Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jogo das listas, versão 2013

Sinal dos tempos: o número duplo da revista americana Entertainment Weekly (EW), publicado há duas semanas com listas dos cem mais de todos os tempos em cinema, séries de TV, álbuns musicais, livros e peças, inclui na relação de filmes um quadro especial destacando os dez maiores documentários, três deles incluídos ainda na lista principal. OK, EW está longe de ser os Cahiers du Cinéma, uma Film Comment ou a Sight and Sound, mas ainda assim é a seu modo um barômetro de tendências no mercado cultural americano.

Em ordem decrescente, a relação não ficcional é: A Tristeza e A Piedade (1969), de Marcel Ophüls; Olympia (1938), de Leni Riefenstahl; Woodstock (1970), de Michael Wadleigh; Basquete Blues (1994), de Steve James; Nanook, o Esquimó (1922), de Robert J. Flaherty; Crumb (1994), de Terry Zwigoff; Gimme Shelter (1971), de Albert e David Maysles e Charlotte Zwerin; Titicut Follies (1968), de Frederick Wiseman; Don't Look Back (1967), de D.A. Pennebaker; e a série Up (1964-hoje), de Michael Apted.

Primeiras constatações: apenas dois dos preferidos não são falados em inglês, curiosamente o par que abre a relação, e, somando-se o britânico Apted, apenas três dos diretores não nasceram nos Estados Unidos. A escola do Cinema Direto americano, desenvolvido a partir da maior agilidade de filmagem propiciada por câmeras mais compactas e som sincronizado a partir do gravador Nagra, é a mais fortemente representada, com os filmes de seus pioneiros Maysles, Pennebaker, Wiseman e Charlotte Zwerin e, na esteira de sua revolução, pela série televisiva sobre 14 britânicos filmados a cada sete anos desde que tinham sete anos de idade (56 Up estreou no ano passado) e pela vertente digital do Direto do documentário de James.

Dez documentários

Um único título da era silenciosa foi escolhido, exatamente aquele considerado uma das obras pioneiras sintetizadoras do discurso não ficcional em longa-metragem – Nanook. Três dos selecionados são documentários musicais (Don’t Look Back, Gimme Shelter e Woodstock) e dois, esportivos (Olympia e Basquete Blues). Também duas das produções foram originalmente rodadas para a TV: o franco-suíço-alemão A Tristeza e a Piedade e a série britânica Up.

O topo da lista apresenta duas obras de pegada absolutamente antagônica em relação com o nazismo. Em A Tristeza e a Piedade, Ophüls devassa a divisão entre colaboradores, neutros e resistentes da França ocupada pelas tropas de Hitler (1941-45). Já em Olympia, Leni Riefenstahl serviu a dois senhores, fazendo a um só tempo um dos clássicos do documentário de propaganda nazista e uma das obras inovadoras da estética dos filmes de esporte.

A lista não ficcional da Entertainment Weekly é ainda um tapa na cara da velha academia hollywoodiana. Nenhum dos dez mais foi distinguido com um Oscar. É por essas e outras que seu conselho de documentários tem andado em revolução permanente, aprimorando as regras de indicações e de votação e convidando para seus quadros mestres renomados, como fez há três semanas ao piscar para Claude Lanzmann, Heddy Honigmann, Jafar Panahi, Kim Longinotto, Marcel Ophüls, Patricio Guzmán, Raoul Peck, Robert Frank e para os brasileiros Eduardo Coutinho (Cabra Marcado para Morrer) e José Padilha (Ônibus 174), num total de 42 documentaristas.

Listas são puro entretenimento

A simples atenção para o cinema documental no panteão da EW é o fato a destacar, sinalizando o novo nível da produção não ficcional na indústria americana do entretenimento. Na lista geral de cinema, A Tristeza e a Piedade ocupa o 20º posto; Olympia, o 84º; e Woodstock, o 89º. A lógica da relação de documentários segue o critério básico para a seleção como um todo nas várias áreas: nacionalismo, impacto crítico e, digamos, popular dentro dos EUA, certa nostalgia e narratividade mais convencional, em detrimento de maior experimentalismo.

Ainda assim, se é impossível mesmo alcançar consenso no jogo das listas, esta não é das mais desprezíveis, com ao menos cinco ou seis títulos mais do que defensáveis numa eleição desse tipo. Mas é claro que ao menos uma dezena de títulos que deveriam ter sido lembrados vem de imediato à mente, como Berlim, Sinfonia de uma Metrópole, de Walter Ruttmann; O Homem da Câmera, de Dziga Vertov; Primárias, de Robert Drew; Crônica de um Verão, de Edgar Morin e Jean Rouch; a série Narita, de Shinsuke Ogawa; Shoah, de Lanzmann; A Batalha do Chile, de Patricio Guzmán; Sem Sol, de Chris Marker; e Cabra Marcado para Morrer, de Coutinho. (Deixo o décimo em aberto para a lembrança do leitor.)

Ah, sim, Cidadão Kane é o número 1 entre os filmes; The Wire, entre as telesséries; Revolver, dos Beatles, entre os álbuns; Anna Kariênina, de Tolstói, entre os romances; e A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, entre as peças especificamente dos últimos cem anos. Pois é, o olimpo cultural da Entertainment Weekly situa-se entre o certeiro, o idiossincrático e o convencional. Nenhuma surpresa: como bem frisou o filósofo britânico Nick Hornby, listas também são puro entretenimento.

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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários