Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Já não bastam os fatos?

A morte de um ídolo, de uma figura pública, ou mesmo de um anônimo, eriça a indústria da comunicação e a obriga a ir além dos fatos que cercam a causa mortis do indivíduo. É preciso sempre mais para o sistema midiático. Faz-se necessário testar e chocar a audiência a cada instante, a cada frame. E as doses que nutrem a busca pelo grotesco possuem essências bizarras que minam o bom senso. A morte do vocalista Chorão, da banda Charlie Brown Jr, é mais um episódio no qual os limites do que divulgar poderiam ser aplicados ou, ao menos, discutidos. No entanto, mais uma vez, foram deixados de lado.

Em portais de notícias e nas redes sociais, fotos do corpo do cantor estendido no chão e imagens do interior do apartamento do músico foram publicadas, republicadas, tratadas e disseminadas. Alguns acontecimentos que rondam a notícia ganharam uma importância circunstancial e são explorados de forma desproporcional, numa tentativa de naturalizá-los.

Não é a primeira vez em que o estupro à intimidade foi cometido. Na tragédia de Santa Maria não faltaram posts e sequências de fotos dos corpos carbonizados e amontoados na boate Kiss. As imagens que pontuaram a internet chegaram a ser divulgadas em canais de TV. Nas redes, a divulgação acaba sendo inevitável porque não há um sistema simples de comunicação baseado em emissores e receptores. Todos produzem conteúdo. Os filtros do que pode – ou não – ser emitido são suaves e pouco se manifestam. E mais: quando tais filtros surgem, sempre há alternativas que possibilitam a emissão das mensagens. Pedofilia e pornografia são temas proibidos no YouTube, por exemplo. Nem por isso deixam de preencher o universo digital.

Desrespeito ao sofrimento

Já uma emissora trabalha com critérios editoriais e senso crítico. Procura considerar a ética algo prioritário. Pena que, em alguns casos, o que deveria ser regra não passa de utopia. Quer outro episódio? Na cobertura da morte do cinegrafista Gelson Domingos, da TV Bandeirantes, no fim de 2011, algumas emissoras chegaram a destacar os momentos finais de agonia do repórter cinematográfico. Não bastou a imagem dele sendo atingido. Um corte na edição no exato momento em que a bala o perfura já deixaria claro seu sofrimento. Porém, foi preciso (?) mostrar o detalhe do corpo estrebuchando até não resistir mais.

Dispensável? Totalmente. Os fatos passaram a ser menos importantes do que o impacto provocado por eles. Não há argumento jornalístico que justifique a superexposição dos casos de Gelson, Santa Maria e, agora, de Chorão. Vivemos numa era em que a informação se propaga em velocidade instantânea, os caminhos por onde a mensagem corre são incontáveis, desconhecidos e incontroláveis. O conteúdo da mensagem pode ser totalmente alterado, individualizado, customizado. E ainda: onde a exposição ganhou ares superdimensionados. Apareço, logo existo. Neste cenário, é comum o jornalismo respirar ares muito mais romanescos e macabros do que propriamente informativos.

A cultura midiática atravessa as fronteiras do real e, por diversas vezes, fica debruçada sobre o espetáculo, se alimentando e ruminando o instante do choque, da ruptura. Por alguns instantes, tais episódios vão irromper na vida cotidiana e burocrática dos públicos e oferecer uma ligeira sensação de novidade. Alguns classificam como sensacionalismo, outros consideram que qualquer limite cheira a censura e a divulgação é válida. Fato é que todos absorvem a mensagem. E quanto mais inspiram, mais anestesiados ficam, até considerarem a perda de uma vida um fato comum.

As redes sociais são mediadoras de diferentes representações, correntes de pensamento e visões do mundo. É uma ferramenta que garante a todos a liberdade para que postem praticamente tudo o que quiserem. Mas no momento em que detalhes da morte de alguém ganham tamanha repercussão e necessidade de divulgação, fica claro que o respeito ao luto, ao sofrimento alheio, já não existe mais.

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Felipe Barreto é jornalista, Rio de Janeiro, RJ