Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um editorial jogado por terra

Em setembro deste ano, as Organizações Globo divulgaram um editorial admitindo ter sido um erro posicionar-se a favor do golpe de 1964, que acabou resultando em duas décadas de ditadura militar no Brasil. Louvável a atitude (apesar do tom de mea culpa do texto).

É impossível deixar de notar, contudo, o nível de parcialidade dos veículos de informação da Globo em sua cobertura dos protestos que tomam as ruas do país desde junho – particularmente no Rio, onde ainda perduram por conta da greve dos professores da rede municipal. Sua natureza reacionária não parece muito distante daquela que predominou durante os anos de chumbo no país. Em linhas gerais, as matérias deixam em segundo plano as motivações dos protestos, privilegiando a transmissão de cenas de violência em um aparente esforço de construir uma imagem negativa das manifestações junto à opinião pública.

Esse modelo de cobertura foi usado com afinco especialmente à época dos primeiros protestos, no início de junho. No entanto, depois que diversas imagens retratando a violência policial começaram a circular na internet e de uma clara manifestação de apoio aos movimentos de rua pela sociedade brasileira, os jornais passaram a destacar também o despreparo dos militares – sem, todavia, deixar de condenar veemente e exaustivamente a violência de manifestantes, tachando-os de vândalos, baderneiros, marginais e adjetivos afins.

Modo de se vestir

Mais recentemente, porém, as Organizações Globo parecem ter encontrado o bode expiatório perfeito para desqualificar os protestos de rua. Como se não bastassem as matérias que procuram associar o movimento dos professores a interesses sindicais e partidários, os veículos da empresa têm centrado boa parte de suas reportagens na atuação dos Black Blocs – grupo que, originalmente, se propõe a defender os manifestantes da repressão policial.

Qualquer sinal de confusão, confronto ou quebra-quebra é prontamente associado aos integrantes do grupo, independentemente de sua causa estar relacionada à ação da polícia ou a movimentos isolados encabeçados por delinquentes que se aproveitam das manifestações para saquear ou simplesmente depredar o patrimônio público e privado na cidade.

Outra organização que vem sendo alvo de diversas reportagens é o Anonymous – segundo o Wikipédia, uma legião que se organiza pela internet com o objetivo de representar os interesses do povo perante os governantes. Na última semana, o jornal O Globo publicou uma reportagem (“Anonymous divulga manual de enfrentamento em protestos”, 10/10/2013) sobre um manual divulgado na página virtual do grupo que ensina manifestantes a se vestir adequadamente para participar dos protestos. A matéria detalha as instruções, que recomendam o uso de óculos protetor, lenço para o rosto, blusa de manga comprida, luvas e calças para se proteger de estilhaços de bombas, tênis ou botas para correr.

Nunca é tarde para repetir o erro

Ou seja, orientações absolutamente legítimas tendo em vista o uso quase indiscriminado de armas não letais por parte da Polícia Militar nas últimas manifestações. Portanto, qualquer um, seja Black Bloc ou não, poderia segui-las para reduzir sua exposição ao risco nessas ocasiões. Apesar de sua pertinência, a reportagem recorre a fontes com o claro de intuito de recriminar o manual. Um dos entrevistados é o coronel da reserva da PM Milton Correia da Costa, que o qualifica como meio de difusão de táticas de “desobediência agressiva”. “O conteúdo da página comprova que estamos diante de uma organização criminosa, que ensina e difunde, via internet, táticas e técnicas de desobediência agressiva, que resultam em vandalismo contra as ações da polícia para a restauração da ordem pública. Uma perigosa difusão de práticas de guerrilha e terrorismo urbano e de afronta ao poder constituído”, analisa o ex-militar.

Em resumo: o manual ensina às pessoas a se proteger dos efeitos das armas não letais utilizadas pela polícia – sabida e reconhecidamente a principal motivadora da violência nos protestos (não só no Brasil, mas, historicamente, em qualquer lugar do planeta) – e a reportagem o qualifica como meio de propagação de táticas terroristas. Matérias como esta têm, historicamente, o efeito de provocar o sentimento de medo na classe média, que, temerosa quanto a uma suposta ameaça à ordem social, passa a avalizar o endurecimento da repressão aos protestos – verdadeira pedra no sapato dos governantes.

A estratégia é clássica. O filme A batalha de Seattle (1999) mostra como a prefeitura da cidade americana trabalhou em estreita parceria com a grande mídia para desviar a atenção dos protestos contrários a um encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC) e avalizar a violentíssima repressão da polícia local. Mas esse filme também já se passou no Brasil. O golpe militar de 1964 foi apresentado pelos grandes meios de comunicação da época como uma “revolução democrática”, em um movimento que supostamente salvaria o país da “ameaça comunista”. Quase 50 anos depois, o Estado brasileiro lança mão de medidas no mínimo estranhas a um regime democrático, como proibir o uso de máscaras em manifestações e enquadrar manifestantes detidos na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura militar. Para tornar o cenário ainda mais preocupante, tramita no Congresso Nacional uma lei antiterrorismo.

Ao apoiar o Estado em sua tentativa de sufocar a livre expressão das ruas, as organizações Globo mostram que nunca é tarde para repetir o mesmo erro e fazem valer a máxima de Malcom X: “Se você não for cuidadoso, os jornais lhe farão odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”.

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João Montenegro é jornalista