Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A polícia e a maldição de Sísifo

Tenho um amigo que é cabo da PM em São Vicente, no litoral de São Paulo. Por motivos óbvios, melhor omitir seu nome. Tampouco posso garantir que o que conta é totalmente verdadeiro, mas, como dizem os italianos, se non è vero, è ben trovato. Pensando bem, nunca entramos em maiores detalhes sobre seu trabalho. Geralmente nossas conversas ocorrem quando está de folga, pois quando o vejo a serviço prefiro nem me aproximar, tal o seu ar sério e compenetrado.

Por ser um cara muito legal e decente, lembro sempre dele quando deparo com o recorrente bombardeio midiático em torno do desempenho da polícia. Fico pensando em como estaria se sentindo, bem como seus companheiros de farda, diante das críticas sistemáticas e das inúmeras dificuldades que estigmatizam uma profissão tão digna e importante. Nada satisfeito, imagino.

Motivos para mudar de profissão não lhe faltam, mas é a tal coisa, era um sonho de menino, gosta e tem orgulho do que faz. Daí que vai ficando, apesar dos apelos da mãe. Sua carga horária pode ir de 12 a 24 horas ininterruptas, tudo depende da necessidade. No sufoco – como nas recentes arruaças – pode ser chamado a qualquer momento, mesmo estando de folga. Ganha pouco mais de R$ 2 mil brutos, o que o obriga a recorrer ao chamado bico, como segurança particular de uma pequena empresa, para reforçar o minguado salário. Desnecessário falar do risco constante de morte a que está exposto, seja a trabalho ou à paisana. Nem assim pensa em deixar a linha de frente. Já esteve tentado a pedir transferência para outro departamento, esteve com um pé na Polícia Ambiental, mas na hora agá acabou reconsiderando.

Falta de empatia

Admite estar viciado na adrenalina e diz não se ver sentado num escritório, ou batendo o ponto numa loja ou firma, para fazer todo o dia a mesma coisa. De fato, se há uma coisa que a vida de policial da ativa desconhece é a rotina. Mesmo uma simples ronda pode ser fatal, como aconteceu ainda na última terça-feira (5/11) na periferia de Santos, quando o soldado Fernando Barbosa da Silva, de apenas 27 anos, foi morto com um disparo na cabeça quando a viatura em que estava abordou três indivíduos em atitude suspeita. Dois foram presos em seguida, mas o que atirou – segundo consta, menor de idade – até o fim da semana ainda estava foragido. Pensei logo no meu amigo quando li a notícia, aliviado por não ter sido ele a vítima, e ao mesmo tempo imaginando a sua indignação, a dor dos familiares, a revolta dos colegas.

Indignação e revolta mais do que procedentes, sem dúvida. Não só pela morte estúpida de um jovem e promissor soldado no cumprimento de seu dever, como pela notória falta de empatia com casos dessa natureza por parte da mídia e – por que não dizer – da própria população. Por razões que a própria razão desconhece, como diria o poeta, a imprensa tende a dar mais destaque à eventual morte de um marginal por obra de um policial, do que vice-versa. Basta a polícia intervir com mais energia, alguém morrer em ação policial, justificadamente ou não, para que suspeitas e ilações sobre premeditação e abuso de autoridade sejam exaustivamente veiculadas.

É de praxe associar a letalidade de ações policiais a possíveis excessos e despreparo, quando não com insinuações de premeditação e execuções sumárias. Tudo bem que os antecedentes nesse sentido justificam a prevenção, mas a imagem depreciativa que se tenta impingir à instituição policial está longe de corresponder à realidade. Sobretudo quando a exploração dos aspectos negativos se sobrepõe não só a um desempenho profissional geralmente satisfatório no cômputo geral, como as sabidamente precárias condições de trabalho e de subsistência que assombram as corporações. Ou seja, cobra-se muito, sem a devida contrapartida.

Histórias mórbidas

Baixa remuneração, qualificação deficiente e até equipamento defasado em relação ao crime organizado são alguns dos graves problemas que afligem a atividade policial no país de um modo geral. Isso só sob o ponto de vista profissional, pois no aspecto humano e social a situação é ainda pior, com a falta de programas de apoio psicológico, em se tratando de uma profissão altamente estressante, sem falar nas absurdas restrições aos direitos de aposentadoria e pensão que condicionam tais benefícios a estar no exercício da atividade, ou seja, fardado, e de preferência, a serviço da corporação. O que significa que se um policial morre ou fica inválido em atentado num dia de folga, ou à paisana, fica totalmente desamparado pelo Estado. Ainda mais quando no serviço particular que muitos são obrigados a fazer para reforçar o salário insuficiente, que é tido como ilegal pelas normas policiais e, portanto, exercido por conta e risco de cada um.

Meu amigo me contou o caso de um colega de farda que foi alvejado por marginais, quando saia de casa para passear com o filho, que tudo presenciou. Não morreu por milagre, mas ficou paraplégico, ou seja, inválido, desamparado e sem renda. Não demorou para que tivesse que mudar para um desses bairros barra-pesada que antigamente patrulhava como policial, onde sua presença provavelmente só é tolerada pela bandidagem por conta de algum resquício de solidariedade. Ou pela noção de que com uma vida tão desgraçada, morrer talvez fosse uma benção.

Acomodada e atrelada aos novos padrões mercadológicos, que privilegiam noticiários superficiais e impessoais, os veículos de informação preferem ignorar dramas dessa natureza, ao contrário de outros tempos talvez mais humanos. Histórias mórbidas não se coadunam aos moldes postiços da civilização do espetáculo. Menos mal que em meio a essa geração de humanoides, forjada à frente de laptops e games infernais, ainda sobrevivem valores remanescentes de épocas em que as pessoas se respeitavam e se importavam mais umas com as outras. Pessoas que se sensibilizam e encontram tempo e disposição para ajudar o próximo, como no caso do drama que vive esse policial literalmente abandonado à própria sorte.

Platitudes hipócritas

Talvez não seja este o local adequado, mas vá lá, fica aqui não só a dica para alguma publicação ou veículo que se interesse por essa pungente história, como as informações de como ajudar, bastando acessar a página no Facebook da amiga Rosana Alves, de Santos/SP – estoica viúva do sargento Marcelo Fukuhara – cuja execução há um ano, por sinal, continua sem solução –, que assumiu a incumbência de buscar auxílio e chamar a atenção para o caso. Até mesmo para que providências sejam tomadas no sentido de que uma profissão tão visada e importante seja mais valorizada. E, sobretudo, amparada.

“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”, teria tido o mitológico guerrilheiro Ernesto Che Guevara, provavelmente no afã de emprestar uma aura romântica à feroz revolução cubana. Pelo visto foi bem-sucedido, ao menos para consumo externo. Só que no virtual estado de guerrilha urbana em que nosso país se encontra mergulhado há décadas, se nem a aventada truculência e repressão policial tem sido suficiente para dar conta de uma criminalidade que só tem aumentado, imagina se a polícia baixar a guarda.

Clamar por mais comedimento, ou pela tal ternura retórica que mitiga o factual confinamento dos cubanos em sua pequena e bela ilha, só funciona em teoria. Na prática, de brandura e leniência já bastam leis que não cumprem com seus propósitos, que desgastam e irritam as corporações e respectivas autoridades responsáveis pela segurança da população, manietadas e condenadas a uma espécie de maldição de Sísifo – o personagem da mitologia grega forçado a repetir sempre a mesma tarefa, sem nunca alcançar êxito. Sim, pois nada pode ser mais revoltante e desestimulante para um policial cuja vida está sempre a perigo do que o regime de impunidade escrachada vigente no país, e para o qual governantes, políticos e a própria OAB parecem estar pouco se lixando.

O papagaio e o periquito

Talvez porque se beneficiam e se locupletam com isso. Afinal, pode-se prevaricar e roubar à vontade, que meandros jurídicos e advogados especializados em chafurdar nesse lodaçal não faltam.

O resumo da ópera é bem simples: ninguém deixa de roubar ou matar por medo de ser preso. Se for “de menor”, nem se fala. Se tiver grana para pagar um bom causídico ou molhar a mão de quem manda, não sendo crimes da pesada ou de grande repercussão, não há porque temer por punição rigorosa. Daí não passar de platitude hipócrita o discurso midiático que tenta responsabilizar a força policial, de um modo geral, por problemas e deficiências crônicas que fogem de sua alçada.

O fato é que de um jeito ou de outro, a polícia costuma dar conta do recado. Já os juristas e legisladores, é bem como diz a velha piada: o papagaio come o milho e o periquito leva a fama.

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Ivan Berger é jornalista