentin Stansel (século 17) e Bartolomeu de Gusmão (século 18). Ambos passaram pelo colégio Jesuíta da Bahia. Se você está pensando “Ah, mas a maioria destes personagens nasceu ou teve sua formação inicial na Europa!”, então, eu pergunto: “E os primeiros inventores ou cientistas americanos? Estes tiveram sua formação científica inicial aonde? De onde vinha boa parte dos livros que eles liam?”

Finalmente, o século 20 veio para nos mostrar que um país como o Brasil pode ter vocação para qualquer coisa quando tem o devido incentivo educacional e financeiro guiados por políticas públicas. Hoje somos o país que dominou: o enriquecimento do urânio e controla a energia nuclear, a produção de foguetes e aviões de ponta, a genética em todos os níveis, a nanotecnologia, o laser, a engenharia da computação, e muito mais [nas próximas colunas mostrarei exemplos contemporâneos em nosso Estado]. Além do mais temos inúmeros cientistas teóricos, tanto das ciências naturais quanto das ciências humanas ensinando nos melhores centros de pesquisa do mundo e/ou aqui no Brasil.

Apesar de tudo isso, infelizmente, nossa formação básica ainda parece refletir um país sem grande vocação científica. Espero que este erro seja corrigido com a ajuda do crescimento da pesquisa em história das ciências no Brasil e com a atualização do currículo da educação básica. Não devemos esperar que espetáculos midiáticos e premiações nobelescas venham legitimar a vocação e competência que este país tem para acreditar em qualquer empreendimento intelectual e criativo de ponta.

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[Frederik Santos é físico, tem mestrado em Filosofia Contemporânea e é doutorando em Ensino, História e Filosofia das Ciências]