Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Máquinas de escrever ainda têm seus adeptos

A grita foi geral.

O presidente francês, François Hollande, declarou que não aceitaria “este tipo de comportamento”.

A chanceler alemã, Angela Merkel, comparou a situação aos idos tempos de Guerra Fria.

A mandatária brasileira, Dilma Rousseff, falou em “violação de soberania”.

Mas na velha e fria Rússia, terra de Dostoiévski, Tchekhov e Tolstoi, o presidente Vladmir Putin optou por uma reação, por assim dizer, mais literária. Autorizou o Serviço Federal de Proteção – a agência secreta do país – a gastar o equivalente a R$ 30 mil na compra de 20 máquinas de escrever. O motivo? Escapar à espionagem digital do governo americano – denunciada no começo de junho pelo ex-técnico da CIA Edward Snowden –, que despertou os brios de Hollande, Merkel, Dilma e dezenas de políticos e cidadãos mundo afora.

Desde então, o elo perdido entre o manuscrito e o computador passou a ser a tecnologia mais segura para a publicação do impublicável.

– O computador é a porta do abismo. Abre caminho para Facebook, Google, Twitter, para aquele mundo interminável – sentencia o poeta e jornalista Ivan Junqueira, 79 anos, 37 livros datilografados. – Mas essa notícia de que os russos compraram máquinas de escrever me parece ser uma blague, uma piada. O recurso da espionagem é a cabeça. Quando os ingleses decifraram o código dos alemães, durante a Segunda Guerra, não precisaram de computador, só de cabeça.

Presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2004 e 2005, Junqueira é dono de uma Olivetti College, presenteada pelo falecido escritor Josué Montello. A manutenção é feita por um funcionário da própria ABL, que se encarrega também de comprar as fitas de tinta.

– Fui criado na época da máquina de escrever. É um hábito que se enraizou de tal maneira que não consigo me livrar. Isso não me impediu de ganhar quatro prêmios Jabuti – vangloria-se. – A cabeça não funciona se não tenho a máquina. Se vou direto ao computador, a coisa não encaixa.

Metódico, Junqueira divide seu processo criativo em três atos. Começa com o texto escrito à mão. Em seguida o transpõe na máquina. Por fim, quando dá o datiloscrito por pronto, o repassa ao computador, para enviar aos editores.

– Não me rendi por duas razões: o hábito e a preguiça de mudar – confessa. – Para o que eu faço, o computador é dispensável. O Lêdo Ivo, que também não abria mão da máquina de escrever, se dizia um analfabeto digital. Não é o meu caso, mas reconheço que essa situação é de um anacronismo tremendo.

Som da máquina no computador

Ele não está só nessa luta contra o tempo. Em Laranjeiras, o assessor imobiliário José Diniz escreve seus recibos de aluguel numa máquina elétrica. No Centro, a secretária Raquel Carvalho recorre a uma Olivetti Praxis para os documentos do escritório. Em Duque de Caxias, o investigador Celso Gaio, da 59ª DP, usa uma do tipo Linea quando precisa fazer um Registro de Comunicação Administrativa.

Já no Leblon, o escritor João Ubaldo Ribeiro adotou medida mais heterodoxa: instalou, no computador, um programa que imita o som da máquina.

– Isso me lembra meus tempos de redação, com 17 anos – justifica.

Mas nem o imortal, o assessor, a secretária, o policial ou o escritor têm uma relação tão longínqua com a própria máquina quanto o poeta Armando Freitas Filho, de 73 anos. Com meio século dedicado à poesia (a ser celebrado no próximo mês, com o lançamento de “Dever”), Freitas Filho se deixa acompanhar, desde 1960, por uma Olivetti Lettera 22.

– Foi presente do meu pai, de quando completei 20 anos. Nela escrevi todos os meus livros, artigos e ensaios – conta. – A máquina é uma verdadeira extensão nervosa minha. Não tenho essa empatia com o computador, que faz de mim um neurótico eletrônico, um homem com medo de perder o próprio texto.

Assim como Junqueira, Freitas Filho também separa a escrita em etapas.

– Sou trifásico – explica. – Escrevo à mão, para depois passar à máquina. Aquele barulho, o “tec-tec-tec”, é minha meditação. Depois, deixo o texto em cima da mesa, quarando ao sol do olhar, e só vou ao computador quando dou o poema por pronto, ou semipronto.

Autor do sugestivo “Máquina de escrever”, uma reunião de poesias lançada dez anos atrás, ele diz que o texto melhora na segunda etapa.

– Quando escrevo à mão, não estou pensando, estou escrevendo. Quando escrevo no computador, estou salvando. Na máquina, é o momento em que penso.

Guarda, por isso, os rascunhos:

– O computador absolve o erro, parece que não houve luta. E quanta luta houve! Eu quero meus pecados de escrita, para ver se são de fato pecados.

Em São Paulo, o ator Paulo César Pereio, ícone da pornochanchada, também escreve seus textos numa Lettera 22, a mesma de Freitas Filho.

– Com a idade, a gente vai ficando meio conservador – esclarece.

Foi na Lettera que Pereio bateu a peça “Escuta, Zé Mané”, feita em parceria com seu filho, o ator João Velho, além do autobiográfico “Por que se mete, porra?”.

– Tenho um computador. No ano passado, quando concorri a vereador, tinha um site. Mas me tornei meio tecnofóbico. É uma questão emocional, uma nostalgia de papel e tinta. Gosto de livro impresso.

A primeira patente de máquina de escrever foi registrada em 1714, na Inglaterra, por um engenheiro chamado Henry Mill. A partir de então, a invenção amargou um período de 160 anos de vacas magras, em que surgiram dezenas de outras patentes – nenhuma levada a cabo em série, devido ao alto custo de produção.

Em 1874, a americana Remington, maior indústria de pistolas e rifles dos Estados Unidos, decidiu se aventurar no mercado. Lançou, por cerca de US$ 125 (então, o preço de um bom cavalo), a primeira máquina em larga escala.

A iniciativa foi trágica: o aparato, caro e enorme (era acoplado a uma mesa, como as máquinas de costura), passou a ser ridicularizado pelos escreventes – “ancestrais” humanos da digitadora.

– Antes, todo contrato em escritório era feito pelos escreventes – ensina o colecionador Ronaldo Valim de Oliveira, de 61 anos, dono de 50 máquinas e 150 livros sobre o assunto. – Eles passaram a reclamar que a tipografia era feia, sem a erudição da caligrafia. As máquinas tinham que ser trancadas em salas isoladas, para não amanhecerem quebradas. No fundo, esses homens estavam com medo de perder o emprego.

Oliveira conta que, aflitos com o encalhe, os executivos da Remington procuraram escolas e universidades, propondo a criação de cursos de datilografia. Como o público varonil repudiava a novidade, a solução encontrada foi recorrer à então menosprezada mão de obra feminina. De acordo com o texto “A mulher e a máquina de escrever: um estudo sobre inovação tecnológica e mudança social”, do pesquisador americano Donald Hoke, havia, em 1870, sete mulheres integrando a classe dos taquígrafos nos Estados Unidos. Em 1900, o número havia pulado para 200 mil. Trinta anos depois, já eram dois milhões. A secretária passou a ser figura cativa nos escritórios.

– A máquina foi a libertadora da mulher – brada Oliveira, talvez com certo exagero.

Desde então, a Remington diminuiu em tamanho e peso; o número de patentes – e concorrentes – explodiu. Um deles foi fundado em 1908, no Norte da Itália, pelo engenheiro Camillo Olivetti, que, após uma visita aos Estados Unidos, se entusiasmara com a possibilidade de lucro dessa nova tecnologia. Em 1959, a Olivetti, já consagrada, inaugurou uma fábrica em Guarulhos, ao lado da capital paulista. Com modelos mais baratos, arrojados e produzidos em maior escala do que as rivais, tornou-se, em pouco tempo, a marca mais popular no Brasil (a fábrica foi desativada em meados dos anos 1990, quando a empresa deixou de se dedicar ao mercado de máquinas de escrever).

Bilhetes datilografados têm vida

Sócias do ateliê Com Lola, Tânia Piloto, 29, e Emika Takaki, 34, têm uma coleção de quatro Olivettis, herdadas ou compradas por R$ 30 na feira de antiguidades da Praça Quinze. Escrevem nelas bilhetes que acompanham os produtos vendidos pela grife através da internet.

– Seria mais fácil ter os bilhetes prontos no computador. Mas escrevendo um de cada vez, eles ganham um pouco mais de vida – explica Tânia, que, junto com a sócia e com a jornalista Carol Delgado, publica um zine bimestral, “O livro das cores não ditas”, todo datilografado.

– A máquina tem um ritual – teoriza. – Você coloca o papel, corrige a posição, ajusta o tubo, ouve o sininho a cada linha pulada. Além disso, o teclado é menos leve que o do computador; tem que fazer força para imprimir a tinta na página. O fluxo de criação, talvez pelo movimento, é diferente.

Ela acredita que a inexistência da tecla backspace também gera um envolvimento maior:

– Você se concentra por conta da impossibilidade do erro. Se errar, e isso não fizer parte da proposta, terá que recomeçar do zero. A máquina tem uma força, um tempo, uma mágica própria. Muita gente coloca na estante de casa como objeto de decoração. Acho um desperdício.

Especializado em fotografar casamentos, Felipe Luz, 31, chegou a usar uma Olivetti Studio, herdada do tio, como adorno do apartamento. Com o passar do tempo, viu que poderia dar-lhe destino mais nobre.

– Uso para escrever as mensagens que acompanham o pen drive com fotos dos clientes. Também já presenteei amigos e fiz lista de compras.

Num momento de paixão, sua mulher, a designer Kathie Brasil, 28, ganhou dele um guardanapo datilografado.

– Coloquei o guardanapo no lugar do papel e e bati “Eu te amo” em preto e vermelho – lembra. – Se fosse no computador, não teria graça, porque fica tudo impresso certinho. A perfeição é chata.

Hoje, o casal também é dono de uma Hermes Baby, com letra cursiva, comprada há alguns anos na internet, por cerca de R$ 100. O fotógrafo diz que ela está valendo três vezes mais.

No site Mercado Livre havia, na última semana, 1.186 máquinas de escrever à venda. Os preços iam de R$ 19,98 (uma Remington sem nome, data e pedigree) a R$ 4.500 (uma Mignon 4, da alemã AEG, fabricada em 1923). Rolo de tinta – o mesmo usado em calculadora – pode ser achado nas boas papelarias. Já o técnico em manutenção é uma espécie em extinção. Dono de uma oficina no Centro, Deives dos Santos, 47, já teve 22 funcionários. Hoje são quatro, terceirizados.

– De 1997 para cá as máquinas começaram a desaparecer. Agora conserto computadores. A única forma que tive de continuar no mercado foi me atualizando – conta, desgostoso.

Em 1992, a Olympia – marca usada até hoje pelo cineasta Woody Allen (que recorta e cola trechos de texto com tesoura e grampeador, quando precisa editá-los) – fechou as portas, na Alemanha. A última fábrica do ramo, a indiana Godrej and Boyce, encerrou a produção em 2011. As peças compradas pelo governo russo, da germânica Triumph-Adler, são especiais para documentos sigilosos.

Aposentado desde 1986, Homero Norberto Alimandro, 91, é do tempo em que até a máquina de escrever era novidade.

– Quando eu era menino e trabalhava na Light, se fazia tudo na mão. Minha primeira vez na máquina foi depois da Segunda Guerra Mundial, quando virei funcionário do Citibank – lembra.

Passou por outros bancos e máquinas, até formar a equipe de três Remingtons que carrega consigo há mais de década. É nelas que escreve suas pensatas, catalogadas na ordem em que aparecem e depois registradas, para atestar autoria, no ministério da Educação. A mais recente, número 27.290, diz: “Às vezes a beleza do ser humano não está exatamente onde ele pensa que está; está mais adiante.”

Há não muito tempo, Alimandro se viu forçado a abrigar um inimigo dentro de casa: sua nora presenteou-o com um computador. A parafernália foi encostada no escritório, onde permanece, inerte, envolta num plástico.

– Não tenho paciência para isso; o computador é o inimigo da máquina – explica, com desprezo. – Ele fica fora de área, dá problema. Não tenho tempo para esperar que ele resolva me atender. O que deve predominar é a minha vontade.

É pela mesma razão que o funcionário público Idalício de Oliveira, 85, descartou o curso de computação que foi obrigado a fazer, em 1992.

– Eu e minha máquina de escrever estamos juntos desde abril de 1977; somos da época do Marcos Tamoio. Ela me acompanhou em 13 administrações de nove prefeitos – derrama-se. – O computador dá problema. Vem mecânico, conserta. Quando sai, já deu problema de novo.

Por isso, tampouco usa e-mail ou celular. (Paradoxalmente, seu trabalho consiste em ler o Diário Oficial e escrever notas na Remington 100, que são publicadas, por um funcionário mais jovem, no site da prefeitura do Rio.)

Fiel à bandeira antitecnológica, Oliveira diz ter sentido um quê de orgulho quando soube da guinada russa rumo aos velhos tempos:

– Achei uma ideia excelente. Comigo é assim: sou tudo pela antiga.

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Roberto Kaz, de O Globo