Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Um guia desorientado

A tarefa do Guia Quatro Rodas Brasil não é nada fácil: selecionar e classificar hotéis, restaurantes e passeios em 12.600 lugares de 900 cidades do Brasil, e ainda publicar mapas das regiões. Seu lema é “a gente vai antes para você ir melhor”. As implicações político-econômicas desse gênero de publicação são evidentes: uma simples menção (ou não) em suas páginas pode significar a diferença entre a prosperidade ou a bancarrota de um negócio. De uns tempos para cá, no entanto, a confiabilidade do Guia tem sido posta à prova.

Sou usuária do Guia desde 1992 e nunca tive motivos para queixas: na verdade, devo a ele muitas de minhas melhores viagens pelo Brasil desde então, e até me habituei a seu proverbial esnobismo, que faz com que limite a uma estrela (para o máximo de três) os restaurantes de cozinha brasileira, tanto quanto sua generosidade para com a cozinha italiana, dada a profusão de restaurantes com este tipo de culinária estrelados (poderia tratar-se de uma homenagem dos jornalistas gastronômicos aos Civita, mas o fenômeno é de natureza ideológica: os avaliadores hierarquizam culturas; consuma-se portanto o que Nelson Rodrigues batizou de complexo de vira-latas).

Sobre isso têm-se as esclarecedoras explanações de Gilberto Freyre: “Uma das vantagens de ordem cultural que definiam outrora a situação de fidalgo ou cavaleiro e sua superioridade sobre o peão era o fato de possuir cavalo e só andar a cavalo: cavalo nobre (…) que se distinguisse dos jumentos dos escudeiros, de frades esmoleiros ou de pajens. São insígnias todas culturais de status, de posição, de situação social de domínio que também pode ser ostentada pelo alimento que o indivíduo de tal região ou de tal classe, de tal casta ou de tal religião come com frequência; ou com exclusividade litúrgica ou aristocrática: peru com arroz em oposição a charque com feijão e farinha; caviar em oposição a caldo verde; carne de carneiro em oposição a carne de porco. (…) Para os ingleses menos cosmopolitas, os franceses são desprezíveis por comerem rãs” (“Sociologia-Introdução ao estudos de seus princípios”. In: Aventuras do Paladar. Maria LecticiaMonteiro Cavalcanti. Recife: 2013).

Endereços trocados

Só no ano passado o Mocotó recebeu uma segunda estrela; mas é o único de cozinha nacional com tamanha honraria e o comentário da redação justifica o presente pela “sofisticação” de alguns pratos. Ora, utilizar o requinte como critério para julgar comida é reduzi-la à tradição francesa. Os repórteres do Guia relutam em reconhecer a complexidade de um vatapá bem feito ou apreciar a simplicidade arrebatadoramente múltipla de uma moqueca capixaba. Talvez, por isso, só tenham desbancado o Fasano e feito justiça ao D.O.M. (a técnica-forma faz deste cozinha contemporânea, mas os ingredientes-conteúdos são brasileiríssimos), quando foi alçado pela Restaurant a 4º melhor restaurante do mundo. Conhecendo o modus operandi dos jornalistas do Guia, posso supor que a segunda estrela do Mocotó [que é mesmo muito bom, junto a vários outros restaurantes de cozinha nativa pelo Brasil afora, como, só para citar alguns, o Brasil a Gosto (SP), Pirão (ES), Cozinhando Escondidinho (PE) e Banana da Terra (RJ)], veio porque algum gringo deve ter elogiado muito.

Nas férias de julho deste ano um casal amigo foi a Fortaleza. Embora preferisse uma pousada confortável a resort de luxo, reservou o melhor hotel da cidade porque, segundo o Guia, havia ali um restaurante estrelado (o Nostradamus) e é sempre bom ter comida de qualidade onde se está hospedado. Quando tentou descansar de dia de um dos forrós maravilhosos que a cidade, de lindas praias, oferece à noite, não pôde: era um tal de marreta e furadeira a todo vapor no Gran Marquise Hotel. Até tentaram ir para um andar mais alto, mas o barulho chegava lá. A reforma não era mencionada no Guia, mas o hotel estava no topo de sua lista da edição 2013. Em alta temporada, a cidade estava lotada, de modo que foi difícil achar vaga em outro hotel. Com muita dificuldade, encontraram; mas fora da orla, o que significava atravessar ruas de grande movimento para dar um passeio no aprazível calçadão de Fortaleza.

Por pouco as férias do casal não ficam comprometidas. (Mas não foi só. A publicação avisava que o tradicional restaurante Cantinho do Faustino havia mudado de lugar, mas dava o endereço antigo, de modo que, como o taxista era novato e tão desinformado quanto o Guia, foram parar num espaço fechado. O novo endereço é na rua Bauxita, e não na Frei Mansueto, como constava no texto.)

Confiar, desconfiando

Pensaram que talvez o Guia não soubesse da reforma. Mas os funcionários do hotel disseram que ela vai durar um ano (está sendo feita para a Copa; na minha opinião o hotel deveria ser fechado porque inviabiliza o sossego dos hóspedes; ou só abrir para executivos, que passam o dia todo fora) e, para sua surpresa, no Guia Quatro Rodas Brasil que acaba de sair, o de 2014, o Gran Marquise continua no topo do ranking dos hotéis da cidade. O hotel deveria no mínimo perder esse status enquanto durassem as obras. Resta aos usuários acrescentar uma pergunta no ato da reserva: “Está havendo reforma?” Porque o Guia não fará isso por nós (soubemos por outro grupo de amigos que enfrentaram o mesmo tipo de problema: também está havendo reforma no Seara Praia, de Fortaleza). Em função da Copa do Mundo de Futebol, a hotelaria está em franca expansão, um verdadeiro canteiro de obras.

Pode ser que demissões na Abril tenham afetado a publicação e produzido queda de qualidade das informações prestadas, embora pequenos pecados sejam até esperados em um grande volume de dados como os fornecidos. O fato é que a edição de 2013 (com implicações na recém-lançada de 2014) apresentou falhas nunca dantes detectadas, o que nos leva a incluir o Guia na mesma perspectiva das consultas ao Google/Wikipédia: confiar, desconfiando.

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Silvia Chiabai é jornalista