Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A reportagem deve ser comum, recorrente

Vive-se um período histórico em que ecoa sistematicamente o discurso quase unânime da convergência tecnológica com viés centralizado no consumismo eletroeletrônico e na superficialidade da velocidade informativa virtual. Por causa disso, cabe aqui um instante meditativo que valorize o investigar, o demorar-se na empreitada curiosa e o promover reflexões.

Busca-se fazer isso ao se referir ao jornalismo interpretativo, mais conhecido como reportagem, gênero muito elogiado por jornalistas, proprietários de veículos de comunicação e pelos cursos de Jornalismo que, contudo, carece dos mesmos entusiastas e de maior esforço para torná-lo material comum e recorrente nas produções midiáticas e acadêmicas.

Afinal, a reportagem, extensão e aprofundamento da notícia, representa importante papel diante do caótico fluxo de informativo contemporâneo. Sua natureza e função possibilitam organizar e dar sentido aos conjuntos de dados, assim como potencializar debates públicos, ampliar e qualificar a participação dos inúmeros atores sociais. Passível de ser feita com diversas mídias e para diferentes tipos de suporte, a reportagem pode ser vista principalmente em revistas, pela periodicidade mais alargada, e em parcela da programação televisiva e radiofônica, voltada a documentários ou materiais especializados. Gradativamente, o gênero ganha consistência em sites e blogs. E é algo pouco enxergado em jornais diários, situação causada pela falta de visão e ousadia de proprietários e profissionais.

Conceitos e procedimentos

Centrada em interpretar e investigar, a reportagem estrutura-se basicamente em concepção/pauta, apuração e redação. Jornalista e doutora em Estudos Portugueses/História da Comunicação, Maria Cecilia Guirado aponta em Reportagem – a arte da investigação (2004) que o sucesso do citado gênero jornalístico depende de um método de trabalho que equilibre: abdução – espaço aberto para renovadas inferências hipotéticas –; indução – da tese prévia à legitimação –; e dedução – das premissas à confirmação da validade.

Recordando o jornalista há mais de quatro décadas e colunista político Ricardo Kotscho (2007), importa também nesse processo o perfil do repórter bem informado, que concatene situações e seja proativo na busca de dados. A procura pelo novo ângulo, pelos aspectos pouco evidenciados, pela significação mais profunda não deve configurar-se numa atividade que se atenha ao que já foi divulgado. Tem que se valer de leituras de relatórios, conversas informais, observações diretas sobre a realidade e busca sistemática e aguçada em sites, blogs, redes (virtuais) sociais e amplas bases de dados na internet. Deve advir da participação de eventos dos mais variados tipos, atenção às novidades da cidade, conferência do material publicado pelo meio midiático onde se trabalha e pelo que foi divulgado pelos concorrentes. Enfim, precisa ser uma listagem que a cada passo aumenta de tamanho.

Desse modo, sim, é possível dimensionar antecedentes e implicações quanto ao assunto investigado. Nessa toada, deve-se levar em conta que o maior tempo conferido ao caso e o acréscimo de infraestrutura na apuração serão cobrados em forma de material mais extenso, detalhado e que provoque repercussões. Para isso, explica o jornalista Luiz Costa Pereira Junior em A apuração da notícia (2009), necessita-se assegurar, além da veracidade, comprovação do que for descoberto, rastreando indícios, testando hipóteses, confrontando versões.

“Novo jornalismo investigativo”

Muita atenção, também, com a obtenção de informações em off, que não devem ser imediatamente divulgadas, contudo, ao contrário, servir de elementos para a confirmação do que foi revelado, de preferência a partir de fontes em on. O ensinamento é básico, no entanto carece de destaque perante a constância com que se nota a veiculação de materiais jornalísticos baseados em fontes anônimas de “alto escalão”, “próxima do governo” ou “amiga do titular da pasta”, porém não acompanhados de comprovações.

Atenção, ainda, com o volume de fontes institucionais, mais organizadas, presentes e reconhecidas socialmente, justamente por isto mais proativas e aparentemente com maior credibilidade, como faz questão de frisar a jornalista Luciene Tófoli em Ética no Jornalismo (2008). A autora alerta para os prejuízos dessa ocorrência, entre eles o produzir material “chapa-branca”, distorcido e desequilibrado, negligenciando a busca pela pluralidade de fontes e pela promoção de debates acerca de assuntos de interesse público.

Num outro viés, bem menos oficial, o médico e escritor russo Anton Tchékhov, em Um bom par de sapatos e um caderno de anotações – como fazer uma reportagem (edição traduzida de 2007), enumera dezenas de procedimentos importantes para se planejar uma incursão investigativa, executá-la e contá-la. A obra versa sobre a viagem do autor para a Ilha de Sacalina em 1890, uma isolada e pobre colônia de presos que recebia pouquíssima afeição por parte do czarismo. Empenhado em captar a essência do estranho lugar (ao menos para ele, um crítico e intrigado viajante), Tchékhov defende uma apuração etnográfica, que valorize a observação participante e a potencialização do uso dos sentidos humanos (tato, olfato, audição, paladar e visão). Isso se consegue, segundo o autor, inserindo-se no cotidiano das pessoas foco do trabalho investigativo, registrando costumes, rituais, indumentárias e culinária, percebendo sinais de distinção social entre os segmentos existentes na comunidade.

Já em outra linha pode-se recorrer à Reportagem Auxiliada por Computador (Rac), que usa softwares de busca em grandes bases de dados – de governos, empresas, organismos internacionais, ONGs, movimentos – e planilhas eletrônicas para tratamento de informações. O método pode apontar índices socioeconômicos e políticos, que devem ser analisados e repercutidos por especialistas e a sociedade em geral.

O professor de Ciências da Comunicação em Portugal e pesquisador em jornalismo Antonio Fidalgo (2007), entusiasta da Rac, chega a dizer que este mecanismo, de mineração de dados, é capaz de forjar um “novo jornalismo investigativo”. O profissional característico dessa linhagem seria um jornalista experiente, com largo repertório cultural e alto nível de criticidade, com atuação fixada primordialmente na redação, que estabeleceria conexões entre o universo onlinee as contribuições levantadas pelo “repórter de rua”, dado a coberturas de menor monta, factuais.

Cautela com as bases de dados

Os jornalistas Nilson Lage (em “A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística”, de 2001) e Hugo de Burgh (em “Jornalismo investigativo: contexto e prática”, de 2008) reconhecem a importância das novas tecnologias, porém em consonância com a investigação fundamentada no trabalho de campo, que subentende cautela diante das pesquisas em bases de dados.

O primeiro menciona que é necessário conhecer a lógica de indexação e distribuição de informações, perceber elementos de relevância no conjunto e estar disposto a verificar o grau de acerto do acervo. Burgh, citando pesquisas a partir de indícios de erros judiciais, explica que o trabalho do repórter nestes casos é reexaminar autos de processos, digitalizados ou em papel, buscando falhas de procedimentos, o que pode gerar alteração de veredicto e atualização de estatísticas governamentais.

Na mescla, o futuro

Procurando um modelo que conjugue rigor na apuração e atração estética, Philip Meyer, jornalista e professor emérito na Escola de Jornalismo e Comunicação de Massa da Universidade da Carolina do Norte, propõe a mescla dos jornalismos de precisão (métodos de investigação das ciências sociais e comportamentais com aporte de softwares de busca e tratamento de dados) e literário (autoral e humanizador).

A ideia foi apresentada por Meyer em outubro de 2011 em discurso na Academia Austríaca de Ciências, como parte da Conferência Hedy Lamarr, depois traduzido e publicado neste Observatório (ver aqui, 2011).

A mescla proposta pelo professor seria uma boa forma de ordenar e dar sentido ao fluxo informativo da contemporaneidade, o que abriria espaço para a reportagem. Também, capaz de retomar o arrojo narrativo expresso pelo “novo jornalismo”, dos anos 60, nos Estados Unidos, com Tom Wolfe, Gay Talese e Norman Mailer, caracterizado pela escrita afetada pelo subjetivismo e pelas adjetivações, onomatopeias e oralidade intensa. Pelas descrições detalhadas de ambientes físicos e atmosferas psicológicas, reproduções de longos diálogos e até pensamentos.

Essa ambiência literária pode estimular a presença assídua da reportagem multimidiática, via internet, para sites, blogs, smartphones e tablets, com produção de materiais em vídeo, áudio, texto, fotografia, animação e infográfico, ofertando ao público um “jornalismo 360 graus”, capaz de proporcionar ao público “experiências imersivas”.

Percebe-se, assim, que discutir reportagem é uma das melhores formas de se entender que a combinação entre novas tecnologias, mecanismos de apuração e propostas estilísticas tendem a potencializar a importância do jornalismo na contemporaneidade.

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Gibran Luis Lachowski é jornalista e professor do curso de Comunicação da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat)campus de Alto Araguaia