Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Balas de borracha e vestígios de pólvora

Tenho recebido e-mails e mensagens no Facebook de uma campanha de incentivo ao cancelamento da assinatura do jornal O Globo. Sua cobertura das manifestações está sendo vista como inverídica, politicamente enviesada e uma ofensa ao bom jornalismo. As mensagens explicam como cancelar a assinatura e como resistir à insistência dos atendentes de telemarketing em dificultar esta ação. Segundo a campanha, os próprios atendentes revelam que o cancelamento se intensificou bastante nos últimos meses e que muitos leitores justificam que a razão está relacionada à incompatibilidade entres suas opiniões e o modelo de cobertura que vem sendo realizado pelo jornal.

Esta campanha e o destaque para a incompatibilidade entre cobertura jornalística e interesse do leitor podem ser vistas como um ponto que se soma ao debate pertinente sobre a crise do jornalismo, tanto no Brasil quanto em outros países. Já não é de hoje que se fala que o jornalismo sofre uma crise, que o modelo de jornal já não é mais compatível com o modo como as pessoas consomem notícia, que a propaganda não vê mais o jornal como um espaço primordial para suas campanhas publicitárias e que a Internet fez com o a crise se agravasse ainda mais. Mas nenhum desses fatores sozinhos ou combinados é mais forte para explicar a crise do jornalismo quanto a crise de autoridade que se instalou.

Assim, o hábito de receber o jornal em casa ou ir a uma banca de jornal para comprá-lo é tido como ultrapassado pelas novas gerações; o mercado publicitário que já não percebe o jornal como uma fonte tão necessária de espaço para as suas propagandas e que, como não tem nenhuma responsabilidade de sustentar o jornalismo, se desvincula dessas mídias sem dor no coração, e a internet, que produz uma nova relação entre jornalista e leitor, tornando-a não mais uma via de mão única onde um apura e escreve e o outro compra e lê a notícia, podem até sacudir os pilares do jornalismo, mas ainda não são fortes o bastante para derrubá-lo.

Crise semelhante entre 1960 e 1970

O que possui a força destruidora do jornalismo é a sua perda de autoridade. Autoridade de fazer o leitor acreditar na competência da escolha e cobertura das notícias. Dois exemplos de interpretações de acadêmicos norte-americanos que tratam deste tema ajudam a tornar este argumento mais claro.

O sociólogo, especialista em mídia e professor na Universidade Columbia Todd Glitin, em A surfeit of crises: circulation, revenue, attetion, authority, and deference,destaca que o jornalismo norte-americano enfrenta uma crise não apenas pelas razões encadeadas acima, mas porque a grande mídia optou por tomar discursos das autoridades políticas como verdade e simplesmente reproduzi-los em suas matérias. Um dos exemplos do aumento da descrença do público americano com a atuação do jornalismo se deu logo após a descoberta de mentiras do governo do presidente George W. Bush para justificar a invasão ao Iraque. Dessa forma, a opção da mídia de não questionar o discurso das autoridades políticas a transformou de iluminadora dos fatos que são de interesse público a simples reprodutora de um discurso político cheio de intenções.

Reforçando o argumento, o professor de pós-graduação de Jornalismo da Universidade Columbia Michael Schudson destaca, no artigo “The reconstruction of American Journalism”, que o jornalismo norte-americano entre os anos de 1960 e 1970 também sofria de uma crise de autoridade por estas mesmas razões: o apoio ao discurso das autoridades políticas e o reforço destes discursos nas matérias dos jornais.

A crise no Brasil

Nesta época, segundo Michael Schudson, a grande virada do jornalismo se deu exatamente quando a pressão por mudanças, vistas em manifestações por todo o país, chegou às redações e modificou o modo de atuação do jornalismo. Foi a pressão por mudanças sociais que afetou o jornalismo e a pressão por um novo jornalismo que buscou representar a diversidade e as demandas do povo americano.

O caso Watergate, em 1972, é emblemático nesse sentido pois demonstra bem como jornalistas que atuavam em um jornal tradicional, o Washington Post, fizeram uma reportagem que influenciou na renúncia do presidente Richard Nixon. Ao não tomarem o discurso oficial como verdade e nem produzirem matéria para reforçar as intenções políticas das autoridades, os jornalistas estavam colocando o jornalismo de volta aos trilhos, o reaproximando dos interesses do público e deixando de fazer da opinião pública uma massa manipulável. Isso era o que muitos pediam também nas ruas, principalmente em razão da continuidade e do desgaste da Guerra do Vietnã.

Voltando ao Brasil, há de se pensar se o jornalismo por aqui está em crise por conta da baixa circulação do jornais, ou pelo fato de a propaganda já não investir com tanta força nos veículos de comunicação ou ainda por causa da internet. Há de se pensar se não estamos falando de balas de borracha onde foram encontrados vestígios de pólvora.

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Amanda Costa Reis, jornalista, professora e doutoranda em Ciências Sociais na PUC-Rio