Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

França quer taxar venda de smartphones e tablets

A França sempre foi um país muito zeloso de sua cultura e língua. Com boas e inegáveis razões históricas. Em 1994, os franceses, durante o Acordo Geral sobre tarifas aduaneiras e Comércio no Uruguai, “depois de inúmeras discordâncias com os Estados Unidos”, lograram incluir uma cláusula chamada “exceção cultural” no tratado, com a finalidade de proteger a produção cultural local e controlar a expansão da penetração de vocábulos de origem inglesa entre a população francesa (UFBA,III Enecult, 2007).

No início de junho (4/6), o diário Financial Times anunciou que o governo francês pretende cobrar uma taxa sobre a venda de qualquer aparelho da mídia móvel para subsidiar a cultura em França: smartphones de todos os tipos, tablets e qualquer mídia móvel que se conecte à internet podem ter a venda taxada no ano que vem. De acordo com o jornal inglês, a estratégia visa a “proteger a cultura francesa das forças do mercado e da competição internacional”.

Proteção contra a hegemonia da língua inglesa em filmes e músicas era o que pretendia a “exceção cultural”. Durante alguns anos, os franceses conseguiram bater a dominação inglesa nas bilheterias dos filmes e em outros produtos culturais. Até sanduíches de uma tradicional marca mundial norte-americana tiveram que mudar de nome e adotar versão em língua francesa. Mas pouco a pouco as conquistas foram erodidas pelo poder de mercado anglo-saxônico e depois pela penetração da internet.

“Não era de interesse francês”

O periódico inglês parece acreditar que “preocupações em perder a identidade cultural” acabaram por levar o governo socialista de François Hollande a declarar que considera introduzir “uma taxa de 1% na venda de smartphones, tablets e outros aparelhos que possibilitam conexões com a internet, para ajudar a financiar a cultura”:

“A taxa proposta em um relatório de 500 páginas financiado pelo Estado, liderado por Pierre Lescure, ex-diretor da divisão de televisão do Canal Plus, contém 80 medidas para ‘proteger a exceção cultural face à inovação cultural’. Estas incluíam substituir imposto existente para operadores da Telecom francesa que ajudam a subsidiar a produção de filmes com a nova taxa, baseada em suas rendas.”

A introdução da nova taxa foi proposta para 2014. A análise do jornal de finanças inglês esteve de acordo com suas posições editoriais: puro liberalismo contemporâneo. Ardilosamente, colocou em impopular oposição a inovação digital e a cultura francesa: “França opõe-se à revolução digital para proteger cultura e língua”, foi o título usado pelo jornal inglês. A França e suas intervenções estatais na economia assustam a imprensa liberal inglesa. Cultura e língua francesas não estão em declínio graças à revolução digital. A hegemonia da língua inglesa nas artes populares como o cinema foi estabelecida no pós-guerra. Sempre com a resistência francesa.

Os franceses, mesmo depois de algumas derrotas, não cedem sem luta diante das pressões do mercado mundial digital, dominado por gigantes de origem norte-americana e fala inglesa. Quase duas semanas depois do lançamento do Relatório Lescure, Arnaud Montebourg, “o esquerdista ministro da indústria”, cancelou a venda da maior parte do site francês de compartilhamento de vídeos Dailymotion para o Yahoo “porque não era de interesse francês”, informou ainda o periódico inglês.

Gigantes não terão vida fácil

A França já proibiu locutores de encaminhar audiências para as redes sociais, já acusou o Facebook de reprimir o crescimento de redes sociais locais e a Amazon de destruir livrarias tradicionais francesas. Ano passado, anotou ainda o jornal inglês, envolveu-se numa briga com o Google “sobre planos do governo de taxar a renda da companhia feita através de anúncios postados junto aos resultados das buscas online”:

“A disputa foi acertada em fevereiro depois do Google concordar em estabelecer um fundo de 60 milhões de libras (169,80 milhões de reais em 09/06) em para ajudar organizações da mídia francesa a desenvolver suas próprias operações digitais”, anotou o Financial Times.

A postura do governo francês de oposição à hegemonia anglófila na cultura mundial tem sido consistente todos esses anos. Pegar uma “carona na revolução digital” para financiar a cultura local é uma forma de pedágio no território controlado pelo governo francês, que quer ter algum controle sobre as forças de mercado que cortam o país e o mundo. As gigantes digitais norte-americanas desconhecem fronteiras e estão acostumadas a enfrentamentos com governos nacionais. Seus jovens proprietários encararam decisões e governos como se eles mesmos fossem representantes de países virtuais.

A França não está em oposição à revolução digital apenas para proteger sua língua e cultura. A atual administração do país pretende deixar bem claro que numa competição desigual, as gigantes da mídia digital mundial não vão ter vida fácil no país.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor