Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Erro médico ou jornalístico?

Já discuti neste Observatório o que chamo de “agenda antimédicos” na imprensa, algo que, diga-se, ficou bastante evidente no imbróglio do programa federal “Mais Médicos”. À época dei alguns exemplos de erros jornalísticos grosseiros e escolhas editoriais que não poderiam ser creditadas apenas à leviandade. Minha tese é de que são coisas deliberadas e servem a uma agenda de poder.

Citei, por exemplo, o caso de uma matéria que deu grande destaque de primeira página, numa edição de domingo, à denúncia de que médicos não estavam cumprindo a carga horária num hospital público de Goiânia, para, dois dias depois, escondido no meio do jornal, informar que na verdade todos os profissionais da saúde faziam o mesmo. Também o de um articulista que criticou o projeto de lei do ato médico, dizendo: “Na mesma linha vai o art. 5º, que proíbe os-não médicos de chefiar serviços médicos ou lecionar disciplinas médicas. Isso numa época em que, na ciência, as fronteiras entre medicina, biologia, química, física etc. são cada vez mais difusas.”

O viésde interpretação aqui não pode ser creditado a um analfabetismo funcional. “Serviços médicos” não significam “serviços de saúde” e, para não deixar dúvidas, isso é dito no projeto. Ou seja, faz-se aqui o mesmo que se faz no dos enfermeiros, onde está escrito que somente enfermeiros podem chefiar serviços de enfermagem. E, no que diz respeito a “disciplinas médicas” o projeto deixa claro que se refere a disciplinas exclusivamente médicas, por exemplo, as especialidades médicas (oftalmologia etc.). Afinal, assim como um filósofo pode dar aula de Filosofia do Direito, mas não de Direito Penal, também um filósofo pode dar aula de Bioética, mas não de Oftalmologia, por motivos constrangedoramente óbvios.

Onde está o “erro médico”?

O que me traz à banalização do termo “médico”. Estampada na página principal do UOL do dia 12 de setembro, a seguinte manchete: “Polícia investiga morte de idoso por suposta negligência médica em hospital do Rio”. Ao ler a matéria, não fiquei nem um pouco surpreso por notar que, não só não fornece elementos para justificar a manchete, como fornece elementos contrários. Vejamos, por exemplo, o depoimento do filho do paciente: “Minha mãe chegou com sua acompanhante no horário marcado e foi até a UTI. Lá, ficou sabendo que meu pai se encontrava no quarto 619. Quando chegaram ao quarto, localizado no final do corredor e com as portas fechadas, encontraram meu pai sozinho, sem máscara de oxigênio e sem qualquer monitoramento, suspirando e com os olhos fechados. (…) Neste momento, a enfermeira informou que tinha ministrado o remédio prescrito e que era normal que ele estivesse em sono pesado.”

Mais adiante, a matéria cita uma anotação do prontuário médico (atenção: médico mesmo): “Atentar para alteração clínica, respiratória.” E também determinava que “deveria haver controle de 1 em 1 hora ou mais frequente”.

Não é preciso ser médico para notar que orientação e prescrição foram feitas para os demais membros da equipe de saúde, que podem, ou não, ter sido seguidas, mas, de toda forma, foram feitas. Onde está, pelos dados fornecidos na reportagem, o “erro médico”? Em nenhum lugar. Há várias possibilidades. Pode não ter havido propriamente erro (estenose aórtica em paciente de 85 anos tem prognóstico reservado). Pode ter havido erro da rotina do hospital. Pode ter havido erro da enfermagem, por não monitorar, ou, ao monitorar, cometer erro de julgamento do estado do paciente (portanto um erro de diagnóstico). Pode, claro, ter havido até erro médico mesmo, por exemplo, por dar alta da UTI precocemente, quem sabe.

“Café com leite”

Mas a questão é: a matéria não justifica a manchete. E não adianta o jornalista responsável (Gustavo Maia, do UOL) dizer que o termo “médico” está em seu sentido lato, pois os comentários postados no site dão bem o termômetro de como o leitor leigo apreendeu a mensagem: “Os médicos não prestam”, “Os médicos são mercantilistas”, “Que venham os médicos estrangeiros para salvar o Brasil”. Ninguém interpretou como se tratando de um erro de equipe.

O que, por sua vez, me traz ao paradoxo esquizofrênico do cuidado em saúde. A tendência nos discursos oficiais de hoje é dar valor à equipe multiprofissional. O que, diga-se, está certíssimo. Não faz sentido desconsiderar o papel de toda a equipe, nas várias profissões da saúde, com um objetivo comum: o melhor para o paciente. Mas essa consideração tem de ser em todos os campos, inclusive o da responsabilidade. Não é produtivo, nem justo, que haja uma valorização de todos quando o assunto é cuidar, e uma valorização exclusiva da responsabilidade do médico, quando algo dá errado. Não se trata de “limpar a barra” do médico. Mas nem de considerar os demais como “café com leite”, como fez o ator Dennis Quaid, ao processar a indústria farmacêutica fabricante de heparina. O médico prescreveu 10 unidades para seus gêmeos, mas o enfermeiro aplicou 10 mil e as crianças quase morreram. A justificativa de Quaid foi que a embalagem era muito parecida e confundia. Tudo bem. Mas e quem aplicou, não tem qualquer tipo de responsabilidade? É café com leite?

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Flávio Paranhos é médico e research fellow (Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFG) e visiting fellow (Tufts) em Filosofia, doutorando (UnB) em Bioética e professor do Departamento de Medicina da PUC Goiás