Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A estudante de Cuba: erro de diagnóstico

No domingo (3/11), o jornal A Gazeta (Vitória, ES) publicou uma entrevista com a jovem Sheila Ramos Vieira, de 25 anos. Ligada ao MST, Sheila está em Cuba estudando medicina, indicada pelo Movimento. No jornal impresso, o título da reportagem era “No Brasil, seria muito difícil para mim fazer um curso de Medicina”, entre aspas, um recorte da fala de Sheila. A partir daí, muitos internautas (mais de mil e quatrocentos) compartilharam no Facebook uma foto da página do jornal com a matéria: algumas apontando o “erro gravíssimo” na frase da menina, outros colocando panos quentes.

É muito comum que umas pessoas usem os chamados “erros de português”, desvios da norma-padrão, para desqualificar as outras: linguagem também é política e também sedimenta relações de poder e superioridade. É na linguagem, efetivamente, que essas relações de poder funcionam e se materializam. Junto com a foto, apareciam comentários como “Por aí se vê que essa futura médica é uma incompetente” ou “Só podia ser do MST”, ou ainda “Se o Lula fala tudo errado, o que mais se podia esperar de um programa vindo do PT?” Muitos dos que compartilharam eram médicos e aproveitaram o ensejo para criticar o programa Mais Médicos, do governo federal.

Como aprendemos a partir de Vanise Medeiros, a tipografia significa. As aspas significam. Os negritos e itálicos significam. E todas as escolhas feitas por essa matéria para relatar o acontecimento jornalístico de uma estudante proveniente do MST ir estudar medicina em Cuba são indícios de uma tremenda contradição histórica: se as posições que falam que a sociedade deve ser meritocrática reconhecem que o cidadão pode mudar de vida, por que causa tanto espanto que uma representante das classes populares esteja matriculada num curso que em geral é associado às elites? Ah, sim, pelo suposto erro gramatical que a moça cometeu na entrevista (e por ela ir estudar em Cuba).

Frase correta

Como aprendemos a partir de Bethania Mariani, a escola dos títulos das manchetes não reflete simplesmente uma escolha manipuladora, mas uma posição de classe que, na imprensa de referência, referenda os sentidos dominantes. O título de uma matéria ser a transcrição de uma fala é sintoma. É sintoma de que algo na fala chama a atenção àquele que ocupa um cargo numa redação de jornal. É estranho. É alienígena. Não é forma dominante. Não é sentido dominante.

Como aprendemos a partir de Silmara Dela Silva, o acontecimento jornalístico é “um fato selecionado dentre os diversos que ocorrem em um dado período, considerado de interesse público, e que, por isso, passa a ocupar as páginas das publicações jornalísticas”. É considerado de interesse público, portanto, que uma ex-integrante do MST curse medicina em Cuba. E por quê? No subtítulo, negrita-se “em Cuba” e se menciona o Movimento dos Sem-Terra, assim, de modo analítico, e não reescrito como MST, explicitando a tensão existente entre a sigla e o nome não transposto, inteiro, que expõe o “Sem-Terra”.

Como aprendemos com linguistas como Marcos Bagno, principalmente pelo viés da sociolinguística, é possível explicar esses supostos “erros” que irrompem no fio do discurso, bastando pensá-los de maneira a considerar a passagem de tempo da e na língua. Mas não é preciso ir tão longe, simplesmente porque o título da matéria (a transcrição da fala da entrevistada) não transgride de modo algum a dita norma-padrão. “No Brasil, seria muito difícil para mim fazer um curso de Medicina.” Podemos interpretar o enunciado perfeitamente como um hipérbato, uma figura de construção ou sintaxe que inverte a ordem dos constituintes sintáticos. A ordem dita canônica seria, então, “Fazer um curso de Medicina seria muito difícil para mim no Brasil”. Sem tirar nem pôr. Perfeitamente integrado àquilo que os puristas gostam de chamar de norma-padrão da língua portuguesa. A frase tão “denunciada” nas redes sociais está, portanto, absolutamente correta de acordo com os princípios gramaticais mais conservadores.

Erro que não existiu

Mas e se não estivesse? Existe de fato uma caça às bruxas a todos os profissionais que não usam a norma-padrão no Brasil? A todos eles? A todos os estudantes de medicina que se formam nas universidades públicas e particulares? A todos os juristas? A todos os advogados? A todos os professores? A todos que escrevem “derrepente”, “pra”, “numa”? Ou a todos que receitam “500 mgs”, com esse “s” que contraria completamente a norma internacional de abreviação de unidades de medida? Acho que não, “né”? Agora, quando se trata do MST, do pobre, do pé de chinelo que se torna médico, jurista, presidente, chovem reportagens, compartilhamentos, revoltas virtuais, Dicionários Lula.

O título da reportagem, extração da fala da estudante, foi um prato cheio para os que gostam de despejar preconceito (linguístico e político) no Facebook. Agora, se essa futura médica não é capacitada porque “cometeu um erro de português”, o que dizer dos médicos que, do alto de sua ignorância, debocharam de um erro que não existiu? Foi só um erro de diagnóstico?

Apesar disso tudo, a classe médi(c)a não tem motivos para se preocupar. Dilma Rousseff já mandou dizer que vai importar veterinários cubanos pra dar conta desse mico gigante.

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Marília Lamas e Phellipe Marcel são, respectivamente, jornalista e professor, jornalista, editor, tradutor e linguista, Rio de Janeiro, RJ