Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Tribunal desportivo, imprensa e logro

No mês passado, a imprensa esportiva tratou extensamente do caso dos dois times que usaram jogadores que tinham sido suspensos. A imprensa tratou também dos desdobramentos do caso: o primeiro julgamento após a denúncia e o julgamento dos recursos (em ambas as vezes os resultados foram unânimes, contrários aos dois clubes). A imprensa esportiva foi decepcionante. Mais do que decepcionante, uma parcela considerável de seus profissionais foi lamentável.

Três principais enunciados foram repetidos exaustiva e acriticamente pelos jornalistas esportivos.

Primeiro: “O clube não sabia que o jogador estava suspenso”. Isso foi dito logo que houve a denúncia da irregularidade e é a base para tudo o que foi dito depois. Então, por que a imprensa repetiu profusamente que “o clube não sabia que o jogador estava suspenso”? Porque foi dito, inicialmente pelo presidente do clube e depois por outras pessoas ligadas ao clube, que o advogado (que representava o clube havia oito anos e o representou no julgamento em que foi decidida a suspensão do jogador) não teria dito ao clube que a suspensão foi de duas partidas, mas de apenas uma partida.

Existe uma defasagem evidente, para a qual a imprensa fechou os ouvidos, entre a alegação do clube e o enunciado que a imprensa repetiu. O que foi dito pelo clube, primeiro pelo presidente e em seguida por outras pessoas, é que o clube sabia, sim, que o jogador estava suspenso por uma partida. A partida em questão foi aquela, da última rodada do campeonato e do ano, pela qual o clube foi denunciado por ter colocado de maneira irregular o jogador. Então, o que o clube não sabia, segundo seu presidente, é que o jogador estaria suspenso também numa partida posterior, a primeira a ser disputada em 2014 em torneio organizado pela mesma entidade (ou Copa do Brasil ou Campeonato Brasileiro). Cabe repetir: por que a imprensa repetiu que o clube não sabia?

Critério confiável

Segundo enunciado: “A partida não valia nada”. Por que a imprensa disse isso? A partida valia para o adversário que tentava se classificar diretamente para a fase de grupos da Libertadores (como acabou conseguindo). A partida também valia para o clube que usou o jogador suspenso. Valia para o clube porque existia uma remota possibilidade de rebaixamento, em caso de derrota e de uma combinação de resultados – tanto assim que por isso mesmo, o clube, na sua página na internet durante os dias que antecederam a partida, conclamava a torcida a comparecer ao estádio. Mais importante: a partida valia para o clube também porque ele podia obter vaga para a Sul-Americana (o que poderia conseguir se tivesse vencido), certamente um torneio internacional importante e prestigioso (que, inclusive, classifica para a Libertadores). Por fim, a partida valia ainda para conseguir melhor classificação (a entidade organizadora do campeonato distribui prêmios em dinheiro de acordo com a classificação final). Então, se a partida valia (e valia por tantos diferentes motivos), por quê a imprensa repetiu que “não valia nada”?

Terceiro dos principais enunciados: “O clube foi prejudicado porque a suspensão do jogador não constava no BID da CBF”. A imprensa repetiu isso como sendo uma situação incomum.

Que a suspensão não tenha sido publicada no boletim da entidade organizadora foi uma alegação a posteriori. A alegação foi posterior, inclusive, ao primeiro julgamento. Na prática, o que ocorreu? O clube não se pautou para aquela partida na última rodada pelo que constava ou não constava no boletim da CBF pelo mesmo motivo que nem ela nem nenhum outro clube, nem naquela rodada nem nunca antes nem naquele campeonato nem nos campeonatos imediatamente anteriores, se pautou sobre suspensões pelo BID. A evidência é contundente: se os clubes tivessem o hábito de se pautar pelo BID referente às suspensões, o problema já teria ocorrido antes inúmeras vezes. O tribunal considera que a suspensão é válida imediatamente depois do julgamento, independente da publicação; o boletim da CBF habitualmente não publica as suspensões tão rápido a ponto do boletim poder ser critério confiável para os clubes.

Uso e costume

O critério e o procedimento do tribunal: em nome da transparência, o tribunal é obrigado a notificar com antecedência os clubes sobre a realização do julgamento; assim, cabe aos clubes enviarem seus representantes e se informarem sobre as eventuais suspensões de seus jogadores. Como o clube foi previamente notificado do julgamento, a suspensão passa a valer imediatamente após o julgamento, a partir da primeira partida seguinte (no caso em que a suspensão for de mais de uma partida, são partidas consecutivas a partir da primeira partida seguinte). Se o clube não tivesse sido notificado antecipadamente do julgamento, a suspensão, tal como é aplicada de forma imediata, não seria válida. Tendo havida a notificação, a decisão do tribunal vale já para a partida seguinte.

Exige-se que haja notificação da pena: como o clube foi notificado do julgamento, compete a ele se representar no julgamento. Jornalistas alegaram que seria necessária, e obrigatória, a publicação da suspensão antes da partida (depois do julgamento, naturalmente). Errado: o entendimento do tribunal, conhecido pelos clubes, é que é obrigatória a notificação do julgamento. É preciso considerar que a eventual pena (suspensão) não é consequência posterior ao julgamento, mas é resultado direto do julgamento. A eventual pena faz parte do julgamento, não é ocorre posterior ao julgamento. Tendo havido a notificação do julgamento, cabe ao clube se representar no julgamento e se informar sobre a pena; a pena entra em vigor imediatamente, valendo a poartir da próxima partida, independente de publicação posterior: sempre foi assim ao longo de cada uma das rodadas tanto desse campeonato quanto dos campeonatos imediatamente anteriores.

Desta forma, antes da rodada 38, os clubes, nesse campeonato e nos imediatamente anteriores, nunca se pautaram sobre suspensões pelo BID. O boletim da CBF nunca foi o órgão para os clubes se pautarem: os clubes sempre souberam disso. Assim, na rodada 38, os clubes não tinham motivo para se pautarem pelo BID. O princípio é o de tratamento isonômico; vale na rodada 38 como valeu nas trinta e sete rodadas anteriores. O uso e costume de não se pautar pelo BID prevalece. Na verdade, a alegação, feita a posteriori do primeiro julgamento, é casuísmo.

A influência do jogador

Se pretende que a publicação no BID valha como critério para os clubes se pautarem na rodada 38: então seria preciso tratar isonomicamente todas as rodadas anteriores, o que geraria insegurança jurídica sobre suspensões irregularmente não cumpridas. Essa insegurança jurídica poderia levar à anulação do campeonato inteiro. Isso poderia acarretar vários fatores e aspectos, inclusive, por exemplo, que os times classificados para a Libertadores não estariam mais.

Por quê a imprensa repetiu o enunciado sobre a não publicação no boletim da CBF da suspensão do jogador, fazendo parecer que essa foi uma situação incomum, quando, na verdade, era a situação habitual?

Além desses três enunciados que foram hegemônicos na imprensa esportiva, outros apareceram de maneira menos intensa, mas também são importantes no desserviço prestado pela imprensa esportiva.

Um jornalista da TV por assinatura ESPN e também do Estadão defendeu enfaticamente que a perda de pontos do clube pelo uso irregular de jogador suspenso deveria ser aplicada apenas no próximo campeonato. No julgamento do recurso, o relator explicou que a Fifa diz que uma eventual punição “pode” ser aplicada em campeonato posterior – mas segundo um critério claro. Isso “pode” ser feito se a descoberta e a denúncia da irregularidade demorar para ocorrer, de modo que o próximo campeonato já tenha se iniciado. O que não é o caso: a denúncia foi feita logo nos primeiros dias após a partida. Não obstante a explicação do relator no julgamento dos recursos (no dia 20 de dezembro p.p.), o jornalista logo depois, trocou a defesa enfática sem critério de sua opinião por um ataque exaltado aos auditores do tribunal por não tirarem os pontos no próximo campeonato. Criticou a decisão, mas não criticou a explicação apresentada pelo relator (e consagrada unanimemente pelos demais auditores do tribunal) pelo simples e irracional motivo de não ter se importado em considerá-la – ele preferiu fingir que não ouviu a explicação.

A acusação de não ter errado

Quase na mesma hora em que aquele jornalista se apresentava sua ideia de forma exaltada, após o julgamento dos recursos, em outro canal por assinatura, no Fox Sports, outro jornalista repetiu uma ideia que foi frequente: o clube não devia ser punido porque o jogador não influenciou o resultado da partida. Novamente, ignorou o argumento apresentado no julgamento: mesmo que o jogador não tivesse entrado em campo, apenas a sua escalação no banco de reservas já constitui irregularidade. O jornalista defendeu a ideia sem se dar ao trabalho de apresentar o outro lado: o do relator e, no desdobramento, do tribunal. Além disso, o jornalista defendeu que a punição faria sentido “se fosse o Enéas” ou algum outro jogador de alto nível. Ou seja, a regra sobre suspensão deve ser válida para bons jogadores, de preferência ótimos jogadores: quanto melhor o jogador, mais válida fica a regra; quanto pior é o jogador, a regra é menos válida… (eis uma sugestão interessante para o próximo código desportivo). Além do mais, a noção de “influência” do jornalista é hilária: desde que o jogador entra em campo, a cada momento ele pode influencia o que ocorre.

A imprensa se superou procurando pensar motivos para justificar sua vontade.

Trata-se de um padrão que se repete com frequência na imprensa esportiva: cabe lembrar um episódio, exemplar, ocorrido em 2007. Vários profissionais da área vociferaram – inclusive, com conotação pejorativa – contra a atuação de um árbitro numa partida de semifinal da Copa do Brasil. Em cobrança de pênalti a favor de time grande, o goleiro do time pequeno se adiantou irregularmente e impediu o gol. A imprensa, de forma majoritária, condenou furiosa e estridentemente o árbitro por ele ter mandado repetir a cobrança. Não acharam que a defesa tivesse sido regular, não disseram que o árbitro errou, não o criticaram por algum erro que ele teria supostamente cometido. Pelo contrário: o acusaram e o hostilizaram enfezados porque ele não errou e, pior ainda, cumpriu a regra (quando foi lembrado que a regra manda repetir a cobrança, eles mantiveram e até aumentaram os ataques ao árbitro).

Vontade de enganar

Como foi dito na época, é impossível defender o árbitro da acusação de não ter errado e, não bastando, ter executado a regra. O pretenso fundamento desses jornalistas era o exemplo de árbitros que não mandam repetir a cobrança quando o goleiro se adianta de maneira irregular. “Em uma cobrança de pênalti, a situação é tão difícil e a regra tão injusta para o goleiro”, proclamaram, achando que, nesse contexto de “dificuldade” e “injustiça”, deve-se dar mais chance para o goleiro e o árbitro tem que ser compreensivo com a situação “difícil” e “injusta” do goleiro e descumprir a regra. Ao invés de defenderem alguma mudança na regra, acusaram quem cumpre a regra existente. Em vez de criticar o que é correto criticar (os árbitros que não executam as regras corretamente), esses jornalistas esportivos advogaram enfaticamente o desrespeito às regras.

No ano seguinte, em partida do Campeonato Brasileiro, um goleiro cometeu sobrepasso. O árbitro marcou a falta, conforme a regra, e da cobrança o time adversário fez um gol. Mais uma vez, vários jornalistas atacaram imponderada e raivosamente o árbitro por, novamente, cumprir seu dever. Disseram com rancor: “se ele não tivesse cumprido a regra e marcado a falta, o gol não ocorreria”, o que (apesar do tom rancoroso) é verdade. Claramente, tratou-se de perseguição ao árbitro – feita às raias da intolerância. Outra vez, a pretensa justificativa foi o exemplo de árbitros que não executam a regra.

Em cada um dos dois casos, ao fazer cumprir a regra, o árbitro, deve ser desnecessário dizer, foi correto e profissional. O que não se pode (nem se deve) dizer sobre aqueles jornalistas esportivos, que, além disso, davam assim um exemplo peculiar de cidadania. Era de se supor, então, que a imprensa esportiva tivesse chegado ao fundo de seu próprio poço. Voltando ao caso recente da suspensão na última rodada no final do ano passado. Os pretensos arautos da moralidade apontaram a falta de transparência dos “poderosos” contra “time sem camisa”. Na verdade, esses falsos arautos da (i)moralidade colocaram vários véus na frente de seus rostos e ainda taparam os olhos com as mãos: que “o clube não sabia que o jogador estava suspenso”, que “a partida não valia nada”, que “a não publicação da suspensão no boletim da CBF prejudicou o time”, que “se devia tirar os pontos apenas no campeonato seguinte” são inverdades transparentes. Vontade de se enganar e de enganar. O que esses lorpas e pascácios da imprensa esperavam? Que não houvesse ninguém para ver a dupla tentativa de camuflar as inverdades, fazendo-as passar pelo que não são, e de suprimir as verdades correspondentes? Que o clube sabia que o jogador estava suspenso, não por duas, mas por uma (aquela) partida; que a partida valia, sim, por vários aspectos (sobretudo pela vaga na Sul-Americana que o time infrator queria obter), que em cada uma das rodadas ao longo do ano nenhum clube se pautou pela publicação no boletim da CBF (e, portanto, o clube infrator não tinha motivo para se pautar por aí) e que a punição somente deverá ser aplicada em campeonato seguinte quando a infração é descoberta tardiamente, depois que o campeonato seguinte já começou.

“Não é justo tirar os pontos de time ‘sem camisa’ que usa jogador suspenso” é comparável a “não é justo mandar repetir cobrança de pênalti quando o goleiro, esse coitado no pênalti, se adianta irregularmente” ou “não é justo marcar sobrepasso do goleiro”. Os lorpas e pascácios sugeriram que foi imoral um time se beneficiar, na tabela de classificação, da perda de pontos dos dois times que usaram irregularmente jogadores que estavam suspensos. O que é equiparável a chamar de imoral o time que repete a cobrança de pênalti após o goleiro adversário defender irregularmente o pênalti. Eis, por sua vez, a (i)moralidade de lorpas e pascácios.

No início deste texto, afirmei que o comportamento da imprensa esportiva foi decepcionante. No dicionário, “decepcionar” é “desapontar” e é também “iludir, lograr”. Dado o histórico de grande parte dos jornalistas esportivos nos casos de 2007 e 2008 mencionados acima, não há razão para ficar desapontado com a conduta apresentada no caso recente.

Ou, pensando por outra perspectiva, talvez haja motivo para ficar surpreso: ao repetir mentiras como se fossem verdades, desta vez a imprensa esportiva superou – para baixo – o nível apresentado antes, naquelas e em outras vezes. No fundo do poço dessa imprensa, existe um amplo e soturno porão.

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Pedro Eduardo Portilho de Nader é bacharel em História e doutor em Filosofia