Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Memória em disputa

Em frente a uma pequena igreja evangélica em uma área modesta do bairro de Casa Verde, na zona norte de São Paulo, há uma casa branca que destoa da vizinhança.

Ela se impõe por sua guarita e seu portão cinza que intimidam qualquer invasor.

A guarita está vazia há anos. Mas, na parte de trás da casa, existe um tesouro. Só não se sabe por quanto tempo ele vai resistir.

No local, os mais de 13 mil rolos de filmes do acervo de Primo Carbonari (1919-2006), um dos documentaristas mais importantes do Brasil, criador do Cinejornal (noticiário exibido nos cinemas do Brasil a partir de 1954), deteriora-se enquanto uma briga judicial se desenrola.

Em abril de 2005, foi assinado um termo de cooperação técnica entre a Cinemateca Brasileira, a empresa Heco Produções e a filha de Primo, Regina Carbonari.

O objetivo era recuperar a obra do cineasta -Carbonari foi o único detentor das imagens do Pan-Americano de São Paulo (1963) e capturou a inauguração de Itaipu, o enterro de Tancredo Neves e construções de rodovias.

Do lado da Heco e da Cinemateca, a obrigação era catalogar, limpar os rolos, criar um banco de dados on-line e construir salas apropriadas para a preservação.

Os Carbonari, em troca, cederiam 400 horas de telecinagem [digitalização de filmes] do material bruto pinçado pela Heco para um longa.

Suspensão

Regina Carbonari diz que suspendeu os trabalhos um ano e meio após o início porque “não conseguia encontrar filmes que procurava”.

Eugênio Puppo, dono da Heco, conta que a equipe foi expulsa do local pelos herdeiros do acervo e não pôde finalizar o projeto.

Juliana Rojas (Trabalhar Cansa), assistente de direção de Puppo no longa, confirma a versão. “O advogado da família queria que saíssemos imediatamente.”

Em dezembro de 2006, Puppo entrou com uma ação de cumprimento de obrigação de fazer. Também buscava reparação de danos morais e materiais contra Regina.

Seis anos depois, o processo corre na 1ª Vara Cível do Foro Regional de Santana. Um perito da USP realizou uma análise em 2011, mas ainda não emitiu seu parecer.

Enquanto as duas partes brigam, o acervo sofre. A Folhavisitou as duas reservas técnicas, na Casa Verde, e constatou as más condições. Há filmes quebrados e latas com identificações confusas (Ulysses Guimarães virou “político importante”).

Proteção contestada

As pontas -que servem para proteger os rolos- de alguns filmes abertos pela reportagem eram compostas por sobras de títulos como Soldado Universal.

A prática contraria o Manual de Manuseio de Películas Cinematográficas, editado pela Cinemateca Brasileira. Fernanda Coelho, coordenadora de preservação da Cinemateca e uma das responsáveis pela fiscalização do projeto, diz que “pontas reveladas não provocam a deterioração nos filmes”.

Na sala reservada aos 2.000 rolos de filmes em pior estado de conservação, o cheiro de vinagre -decorrente da decomposição química- é nauseante. A refrigeração é feita por um velho ar-condicionado e um desumidificador portátil.

O calor é um perigo para películas em nitrato, uma substância altamente inflamável. “Eles misturaram vários tipos de filmes”, aponta Regina.

“É mentira”, diz Puppo. “Desde o início, a Cinemateca queria levar os filmes em nitrato para o acervo da instituição. Regina não permitiu.”

A Folhateve acesso ao processo. Fernanda Coelho admitiu, em depoimento, que aprovou “o local onde estava o acervo para acomodar o material ali existente, embora não fosse o ideal”.

“Encontramos os filmes no galpão do estúdio levando chuva e sol, com as latas todas enferrujadas. Eles estão em melhores condições agora”, garante Puppo. “Havia lata de maionese no meio, rolos com grampos e areia.”

Na sede da Heco, empresa que promove programas e mostras de cinema, o diretor mostrou à reportagem um making of do projeto.

Nele, há cenas do antigo acervo empilhado sem organização e da própria Regina mostrando o péssimo estado de conservação. “Regina falou que destruímos o acervo, mas nenhum processo técnico faz um filme apodrecer em meses mais do que em 50 anos”, compara Coelho.

Outra acusação de Regina envolve os estagiários contratados pela Cinemateca para transportar, limpar e guardar os rolos de filmes. “Eles carregavam os filmes em sacos de farinha e alguns deles ainda estavam sujos”, diz Eduardo Nogueira, neto de Primo Carbonari.

Puppo confirma que havia um saco sujo de farinha. “Mas o retiramos imediatamente”, esclarece o produtor.

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Acervo tem registros de Pelé e Pan de São Paulo

Nascido em 1º de janeiro de 1920, Primo Carbonari já andava por produtoras de cinema de São Paulo aos 14 anos e trabalhava como fotógrafo lambe-lambe.

Descendente de italianos, ele capturou momentos históricos do Brasil. Dizia ser o primeiro cinegrafista a ter escalado as Agulhas Negras, no Rio, e a ter circundado a ilha do Bananal, ínsula fluvial no Tocantins.

Nos anos 1950, fundou a própria produtora e passou a realizar documentários e os famosos cinejornais, noticiários de dez minutos exibidos nos cinemas antes dos filmes hollywoodianos.

Carbonari foi o único detentor dos direitos de filmagens do Pan-Americano de São Paulo, em 1963. Cobriu inaugurações de rodovias, a construção das primeiras habitações de Maringá (PR), enterros de presidentes e filmou o primeiro gol de Pelé.

Fanático por cinema, sempre procurava inovações técnicas para seus projetos. Seu último Cinejornal foi em 1990, com imagens da posse do presidente Fernando Collor de Mello.

Carbonari morreu em sua casa, na Barra Funda, São Paulo, em 21 de março de 2006. Deixou um legado de mais de 20 mil filmes e longas-metragens como Aí Vêm os Cadetes (1959). (RS)

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[Rodrigo Salem, da Folha de S.Paulo]