Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A “postura lobo” do jornalista

Em tempo de eleição, o jornalista fica profissionalmente em xeque. E não há escapatória para ele, que tem de se equilibrar entre os abismos públicos da imparcialidade e do engajamento. Se ele for comentarista/colunista, o equilíbrio entre esses dois abismos pode ser ainda mais precário. Como se sabe (ou se supõe) comentarista/colunista que se preza (ou é prezado por seu veículo) tem liberdade, ainda que frugal, de escrever e não escrever o que achar que é correto. Sem se eximir, é claro, da fidelidade corporativa. O bicho começa a pegar no exercício deste livre arbítrio condicional exatamente nesse processo de divinização “econômico-empresarial”. Vem de longa data, aliás, essa “santidade patronal”, como constatava jocosamente o célebre diretor dos Diários Associados, Manoel Gomes Maranhão – o doutor Maranhão. Sacralização que Roberto Marinho – o doutor Roberto das Organizações Globo – transferia para o anunciante perante toda a redação: “Sagrado em jornal, meu filho, só o anunciante.”

O doutor Maranhão dizia do alto de seu quase metro e noventa de altura e ainda mais alta experiência como servidor do fundador e dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand – o doutor Assis – que “mesmo em tempo de ditadura e de maldição das urnas, o jornalista que é jornalista mesmo fica sempre numa posição de alcateia quando há eleição”. Não importa se ele é “contra ou a favor ou muito antes pelo contrário”, como ironizavam os “patrulheiros antimuristas”. E se a eleição for para prefeito e vereador – acrescentava o doutor Maranhão –, “mais de olho o jornalista deve ficar”. Essa posição, o doutor Maranhão chamava de “postura lobo”. E o sarcástico repórter-político Berilo Dantas, ao ouvi-lo na redação de O Jornal, acrescentava a meia voz: “Só se for postura lobo guará”.

O que Niterói não tem

Lembro essas hilárias definições ao pensar na dificuldade de repórteres e colunistas para vincular campanhas às necessidades básicas das cidades dos candidatos. E, ao mesmo tempo, atender aos interesses de seus jornais-empresas. O alheamento dos candidatos e o noticiário dirigido foram sentidos de São Paulo ao Rio de Janeiro, de Belo Horizonte ao Recife, de Salvador a Niterói. Esta, uma pequena ex-capital reduzida ainda mais por uma ponte de 14 km sobre a baía da Guanabara. E convertida em cidade-bairro, ainda que sempre citada como a cidade de melhor qualidade de vida do estado e uma das melhores do país. Invejável posição soterrada pela catástrofe do Morro do Bumba com 267 mortos sob o temporal de abril de 2010.

Mas Niterói continua o retrato político-social mais fácil e ao gosto da mídia como paradigmático exemplo de que não basta mudar só a paisagem e a estética urbana. É preciso subir à superfície dos problemas, como demonstrou a passada administração do agora quase ex-prefeito. É só visitar Niterói e olhar em volta. Ver a beleza do MAC, imaginar o futurismo brasiliano do Caminho Niemeyer, considerar as ruas aceitavelmente arborizadas, algumas até floridas, os belos edifícios residenciais dos tempos em que a cidade parecia feliz e até sabia disso. Mas o olhar ou “postura lobo” aconselhado pelo doutor Maranhão nos conduz também ao que Niterói não tem. Nunca teve.

Niterói – como quase todas as cidades brasileiras – não tem satisfatórias escolas públicas municipais. Porque precisa de professores bem formados, pagos condignamente. Que não deixem seus alunos sem aula. Precisa – com a mesma urgência! – de hospitais municipais realmente dotados de instalações e corpo médico capazes de atender aos doentes, inclusive necessitados de socorro urgente. Precisa também de infraestrutura urbana com mais esgoto, mais rua pavimentada e calçada que não seja a conhecida armadilha esburacada. E precisa de uma administração desemperrada para responder às necessidades rotuladas de burocráticas.

Dirão os jorgistas de plantão –, adeptos do prefeito pedetista Jorge Roberto Silveira, que passa a cadeira para o meio-aliado petista Rodrigo Neves – que estes são problemas dependentes quase todos de ajuda do estado e da União. Exceção para a máquina burocrática municipal, que é cosa nostra.

A anarquia do excesso

Niterói é apenas um dos 5.565 municípios brasileiros onde o povo celebrou nas urnas a esperança de uma democracia urbana menos desigual. É também uma das 50 cidades que foram ao segundo turno na escolha do que lhes pareceu melhor para confiar sua administração nos próximos quatro anos. Não houve, porém, uma celebração de sonhos para o futuro. O que houve nitidamente foi a afirmação de esperanças para o presente que começa com o resultado das urnas. Talvez por isso, por essa afirmação evidente na construção de um “país de classe média” e de cidades obviamente idem – com a força de Lula e Dilma –, o PT foi o partido que mais conquistou votos nesta eleição. “Para o bem de todos”, no dizer do novo prefeito paulistano Fernando Haddad, o PT vai governar no país 27 milhões de eleitores em números redondos, segundo o TSE. São 7 milhões a mais do que há quatro anos, quando São Paulo optou mais uma vez pela administração do PSDB.

Publicidade do TSE na TV ressaltou também que esta “foi a eleição da ficha limpa”. Nota oficial do PT garantiu, porém, que “o mensalão não afetou o resultado das urnas”, deixando mais ou menos implícito que, apesar da agenda no STF, foram as eleições que acabaram roubando o “brilho midiático do julgamento”. Ilações que nos conduzem aos orçamentos anuais agora à disposição dos prefeitos petistas. E que, segundo ainda o TSE, somam algo em torno de R$ 77,7 bilhões. São números oficiais significativos. Significando primeiro que, se o país como um todo vem sacudindo a pobreza, mesmo as cidades mais prósperas e dispondo de tanto dinheiro parecem se afundar na estagnação. E no estrangulamento. Há quem garanta que o estrangulamento seria em grande parte consequência do próprio crescimento nacional proporcionando mais consumo imediato, notadamente de bens duráveis como o automóvel.

Esse igualitarismo crescente desencadearia então inevitáveis emergências urbanas. Mas o certo é que prefeitos e vereadores de todos os matizes subestimaram até mesmo a mais comezinha das cotidianas necessidades relacionadas com a fluidez do trânsito. Ônibus e carros, motos e bicicletas destinados ao direito de trabalhar e à liberdade de ir e vir são vítimas e algozes, juntos e misturados, da anarquia provocada pelo excesso de veículos em vias inadequadas. E vice-versa. Até a vitalidade da caminhada a pé pelas ruas parece exercício cerceado pelo caos de vergonhosas imoralidades, como o tão badalado e adiado mergulhão da Marquês do Paraná em Niterói, para citar apenas um exemplo menor da nacional desenvoltura com que empreiteiras contratadas paralisam e adiam obras sob contrato.

A fórmula de salvação

Meteram as cidades no garrote vil da insegurança. Postergaram, anos a fio, não apenas a especialização das polícias, mas também a óbvia prevenção da criminalidade que cresce venenosamente onde há reduzidas perspectivas de boa saúde, de habitação civilizada, de mobilidade urbana e de oportunidades escolares e profissionais. São dramas e tragédias cercadas, todos os lado, por exorbitantes taxas e impostos revertidos à população com tal exiguidade e duvidosa transparência que parecem esconder mistérios e segredos inconfessados. Dos escandalosos IPTUs às iníquas taxas de água e tarifas de energia elétrica cobradas por empresas privatizadas que não conseguem vencer a inércia do lucro fácil, tudo parece denunciar pedágios com destino ao enriquecimento fácil.

Assim pintado, o clima parece envolto em desesperadora insensibilidade. Como se as cidades brasileiras estivessem já perdendo a nave do momento, correndo atrasadas do que seria o advento de um sucedâneo da era industrial – a “era das cidades” – prognosticado pela agência Habita da ONU. Uma nova era que começaria a comandar a economia do planeta tal qual a era industrial. E que no Brasil teria entraves assustadores como vemos. Economistas e cientistas políticos não têm dúvidas de que os engarrafamentos, a favelização dos subúrbios, o racionamento de praças e parques verdes, a poluição dos ônibus e carros de passeio em excesso nas áreas metropolitanas e a escassez de transporte de massa, como trens e metrôs, machucam não apenas o cidadão reduzindo ganhos honestos e aumentando doenças graves, derrubando o próprio desenvolvimento econômico nacional, cidade após cidade, massacrando em cascatas a capacidade de o país crescer. Por consequência, adiando indefinidamente a prosperidade ensejada com o crescimento urbano. Crescimento que em 2050, alcançaria 70% da população mundial.

Não obstante, a fórmula de salvação apontada pela ONU parece simples. Prioritariamente, necessário se faz a concentração de vontade política e recursos econômicos bem empregados no socorro às cidades assim libertadas das cadeias e barreiras sequestradoras da produtividade das empresas e da eficiência de trabalhadores.

“Abrir escolas é fechar presídios”

Surgem, porém, as primeiras luzes no fim do tortuoso e estreito túnel urbano. Independente das obras em curso exigidas pelas olimpíadas e copas do mundo – tudo tão minuciosa e criticamente divulgado como um salto para o futuro-presente –, o novo Plano Nacional de Educação (PNDE) acaba de sair conclusivamente da Câmara Federal para o Senado, seguindo após para sanção da presidente Dilma. O PNDE prevê orçamentos em dobro para a educação pública. Vai priorizar estados e municípios no ato de “gastar mais e gastar bem’´ sob salvaguardas legais. Na frente dos melhores exemplos europeus e asiáticos, o Brasil poderá conquistar a liderança dos países que mais investem em escolas e formação de professores e demais profissionais do ensino de todos os níveis. Dos 5,1% do PIB atuais, saltaríamos para 10% até 2022 com financiamento de 50% dos recursos do pré-sal. Royalties incluídos.

O estudo “Cidade: mobilidade, habitação e escala”, divulgado em outubro último pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), acompanha a constatação da ONU de que a “era das cidades” já começou. Mas o Brasil precisa se dar conta das premências urbanas. Lembra a CNI que “no século 19 foi a proximidade das indústrias com fontes energéticas e de matérias-primas que impulsionou as atividades econômicas; agora o bom ambiente urbano como um todo é que determina o crescimento econômico do país”.

Como dizia Victor Hugo ainda na era industrial, “abrir escolas é fechar presídios”, é salvar as cidades para o bem.

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[José Alves Pinheiro Júnior é jornalista]