Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Filme enfrenta público padrão

O impacto do filme As Hiper Mulheres (Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro 2011) ressoa timidamente, nestes dias de seu lançamento. Fato que não diz muito sobre o agudo impacto que ele pode provocar após suas exibições. É o primeiro filme do grupo Vídeo nas Aldeias que ganha repercussão próximo do que podemos entender por “circuito comercial” de filmes neste suporte. Daí se tira a importância deste documentário. Também se tira disso a confirmação de uma crescente atenção pelos temas indígenas no Brasil.

Conflitos de terras, genocídios étnicos, presença desorganizada do Estado, incapacidade de diálogo são temas que permearam, e convivem ainda, quando se trata de questões a que povos do interior do Brasil são sujeitos. O filme padrão do Vídeo nas Aldeias não parece querer percorrer este caminho. Desde o início das atividades da organização, 1986, o método de criação tem sido religioso (já que não podemos dizer hoje sagrado, ainda numa evocação de um método disciplinar): documentários onde há uma clara interferência da ficção encenada com propósitos documentais, como na criação dos personagens reais, na elaboração do cotidiano às margens do cinéma vérité, ornamentação da narrativa na prática do que ocorre na aldeia filmada, enfim, associação definitiva entre os personagens reais e seu cotidiano. Tudo como manda o script daquele documentário francês etnológico, à maneira que o olhar curioso da antropologia permitiu numa história dialógica entre os povos da América Latina e a civilização. O método tem clareza: primeiro um trabalho pedagógico com os povos, a formação do cineasta indígena; logo após, a realização da produção.

Menos violento e castrador que a realidade

Entre farpas, porém com propriedade, o “índio” jovem recebe uma oficina do olhar da máquina (da câmera), e tenta estabelecer aquilo que a linguagem cinematográfica e seu espectador comum formado quer. Os povos das aldeias, portanto, seriam os realizadores daquilo que vemos. Ao menos o ponto de vista, ou ponto de partida, não é aquele ocidental que nos acostumou. Mesmo que a exibição em telas de cinema pelo Brasil não tivesse sido finalidade até As Hiper Mulheres, os filmes do Vídeo nas Aldeias podem ter como formato a grande tela e o público amplo. Em entrevista [http://www.producaocultural.org.br/wp-content/uploads/livroremix/VINCENTCARELLI.pdf], o produtor e idealizador do VNA, Vincent Carelli, diz que no fim de todo filme há uma apresentação para a própria aldeia, com retorno de público garantido da atenção. No entanto, na TV brasileira, mídia ainda hegemônica no que se trata de produções audiovisuais, os filmes indígenas não receberam ainda seu lugar. Não por acaso.

Após As Hiper Mulheres, como após qualquer filme do grupo, o público pagante sairá com outra perspectiva do que é o universo chamado indígena. Na rede social Facebook, uma das fotos do filme teve que ser tarjada por haver nudez das mulheres Kuikuro, povo do alto Xingu. Sem dúvidas o choque se dá na mesma medida que a língua falada no filme: não há nada de semelhante com a cultura oficial do país, aparentemente. Nada que se vê no filme seria do cotidiano comum do Brasil. Tal ingenuidade é rompida, aos poucos, quando vemos que ali há um agrupamento com ares celebrativos da vida, que presencia o desenvolvimento de uma festa ritual na qual as mulheres tomam a frente dos cantos, danças, palavras, atos. Não teria mais pertinência, em nosso ambiente político atual de afirmação contínua do feminino, uma temática como essa do filme. Juntando esse alvo afirmativo com a curiosidade de costumes tidos como ancestrais, confirma-se a conversa proposta – além das trocas simbólicas apreciadas através de um mero filme.

Ao fim do vídeo a força feminina contagia, mesmo que na gradação lúdica e aparentemente passageira daquela história. A música monótona (em um só tom) revela uma minúcia rítmica que usa as palavras como marcação. As letras evidenciam como a arte do povo Kuikuro é apurada, e como dão valor a seu legado vital passado pela oralidade. Sobretudo, todos os que assistem se percebem tendo empatia com aquilo que um dia nem pensaram em desperdiçar seu tempo fugaz. O cotidiano paralelo daquela vida selvagem, então, permanece ecoando como muito menos violento e castrador que a realidade consumada no dia-a-dia.

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Mauro Luciano de Araújo é pesquisador em cinema, professor universitário, jornalista, crítico e realizador