Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Marco Feliciano e as disputas de identidade na mídia

Na quinta-feira (25/04), as mídias noticiaram com destaque a primeira reunião da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Minorias, na praça Roosevelt, em São Paulo. O debate presidido de forma simbólica por militantes do movimento negro, indígena, LGBT, e do coletivo “Existe Amor em SP”, foi idealizado com o propósito de oferecer um espaço alternativo às discussões envolvendo minorias após as reincidentes desavenças com a nova direção da comissão oficial de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

A necessidade em se buscar meios alternativos de comunicação e articulação política no que tange o direito das minorias demonstra a gravidade da fissura que vem ocorrendo no plano legislativo e na sociedade civil. Se por um lado, um expressivo número de pessoas demonstra profunda insatisfação com a nova gerência, do outro, um segmento populacional de tendências ultraconservadoras encontrou como seus representantes os deputados pastor Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e pastor Hidekazu Takayama.

Embora cada um dos lados defenda sua situação de grupo oprimido (sim, Feliciano acredita ser oprimido), apontando o outro como opressor, o contorno vitimista apenas enfraquece a discussão. Não se trata de encontrar qual dos lados está concentrando poderes e exercendo violência simbólica por meio da veiculação de discursos e manipulação de imagens nos novos e tradicionais veículos de comunicação, pois um ligeiro resgate histórico já seria suficiente para esclarecer esta questão.

Então afinal, o que estaria em disputa nesta rivalidade? Mais do que cargos políticos, ideologias, crenças religiosas, e preferências sexuais, o cerne da questão encontra-se no embate de identidades conflitantes e que estão se enfrentando continuamente dentro dos jogos de saber-poder do cotidiano.

O mito das identidades culturais

Stuart Hall, teórico cultural da contemporaneidade, afirma que as identidades culturais e nacionais a que creditamos a formação de nosso caráter, não passam de construções discursivas fabricadas. Ou seja, existe sempre algo de imaginário ou fantasioso sobre sua unidade. Desta forma, tudo o que é pensado e comentado nas mídias acerca de uma identidade brasileira, negra, homossexual, ou cristã (apenas para citar algumas das quais se encontram no olho do furacão) é socialmente e historicamente elaborado.

Para Hall, as culturas nacionais se apressam em suprimir as diferenças (de classe, gênero, raça etc.) e subordiná-las a um imaginário que unifique toda a população sobre o mesmo signo: a família nacional unificada. Essa estratégia parece muito convincente e muitas vezes não nos damos conta de como ela desliza com velocidade no discurso das pessoas.

Acompanhando os jornais diários e as mídias sociais, são facilmente localizados comentários de leitores que afirmam a todo momento que os brasileiros estão se preocupando com “as coisas erradas”. Assim, qualquer notícia que se direcione a um contingente populacional específico é rechaçada como pouco relevante em detrimento das preocupações “reais” do “povo brasileiro”.

Nesta lógica, fatos como a desocupação do Museu do Índio no Rio de Janeiro, as violências cotidianas cometidas contra as mulheres, os confrontos de professores com a polícia, e as ingerências na Comissão de Direitos Humanos, parecem assuntos alheios ao bem geral da nação. É muito comum encontrar o discurso de que, se todos os brasileiros estivessem unidos lutando contra a corrupção, ao invés de se preocuparem com… (complete com qualquer tema), este seria um país melhor.

Não estou argumentando que a identidade nacional seja uma farsa, mas que ela ignora as particularidades da população para recriar esse sentimento de que temos um povo unificado. Em um país de dimensões continentais, e de expressões multiculturais como o Brasil, é muito simplificador falar em unificação de qualquer coisa. Talvez isso explique as dificuldades em se articular movimentos organizados classistas, raciais, territoriais, LGBTs, que se manifestem em nível nacional.

A polarização dos discursos identitários

A partir destas considerações, arriscaria a dizer que o sentimento de religiosidade cristã seja uma das mais evidentes marcas identitárias que ainda envolve o brasileiro. A despeito das diferentes colonizações, e mesmo das influências africanas e indígenas, é fato que o cristianismo (em suas múltiplas configurações religiosas) encontrou terreno fértil em nosso país, mesmo que introjetado à base da violência. Mas essa parece uma história já esquecida. O fato é que a maioria dos brasileiros se define como cristão, mesmo não praticando, e muitas vezes sem uma identificação muito sincera com a doutrina.

Por esta razão, qualquer discussão que transite fora desta aura de religiosidade, ou o que possa oferecer qualquer possibilidade de dinâmica social externa a ela, é prontamente considerada como uma ameaça. Não me refiro a qualquer dinâmica social, mas particularmente às dinâmicas produtoras de novas formas de vida, que requerem acesso igualitário à direitos, serviços, espaços e instituições, que no passado eram privilégios de uma minoria burguesa, branca, masculina, jovem, heterossexual, e cristã.

Durante muito tempo acreditou-se que o trabalho, o casamento e a família eram estruturas fundantes e necessárias para a constituição das sociedades. Hoje porém, percebemos que eles são elementos possíveis, mas não as únicas formas de se apreender e configurar o mundo. A absorção do discurso das minorias não deve ser tomada como um esfacelamento da estrutura social, mesmo porque ela sempre foi fragmentária. O que está mudando é apenas o reconhecimento deste aspecto.

Existências e experiências

Assim como a alforria dos negros, o direito ao voto feminino e a conquista do divórcio não destruíram a sociedade, as reivindicações dos movimentos que lutam pela ampliação da liberdade sexual, da equiparação das formas legais, e pela criminalização de qualquer discurso de ódio, não vêm para subtrair, mas ao contrário, para ampliar os direitos básicos de todo cidadão, até mesmo para os que não compactuam dessas lutas.

Uma nação só pode amadurecer e avançar se todos os seus membros acompanharem esse desenvolvimento. Não basta que um grupo encabece essas mudanças, toda a sociedade precisa acompanhar. E para isso é necessário oferecer ferramentas e oportunidades que diluam as balizas responsáveis pela formação deste grande hiato entre os diferentes grupos sociais. Não se trata de favorecimento, mas de equidade.

No final das contas, o que está em jogo nesta disputa política travada, sobretudo, através de disputa de símbolos nos meios de comunicação, é a tentativa desesperada do pensamento tradicional de homogeneizar toda identidade. Neste confronto, ceder à diferença significa reconhecer que as expressões de vida são múltiplas e mutantes, mas também parciais e interconectadas. É compreender que não existe uma preocupação única para o povo brasileiro, mas que todas as lutas são urgentes e necessárias. A conjuntura histórica atual materializa esta disputa entre um polo religioso liderado pelos representantes fundamentalistas religiosos, e outro de posicionamento libertário e pluralista, encabeçado pelos movimentos raciais, feministas e LGBTs. No passado embates semelhantes ocorreram incontáveis vezes, porém com outras configurações. No futuro ele certamente reincidirá, e novamente com outros protagonistas. Portanto, observando um posicionamento ético, o lado que deverá sair vencedor não é simplesmente o de Feliciano ou de Jean Wyllys. Independentemente de seus articuladores, o lado que deverá prevalecer é aquele que sustentar um discurso que legitime todas as formas possíveis de existências e experiências, e não aquele que precise aniquilar o diferente para poder existir.

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Thiago Cardassi Sanches é estudante e pesquisador do Mestrado em Comunicação Visual da Universidade Estadual de Londrina (UEL)