Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Brasil, o país do riso

Viver no Brasil é uma prova de resistência física e mental. Estamos, agora, imersos na pauta do “mensalão”. Suponho que cada cidadão se sinta refém de “doutas mentes” em cuja instância máxima do país reside o poder de deliberar “isto”“ ou “aquilo”. Onze cérebros, ungidos por presidentes da República, detêm o poder de, acima de qualquer outro clamor, decidir o destino de pessoas da vida pública quanto à absolvição ou condenação.

Ao longo do processo de julgamento dos indiciados no processo do “mensalão”, houve uma sentença final, decretada pela Suprema Corte do país (última instância). Sim! Mas há um detalhe, na história, tão risível quanto vergonhoso. Qual? O dispositivo legal que retira do STF o membro constitutivo, ao completar 70 anos, a exemplo do que se amplia para professores universitários; aposentadoria compulsória. Detalhe: a lei existe, por conta de políticos que a aprovaram. Todavia, o princípio não vale para eles próprios. Que vergonha! A mídia, porém, sobre tal absurdo, nada questiona. Ela, apenas, relata fatos.

A química e as quatro questões

Com base na composição atual do STF, por conta dos que saíram (antigos indicados do PSDB) e dos que foram nomeados (desde o primeiro mandato do PT), atualmente se tem uma correlação de forças em equilíbrio. Quem provém do “petismo” vota a favor da absolvição; quem deriva das hostes do PSDB vota a favor da condenação. Contudo, cada magistrado invoca o argumento jurídico-constitucional no qual encontra apoio no seu parecer: crime perfeito! A deformação no processo é clara: o critério para indicação de ministro do STF não pode originar-se do poder Executivo. Todos os indicados, recentemente, votaram a favor da aprovação dos embargos.

A obscuridade a envolver todo o processo não cessa no que, acima, foi assinalado. Então, prossigamos. Cabem quatro perguntas que, em nenhuma matéria jornalística (impressa ou eletrônica) foram formuladas: por que, à época da instauração do processo contra os “mensaleiros”, os inspirados cérebros do STF não perceberam que, agregando políticos e não-políticos, na condição de réus, estavam infringindo a lei na qual há o direito a réus serem julgados, antes, em primeira instância; em seguida, em segunda instância e, por fim, em última instância (STF). Assim não o foi. Juntaram políticos ao chamado “fórum privilegiado” a outros para os quais a legislação decreta procedimento diverso. Foi distração? Foi incompetência? Foi “armação”? Aguardo, pacientemente, a resposta oficial de cujo teor nenhum jornalista de plantão teve curiosidade de saber.

Por que, nessa fase decisiva, o ministro Celso de Mello optou pelo voto em favor da “tecnicalidade” jurídica, sabendo-se que, na fase anterior do processo, ele foi um dos mais rigorosos no tocante à condenação dos réus (políticos e não-políticos, reunidos no mesmo processo)? Daí, portanto, surge o outro dado “estranho”, igualmente ignorado pelos jornalistas: por que o cioso ministro da “tecnicalidade” não observou, à época, o erro cuja substância, adiante, permitiria o “embargo dos infringentes”?.

Se o voto decisivo foi em prol da “tecnicalidade” jurídica, em função do que consta como norma processualística, como se explicam os votos contrários dos outros cinco? Os cinco que votaram a favor da rejeição aos embargos dos infringentes ignoraram a própria lei vigente?

O processo do “mensalão” contém mais de dez mil páginas. Cada uma delas terá sido lida pelos antigos magistrados? Cabe a dúvida… Se a dúvida é razoável quanto aos membros da antiga composição do STF, que dizer quanto aos recém-chegados? Que tempo eles tiveram para se debruçar sobre a avalanche de volumes com derramada verborragia de depoimentos, bem como vasto leque de documentação? Mas votaram…

Nenhum jornalista se ateve, também, a essa questão. Se tivéssemos uma mídia independente, um repórter indagaria: “Com exíguo tempo, Vossa Excelência pôde inteirar-se de tudo, a ponto de votar?” À pergunta feita, o magistrado recém-chegado responderia: “Sim, é claro! Dias e noites, sem dormir, entreguei-me ao teor dos autos, com plena devoção”. Aí, o jornalista (independente) retrucaria: “ Vossa Excelência pode dar seu parecer a respeito do fato ‘x’, contido nos autos de mais de dez mil páginas?” Seria o impasse revelador do descrédito público. Ainda assim, o magistrado encontraria uma saída capaz de salvar as aparências e diria: “É humanamente impossível, em mais de dez mil páginas, lembrar-me do fato ‘x’”. Crime perfeito. Este é o rosto do país.

Desculpem-me doutos membros do STF, mas, na minha atuação, não uso dois pesos e duas medidas. Meus alunos, ao longo de décadas, podem comprovar. Se as leis existentes permitem “interpretações divergentes” é porque elas foram redigidas e aprovadas pela cumplicidade que irmana a corrupção dos poderes. E, dentre eles, situa-se a “mídia oficial”.

Como cidadão, sem nada a dever a quem quer que seja e, mais, sem credo político-partidário, gostaria de receber respostas embasadas, relativas às questões pontuadas. Aguardei que jornalistas, inclusive acadêmicos, em algum momento, tivessem tal iniciativa. Por que não? Eles que respondam, bem como os doutos membros do egrégio STF.

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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)