Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Segredos de Will Eisner

O escritor norte-americano Michael Schumacher, apesar do nome, tem uma obra muito variada e distante do automobilismo. Possui mais de dez livros publicados. Entre eles, biografias de Allen Ginsberg, Eric Clapton, Phil Ochs, George Mikan e Francis Ford Coppola. A coisa em comum em seus trabalhos é que aborda personalidades que ajudaram a definir o espectro cultural de um tempo. Com Will Eisner, ele tomou para si um desafio ainda mais amplo: quase todas as histórias em quadrinhos de Eisner já são biográficas, tratam de sua vida e suas memórias. Uma biografia serviria para preencher lacunas.

O sr. não conheceu Eisner pessoalmente, certo?

Michael Schumacher – Não, não conheci. É engraçado, porque meu parceiro na biografia de Al Capp, Dennis Kitchen, conheceu Eisner muito bem, foi seu agente. Ele me foi muito útil na pesquisa do livro, me abriu todos seus arquivos, suas cartas e também a arte original de Eisner. Nunca conheci Eisner, mas fui muito auxiliado pela viúva dele, Ann. Ao final, sinto como se o tivesse conhecido profundamente.

Conheci Eisner aqui no Brasil, era um homem muito gentil e extraordinariamente comum. E agora o sr. lança outra biografia, sobre Al Capp, o autor de Ferdinando. Capp não foi exatamente um homem normal, certo?

M.S. – Não, não foi (risos). De jeito nenhum. Hahahahaha. Capp tinha seus momentos generosos e afáveis, mas não foi por esses momentos que ficou conhecido. Eisner ficou conhecido por ser um homem muito, muito bom. Capp era infiel à mulher, era de extrema direita, era amargo e cruel.

Aqui no Brasil, Eisner uma vez disse de si mesmo duas coisas: “Todas as minhas histórias são sobre cidades vivas”. E a segunda foi: “Não sou um moralista”.

M.S. – A primeira é totalmente verdade. A segunda, de jeito nenhum. Sempre foi uma pessoa de moral rígida e com os pés no chão. Mas ele era humano, cometeu erros. Quando foi ouvido como testemunha no processo relativo ao Superman, ele não foi completamente honesto na Corte. Eu soube disso pouco antes de completar o livro e tive de mudar para incluir, para não correr o risco de faltar com a verdade. Ele era muito jovem e estava um pouco amedrontado, e acabou dizendo coisas que não correspondiam à verdade sobre o personagem. Aquela foi talvez a única vez, que eu tenha ouvido falar, que ele fez algo que não era moralmente correto. O povo judeu tem uma palavra que é usada para definir uma pessoa íntegra, “mensch”. Era como se referiam a ele. Visitei seu túmulo com seu sobrinho e sua viúva, e uma das coisas que os judeus fazem para marcar sua passagem é colocar uma pedra no túmulo. Havia centenas de pedras sobre o túmulo dele. As pessoas o têm visitado e feito tributos a ele todos esses anos após sua morte. É algo que diz muito de sua importância. A viúva dele, Ann, é uma pessoa maravilhosa. Geralmente, as pessoas sobre as quais eu escrevo a respeito são controversas. Especialmente Al Capp. Eu escrevo sobre pessoas que eu admiro. Al Capp foi diferente. Ele não era como Will Eisner, Al Capp não era bom com quase ninguém. Desrespeitava as mulheres. Eisner amava muito o Brasil, adorava ir até aí, conversava com todo mundo. Dedicava tempo a todo mundo nas convenções de quadrinhos. Falei com alunos deles, e todos tinham algo para dizer de bom a respeito dele, de como era encorajador, como os ajudava.

Apesar da sua simpatia por ele como ilustrador, o sr. não escondeu a inveja que ele sentia por muitos colegas.

M.S. – Spiegelman ganhou um Pulitzer. Eisner não se conformava com isso. Achava que também merecia. Eu concordo. Especialmente por Contrato com Deus (1978). É um livro muitíssimo importante. Algumas das histórias que ele desenhou ao longo dos anos, como A Life Force, foram muito bem recebidas. Mas ele foi pioneiro, teve de abrir caminho para que outros pudessem usufruir da sensibilidade que criou. Tive acesso à correspondência entre ele e seu editor, Dave Schreiner, e é curioso: ele via Eisner de fato como um romancista, um escritor, e um bom ilustrador. Ali, por meio da correspondência com Schreiner, eu pude ter acesso ao seu processo criativo, que era a coisa mais importante para mim. Como ele pensava, criava, por que escolheu determinado ângulo. Essa é minha perspectiva. Quando a gente ouve uma música dos Beatles, tem a curiosidade de saber como ela foi feita, em que circunstância, o que eles pensavam na época. Mesma coisa quando vê um filme de Coppola: como ele fez aquelas escolhas?

Se Eisner fosse vivo hoje, qual seria a coisa que o sr. gostaria de perguntar a ele?

M.S. – É uma bela questão, mas muito difícil de responder. E vou lhe dizer por quê. Na época em que morreu, Will Eisner estava trabalhando em The Plot (Os Protocolos dos Sábios do Sião). Era uma novíssima e interessante direção na qual ele trabalhava. Até então, fizera histórias de ficção, embora baseadas em memórias, coisas biográficas. E agora estava investigando uma nova área, a não ficção. Não sei o que ele escolheria fazer hoje, e fico fascinado em imaginar. Lembro de ter perguntado isso a Norman Mailer uma vez: O sr. prefere escrever ficção ou não ficção? E ele riu e disse: “Sabe, Deus nos dá as melhores tramas”. O que é uma bela e engraçada resposta. No caso de Eisner, o que ele preferiria? Se você senta com alguém para tomar notas, entrevistando para uma revista, é como um cego tateando, não sabe aonde quer chegar. Lembro de Kurt Vonnegut rindo de mim uma vez por causa de meus blocos de notas, que pareciam não conter nada relevante. Não sei o que perguntaria a ele. Talvez lhe pedisse opinião sobre novos artistas, ele estava sempre ligado no que aparecia de novo, era muito antenado. Era também muito ligado em processos educativos. Ou lhe perguntaria sobre a invasão de graphic novels. Toda livraria que você vai hoje em dia está lotada delas. Duas questões que eu adoro quando entrevisto: O sr. tem algum arrependimento? Ou: O que lhe mete medo hoje em dia? O que o assusta? Meu trabalho com Ginsberg foi permeado por essas dúvidas. O que eu realmente queria saber sobre ele? Você só vai se dando conta disso conforme avança na sua pesquisa. Todos esses meus biografados tinham uma coisa em comum: estavam sempre à procura de alguma coisa. Eram investigadores da espiritualidade, da compreensão, das consequências das coisas.

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Jotabê Medeiros, do Estado de S.Paulo