Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalista é um pós-graduado do (e pelo) senso comum

O jornalista endossa totalmente o senso comum sem sequer se dar conta disso. Simplesmente porque ele cursou uma faculdade, então ele não teria mais a ingenuidade ou a ignorância do senso comum – mas não é bem assim. Ele se desenvolveu e se formou como um profissional da informação, mas, na sua base de formação, ele continuou a ser um “normal” muitas vezes revoltado ou crítico; mas, no final das contas, tudo isso são firulas e ele se mantém totalmente dentro do senso comum, de forma refinada e especializada. E por isso mesmo o senso comum se tornou invisível para ele mesmo.

Como é que se percebe que o jornalista não conseguiu se libertar do senso comum? É muito simples. Ele duplica a “campanha” da opinião pública anônima que afirma – sem conhecer as causas – que “é proibido ter preconceito”, que “é condenável ser preconceituoso” etc., e por essa razão passa a fazer “campanha” contra o preconceito de forma ingênua ou imprevidente, embora seja visto pelos seus leitores ou telespectadores como politicamente correto.

Um exemplo dessa “campanha” é o preconceito racial, o preconceito contra homossexuais, o preconceito contra a mulher independente e liberada do homem e assim por diante. A toda hora, temos o jornalista ou o entrevistado afirmando, na mídia, que fulano tem preconceito, que sicrano é um preconceituoso e ponto final. A notícia ou a matéria jornalística faz apenas uma denúncia de preconceito e para por aí mesmo, sem qualquer outra investigação sobre o que está em jogo, de verdade, nesta revelação de preconceito.

Ora, esta “campanha” contra o preconceito prega que “eu”, o promotor desta “campanha”, sou um dos que NÃO têm preconceito e então EU fico bem no filme. Você, telespectador, é um preconceituoso e então você tem o “seu filme queimado” nesta campanha contra o preconceito.

Arma jornalística

Também podemos entender que o jornalista divide o mundo entre aqueles que têm preconceito (os outros) e aqueles que NÃO têm preconceito (eu e você, excluindo os demais). O jornalista propõe um pacto tácito nesta “campanha” com alguns leitores, excluindo na mesma medida “outros” leitores que não fazem parte desta “campanha”. De qualquer forma, o jornalista é um eleito dos deuses que está totalmente livre de ter qualquer espécie de preconceito. Ele deve ser um “santo” dentro e fora de casa…

Ora, o problema desta “campanha” contra o preconceito é que ela é maniqueísta e divide sempre o mundo entre os que têm preconceito e os que NÃO tem preconceito. É impossível ser assim. Apenas o senso comum é que endossa e promove essa forma de lidar com o preconceito. É muito mais fácil e pragmático “eliminar” o preconceito por meio de um ato verbal ou de uma pura falação, um falatório vazio. Se é possível num passe de mágica constatar que uns têm preconceito e outros NÃO tem preconceito, então está descoberta a forma de “eliminar” o preconceito. Não é assim.

Ser ou não ser preconceituoso não é questão qualitativa conforme prescreve o senso comum, mas é uma questão quantitativa. É sempre uma questão de grau, de variação. O máximo que conseguimos fazer é lidar com o preconceito máximo ou mínimo. É impossível haver uma pessoa SEM preconceito simplesmente porque o preconceito e demais componentes da vida cotidiana (rotina, hábito, estereótipo, imitação, máscara, ideia formada, sentimento pronto etc.) são impossíveis de ser erradicados em sua totalidade. Assim, o que nos resta de verdadeiro e autêntico é o aprender a lidar com o preconceito em termos de grau. É óbvio que neste caso o que interessa é fazer com que o preconceito não se manifeste de forma aberrante, deformada, distorcida, em uma palavra apenas: antissocial. Ou, pelo menos, se manifeste num grau mínimo e, se for possível, que seja sempre inofensivo psíquica e socialmente. Isto é razoável e faz com que quem acusa o outro de ser preconceituoso nunca pode esquecer que ele próprio é também um preconceituoso. Ninguém está totalmente livre de ser preconceituoso (para sempre) na vida real.

Até hoje nunca encontrei um jornalista capaz de fazer essa reflexão crítica sobre o uso e abuso do preconceito no jornalismo. Eu vou adorar constatar que existem jornalistas que são exceções a esta regra. Torço para que isso venha a acontecer e reverta a minha experiência até agora, que é muito limitada por circular quase nada entre os jornalistas.

Como é que podemos ganhar esta guerra do preconceito se a arma jornalística é um protagonista que promove ainda mais guerra em um efeito paradoxal e se põe sem querer, de forma inadvertida, contra a paz civilizadora?

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Roberto Sagawa é psicólogo e jornalista, livre-docente pela Unesp