Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um jornalista fora do lugar

No sábado (7/9), em sua coluna diária no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Ancelmo Gois publicou nota que, para evitarmos toda espécie de dúvida, transcrevemos na íntegra:

Ponto Final

“Os Black blocs e os militantes do Anonymous, que protestam com os rostos cobertos, guardam semelhança com os deputados e senadores que defendem o voto secreto. Nos dois casos é uma forma de se esconder. Cartas para a redação.”

Como, por experiências anteriores, as respostas inexistiram, não envio comunicado algum para o dito jornalista e redijo essas mal traçadas linhas para tecer um ou outro comentário sobre a referida nota.

O problema aqui é colocar em um mesmo patamar representantes da sociedade e que atuam num dos poderes de Estado comparados a membros da sociedade civil que buscam formas de ação política. Quando isso ocorre, esquece-se de que o primeiro grupo possui garantias institucionais para legitimar o conjunto de ações perante o restante da sociedade; são eles que produzem as leis e, em última análise, suas limitações residem no momento em que o meio social os escolhe em uma eleição. Já o segundo grupo, a sociedade civil, ao encerrar na urna uma opção qualquer, passa uma procuração onde os termos de uso não são muito claros e fornece uma determinada independência ao denominado representante.

Em outras palavras, tratamos aqui de uma relação com ausência total de isonomia e com a mais absoluta assimetria; ou seja, é uma relação entre desiguais, com poderes desiguais, em condições desiguais, regulados por uma legislação desigual. E, vale dizer, em linhas gerais essa desigualdade é até necessária, visto que a lógica da teoria política indica que um ator de qualquer um dos poderes de Estado deve possuir certas garantias para que possa agir com independência e fazer funcionar o país.

Contudo, se há uma assimetria necessária para fazer funcionar a máquina do Estado, isso determina que esses atores devam agir na mais absoluta exposição pública; não há como aceitar que as decisões ocorram de maneira sigilosa – e é aqui que finalmente chegamos ao texto citado.

Seria o jornalista parte do Poder?

Por representarem a sociedade, por produzirem as leis, por possuírem garantias institucionais (inclusive na hora de serem julgados pelos mais diversos crimes, não se esqueçam!), qualquer votação na Câmara dos senhores deputados ou no Senado Federal (valendo também para as Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores) deve ocorrer “às claras”, ou seja, com voto aberto para que qualquer eleitor saiba como o votado está se comportando – e pouco importa se o senador, deputado federal, deputado estadual ou vereador, tem ações e compromissos de esquerda, centro ou direita: o que interessa é saber se no Poder Legislativo ele é coerente com a sua campanha e com aqueles que o elegeram.

Já no outro lado da moeda, cada cidadão que não produz Lei, que não possui privilégios em questões legais ou em julgamentos, que, enfim, forma aquele enorme conjunto de pessoas que podem ser classificadas como “o elo mais fraco”, deve possuir certas garantias perante o poder político, tais como o voto secreto e, em determinadas ocasiões, ter o direito ao anonimato em uma manifestação – afinal, não possui o direito “à violência legítima” (nas conhecidas palavras do sociólogo Max Weber) como tem o Estado via seu braço legal, a saber, a Polícia Militar e as demais forças.

Com isso, os comentários do jornalista Ancelmo Gois transformam-se em um lamentável mal-entendido, isto porque, sendo ele um cidadão comum (é o que eu imagino), seu posicionamento social está muito mais para um “black bloc” ou Anonymous do que um deputado ou senador. Salvo, é claro, se ele concluir que, por trabalhar em um diário pertencente a uma organização empresarial que tanto defendeu o regime autoritário seja ele também parte do Poder; guarde ou viva semelhanças com aqueles que se posicionam dentro das entranhas da máquina política. Não, não acredito que Ancelmo Gois possua essa crença: seria decepcionante demais.

******

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal de Ouro Preto