Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um julgamento excepcional

Há dois casos chamados de “mensalão” submetidos à jurisdição do STF. Um a envolver políticos do PSDB e outro a colher políticos do PT e de partidos da base de sustentação do primeiro governo Lula (AP 470). A diferença de tratamento entre ambos, que antes decorria da orientação editorial dos grandes conglomerados de comunicações, sempre em desfavor dos petistas, parece agora ter contaminado também parte do Tribunal. É impossível prever o desfecho do julgamento em curso, apesar do viés de alta de condenação em grande medida impulsionado pelo noticiário francamente desfavorável aos réus, o que não necessariamente traduz a prova dos autos. Mas como juízes leem jornais e transitam em ambientes influenciados por eles, é irreal desconsiderar os efeitos dessa pressão.

Se é imprevisível o resultado final, ao menos o que se pode afirmar até aqui é que vigorou a máxima “dois pesos e duas medidas”, a começar pela pauta de julgamento elaborada pelo Supremo às vésperas de uma eleição importante que definirá a correlação de forças políticas regionais com evidentes reflexos na disputa pelo poder central em 2014. Mesmo os analistas políticos mais descuidados sabem, e tantos outros desejam, que a decisão do Tribunal terá impacto nas eleições deste ano, havendo divergência apenas quanto à magnitude.

É certo que não se espera de um Tribunal que elabore a pauta em função do calendário eleitoral, mas se o alvo é o fim da impunidade, a lógica indicaria lançar mãos à obra primeiro ao processo tucano, cujos crimes correm risco iminente de prescrição já que teriam ocorrido no final dos anos 90. No entanto, o que se viu foi o inverso. Provavelmente premido pela pressão da “sociedade civil da mídia organizada”, o Tribunal organizou um inédito tour de force para esgotar o caso antes das eleições, em prejuízo de centenas de feitos mais antigos que aguardam na fila para desfecho.

Tratamento discriminatório

O processo tucano mereceu outra distinção, na medida em que a Corte determinou o seu desmembramento de modo a permitir que os acusados sem prerrogativa de foro pudessem ser julgados segundo o princípio do duplo grau de jurisdição, que decorre implicitamente da Constituição e encontra previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica. Já em relação ao processo petista, o Tribunal entendeu que a conexão entre as condutas exigia que os quarenta réus fossem julgados em conjunto e indeferiu o seu desmembramento. São juridicamente sustentáveis os argumentos a favor da manutenção de todos os réus em um mesmo processo, como o são as ponderações em sentido contrário, e os ministros bem explicitaram seus pontos de vista.

Só não ficou claro o porquê do tratamento diferenciado. Certamente não terá sido pela alusão fácil ao famoso conto do livro Mil e Uma Noites. Mesmo a tese prevalecente de que todos os réus da AP 470 sejam julgados pelo Supremo acabou fragilizada por conta do casuísmo. Se questões técnicas peculiares demandam o julgamento conjunto de todos os acusados, por que o Tribunal, diante de nulidade procedimental, decidiu pelo desmembramento pontual do caso em relação ao réu Carlos Alberto Quaglia? Por que não suspendeu o julgamento e anulou a prova contaminada pela nulidade, mantendo todos os réus sob a mesma jurisdição, o que antes parecia imprescindível? Terá sido a premência do tempo do processo a se sobrepor a um parâmetro de julgamento definido pela corte?

A Constituição do Brasil é peremptória ao declarar que todos são iguais perante a lei. Evidentemente, esse parâmetro isonômico não se restringe à lei em sentido formal e material, mas a todas as regras de comportamento que obrigam o povo, inclusive aquelas individualizadas nas decisões judiciais. Disso decorre que o Estado não pode adotar tratamento discriminatório, de modo a beneficiar uns em detrimentos de outros que estejam na mesma posição jurídica.

Os meios justificam os fins

O Judiciário, enquanto órgão estatal submetido à Constituição, cuja função é distribuir justiça, está vinculado a esse preceito. Dito de outra forma, todos são iguais perante a jurisdição e todos deveriam sê-lo perante o Supremo, daí porque ainda sem resposta a diferença de enfoque adotada em ambos os casos, já que não se poderá conceber que o Tribunal tenha cedido à tentação mundana da disputa partidária.

Não somente o tratamento distinto para situações equivalentes tem sido a marca desse processo, mas também a celeridade que amiúde se confunde com açodamento. Quem assistiu a uma dessas sessões de sustentações orais certamente teve a impressão de que o cronômetro disputava mais a atenção que os argumentos expostos da tribuna. Tanto assim que o revisor foi obrigado a ponderar ao presidente da Corte, que lhe cobrava brevidade ao votar uma questão preliminar, acerca da gravidade do caso e suas implicações indeléveis à vida, à liberdade e à honra dos réus. Este talvez tenha sido um dos momentos mais constrangedores da história recente do Supremo Tribunal Federal.

O alerta não produziu o serenar das consciências jurídicas. Diante de atônitos e experientes advogados que não têm mais a quem recorrer, o relator propôs que seu voto fosse servido em fatias e assim obteve a concordância da maioria de seus pares. Nenhum problema, salvo o fato desse novo procedimento contrariar o próprio regimento interno do STF, o que não é pouco, uma vez que a Constituição do Brasil elenca entre os direitos e garantias fundamentais que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, isto é, sem um procedimento estabelecido no ordenamento jurídico, e não criado ad hoc ao sabor das conveniências das partes ou dos julgadores. Na democracia, a ação do Estado legitima-se pelo procedimento. Os meios justificam os fins e não o inverso, como gosta de registrar sempre que pode o ministro Marco Aurélio.

Decisão final

Nos últimos anos, o Supremo tem assumido uma posição de proeminência no debate nacional e, inegavelmente, tem contribuído para aprimorar os marcos civilizatórios que fundamentam um Estado Democrático de Direito. São exemplos dessa postura ativa o julgamento favorável ao sistema de cotas raciais nas universidades públicas, o posicionamento em relação à união homoafetiva, a autorização para interrupção da gravidez de feto portador de anencefalia etc.

Todo esse percurso de construção de uma jurisdição para a cidadania democrática terá se perdido se o julgamento do chamado mensalão converter-se em mera formalidade para chancelar a “verdade mística” defendida e martelada em uníssono, há anos, pela maioria dos órgãos de comunicação, convertidos aos poucos em um tipo de MinVer, o Ministério da Verdade orwelliano. Aliás, um de seus slogans vem a calhar: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.”

Será assim se a decisão final não se apoiar muito claramente na linguagem da prova dos autos, sem “saltos triplos carpados hermenêuticos”.

O que se viu até aqui, no entanto, não alenta a consciência e nem a alma.

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[Yuri Carajelescov é mestre em Direito Constitucional, advogado e procurador da Assembleia Legislativa de São Paulo]