Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Julgamento está marcado

O ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes será julgado dia 19/11, no Fórum de Contagem-MG, pelo desaparecimento da mãe de seu filho, Eliza Samúdio, em junho de 2010, conforme edital publicado dia 5/10 pelo Tribunal de Justiça (TJMG). O promotor vai pedir a condenação de Bruno, por crime de mando, e a de seus comparsas Luiz Henrique Romão, o Macarrão, e Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, por intermediação e execução de Eliza, respectivamente. Como a lei diz que coautor autor é, a acusação vai tentar colocar os três no mesmo saco, embora o processo esteja prejudicado pela ausência do corpo e a negativa de autoria dos envolvidos.

O que se espera desse julgamento é que se faça justiça e que a imprensa televisiva, principalmente, tenha um comportamento digno e entenda que não estamos diante de um teatro. Se fosse uma peça de William Shakespeare (1564-1616), por exemplo, os réus teriam tratamento de criminosos natos – aqueles que matam por dinheiro, porque está claro que, se houve crime, como afirma a acusação (e tudo indica que realmente a moça foi assassinada), isso ocorreu por dinheiro, e não por amor e ódio, que motivam os crimes de natureza passional. Bruno, Macarrão e Bola estão, portanto, mais para Macbeth, que matou o rei da Escócia por dinheiro, do que para Otelo, que matou a mulher e se matou por ciúmes, duas das peças mais famosas deste extraordinário dramaturgo inglês, ambas escritas em 1603.

Ainda por analogia, poderemos dizer que está totalmente descartada a encenação de Hamlet (escrita em 1601) porque até o momento ninguém falou em loucura no processo. Para nós, da sociedade civilizada, que observamos os fatos com a psicologia dos normais, se houver condenação os réus deverão ter tratamento de criminosos frios e calculistas, que planejaram o crime nos mínimos detalhes, sem coação moral ou violenta emoção e/ou, muito menos, defesa da honra. Teses essas que marcaram júris famosos, quando o réu foi defendido com sucesso em diversos crimes passionais ocorridos em Minas e no Brasil, a partir de meados do século passado.

Condenados sem corpo

Faço a comparação entre a arte cênica e a vida real apenas como contribuição à ciência porque júri não é espetáculo. Conheço há anos o advogado de Bruno, Rui Caldas Pimenta, que é muito bom em habeas-corpus (já conseguiu mais de 500 na carreira), mas ainda não tive a oportunidade de vê-lo atuando em um júri. O que eu sei, e com certeza vai acontecer, é a espetacularização do fato pela imprensa sensacionalista que dará ao julgamento tratamento de um grande teatro, com direito a transmissão ao vivo, palpiteiros de plantão, arrufos e polêmicas de efeito midiático incurável, para obter audiência. O público já está acostumado com esses programas que apenas não vou listar aqui por uma questão de ética.

Até entendo, como jornalista que já cobriu júris memoráveis, que é papel da imprensa, principalmente a televisiva, atender à curiosidade do espectador, mantendo-o informado sobre o ocorrido, porém não admito a espetacularização de júri popular, no qual a vítima não está presente para fazer a sua defesa, que fica a cargo do Estado, na figura do promotor, e os réus têm o legitimo direito a um julgamento justo. O Conselho de Sentença é soberano, portanto, e qualquer que for o resultado ele terá que ser respeitado, ainda que não seja definitivo, pois isso somente ocorre quando de sua transição em julgado.

Até onde sei, o único julgamento famoso em que os réus foram condenados sem que houvesse corpo – e o júri foi desrespeitado – é o dos irmãos Naves, Joaquim e Sebastião, em 1937, na cidade mineira de Araguari. Os réus foram acusados pelo tenente Chico Alves de terem matado o sócio Benedito para roubar-lhe 90 contos de réis obtidos com a venda de um carregamento de arroz. Torturados, os dois irmãos confessaram o crime, mas o Conselho de Sentença, sabidamente, absolveu-os em dois julgamentos de 6 a 1. Ocorre que o Tribunal de Justiça – sob forte influência da ditadura de Getúlio Vargas, que tirou a autonomia do júri e da imprensa, que deu aos acusados tratamento de bandidos – anulou a absolvição e condenou os réus a 25 anos de prisão. O resto todo mundo sabe: o “morto” apareceu vivo 15 anos depois e desmoralizou a justiça, que sofre até hoje por conta desse erro brutal.

Respeito às leis e à ética

Isso dificilmente voltará a acontecer com essa magnitude, primeiro porque o Conselho de Sentença é soberano; e segundo porque vivemos em uma democracia, onde prevalece o direito amplo de defesa. Mas a imprensa pode influenciar os jurados, para o bem e para o mal, disso não há a menor dúvida. No século passado, por exemplo, quem não se lembra da quantidade de réus que foram absolvidos em crimes passionais por conta da hipocrisia da sociedade conservadora que dava ao homem direitos negados às mulheres, inclusive o de traí-las? A imprensa teve um papel fundamental na formação moral destes conceitos retrógrados, ao transformar as vítimas em culpadas pela própria morte, pelo simples fato, por exemplo, de usarem o corpo conforme o seu desejo.

Foi a época farta da famosa tese da legítima defesa da honra, coação moral etc., defendidas por nomes consagrados da advocacia brasileira, como Evandro Lins e Silva, que depois virou ministro do STJ e das Relações Exteriores, Pedro Aleixo, que entrou para a política e chegou à vice-presidência da República em 1966; Jair Leonardo Lopes (pai do extraordinário criminalista Marcelo Leonardo), Décio Fulgência, João Pimenta da Veiga, Ariosvaldo Campos Pires, outro que brilhou nos tribunais de Minas e autor de uma frase que não esqueço jamais: nas tragédias, dizia ele, todos os quadros são iguais.

Como já fui réu prejudicado pela imprensa (durante o meu julgamento, em 2004, pela morte de minha mulher, assassinada num assalto que a polícia transformou em crime passional para tentar me colocar na cadeia; o Ministério Público rodou para os jurados e o público presente um vídeo de sete minutos do Fantástico em que a polícia me acusava do crime, de forma teatral e mentirosa), coloco a minha barba de jornalista de molho. Afinal, por pouco não fui parar na cadeia. Fui salvo pelo advogado Marcelo Leonardo. Numa sustentação oral histórica, ele provou que a polícia colocou uma arma no local do crime para me incriminar e contou com a ajuda da imprensa bandida, que comprou a sua versão lacrada sem qualquer questionamento, num dos julgamentos mais brilhantes da história de Minas que retrato no livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus (Biográfica, 2009).

Por ironia do destino, o delegado do Caso Bruno foi o mesmo do meu, mas essa é outra história que não vem ao caso. Desejo a todos, réus, advogados, promotor, à juíza Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, que vai presidir o julgamento, um resultado extraído dos autos. Da imprensa, a única coisa que exijo é respeito às leis e à ética, para a reconstituição justa e necessária do acontecimento, sem o viés do sensacionalismo barato.

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[José Cleves é jornalista]