Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma análise de discurso em contraponto

“E não me venham falar que a culpa é da censura. Não é, a linguagem é que está viciada pela inércia do pensamento.” (Glauber Rocha, entrevista à revista Veja nº 418, de 8/9/1976)

O homem é essa figura intermediária que sofre com a chaga-sombra de Prometeu. Nem Deus e nem animal. Ser em eterno processo rastejando pelo chão da história. História feita por indivíduos ou coletivos? Os atuais líderes mundiais são componentes dessa difícil compreensão, pois o seu aparecimento e fala sempre se dá em ambientes artificiais – contextos que envolvem entrevistas e pressões políticas de toda sorte que diluí a espontaneidade do líder entrevistado. Assim sendo, é mais exitoso procurar na biografia passada do líder as suas crenças e ideias do que no seu discurso institucionalizado, ou até mesmo, de sua própria ação política. Contudo, no dia 10 de dezembro de 2013, o funeral de Mandela propiciou um pretexto – o mesmo tema para várias vozes. E este texto pretende, via análise do discurso, encontrar as verossimilhanças e contradições nos discursos de Barack Obama, Dilma Rousseff e Raúl Castro.

O povo sul-africano

Obama se dirige ao povo sul-africano, extrapolando a noção-bifurcada de negros e brancos, pois se utiliza da expressão “mestiço”. Essa referência se deve a visão do mundo anglo-saxônico pós-evolucionista, que tende a estruturar os povos por seus matizes culturais e, além disso, a criação multicultural do próprio Obama – “E nós sabemos que ele dividiu com milhões de negros e mestiços sul-africanos a raiva nascida (…)”. Dilma e Raúl, não citam a formação do povo sul-africano. Mas ratificam a influência física e cultural do povo africano em seus países – “o sangue africano em nossas veias”.

O legado

O legado de Mandela é: a sua perseverança pessoal, a sua luta por justiça e liberdade, a sua habilidade política no processo de reconciliação nacional, e a sua capacidade de inspirar. Todos os discursos consideram essa a herança de Mandela, contudo, divergem sobre o uso que ele fez dessas características.

Obama considera Mandela como uma inspiração pessoal, dele e para os jovens do mundo – “Mas deixe-me dizer aos jovens da África e do mundo todo: você, também, pode fazer o trabalho da vida dele o seu próprio. Mais de 30 anos atrás, quando ainda era estudante, eu aprendi sobre Nelson Mandela e as batalhas desta bela terra, e isso agitou algo em mim.” Enquanto Raúl considera Mandela uma inspiração para os líderes e dirigentes: “Mandela é um exemplo insuperável para a América Latina e o Caribe, que avançam rumo à unidade e a integração, em benefício de seus povos.”

Já as habilidades políticas de Mandela têm interpretações convergente. Raúl considera o diálogo como o melhor método para resolver impasses – “com a convicção de que o diálogo e a cooperação são o caminho para a solução das diferenças e o convívio civilizado daqueles que pensam diferente”. Dilma vai além, diz que a reconciliação visada por Mandela tinha ares messiânicos – “Ele soube fazer da busca da verdade e do perdão os pilares da reconciliação nacional e da construção da nova África do Sul”. E Obama trata Mandela como um personagem-mediador da história, insubstituível, para esse processo – “Foi necessário um homem como Madiba para libertar não só o prisioneiro, mas o carcereiro também para mostrar que você precisa confiar nos outros para que os outros confiem em você; para ensinar que reconciliação não é uma questão de ignorar um passado cruel, mas uma maneira de confrontá-lo com inclusão, generosidade e verdade. Ele mudou leis, mas ele também mudou corações.”

No que se refere a luta por liberdade e justiça, os discursadores usam a lógica da causa e consequência. Obama e Raúl consideram a justiça o objetivo dos homens e das nações, mas na maneira de alcançá-la divergem. Enquanto Obama ressalta a liberdade institucional como meio – “ele construiria uma ordem constitucional para preservar a liberdade às futuras gerações – um compromisso com a democracia e o Estado de direito não apenas ratificado por sua eleição, mas por sua decisão de abandonar o poder após apenas um mandato”, Raúl considera a sua capacidade de luta, como meio – “Junto aos seus companheiros de luta, dirigiu seu povo na batalha contra o apartheid, para abrir o caminho rumo a uma África do Sul, não racial e unida na procura da felicidade, a igualdade e o bem-estar de todos seus filhos.”

Sobre a perseverança de Mandela, ocorrem olhares divergentes. Obama considera-a um atributo moral, são princípios individuais adquiridos ao longo de sua vida, seja na prisão – “Ele usou décadas na prisão para afiar seus argumentos, mas também para divulgar sua sede de conhecimento para outras pessoas no movimento. E ele aprendeu a linguagem e os costumes do seu opressor para que um dia ele pudesse melhor transmitir a ele como nossa liberdade depende dele. Mandela demonstrou que ação e ideias não são suficientes. Não importa quão certas, elas precisam estar esculpidas na lei e instituições. Ele era prático, testando suas crenças na superfície dura das circunstâncias e da história. Em princípios fundamentais ele era inflexível”, ou em sua criação familiar – “Talvez Madiba estivesse certo de que ele herdou ‘uma rebeldia orgulhosa, um senso de justiça teimoso’ do pai dele.” Já Raúl interpreta essa sólida perseverança como fruto de uma causa maior, Mandela como um instrumento de uma missão humanista – “é reconhecido como símbolo supremo de dignidade e de consagração sem claudicar à luta revolucionária pela liberdade e a justiça; como um profeta da unidade, a reconciliação e a paz”.

E que tipo de uso se fará com o ícone Mandela? Para Raúl, o seu exemplo e sua luta, servem para os desafios futuros – “A Humanidade não poderá responder aos colossais desafios que ameaçam sua própria existência, se não o faz mediante uma nova comunhão de esforços entre todas as nações, como a vida de Mandela preconiza”. Dilma considera o seu exemplo atemporal – “O combate de Mandela – e o do povo sul-africano – transformou-se em um paradigma, não só para este continente, mas para todos os povos que lutam pela justiça, pela liberdade e pela igualdade”. Enquanto Obama, o considera um exemplo do que foi o século 20 – “Nascido durante a Primeira Guerra Mundial, distante dos corredores do poder, um menino criado como pastor e sob a tutela de anciões da tribo Thembu, Madiba emergiria como o último grande libertador do século 20. Como Gandhi, ele se tornaria líder de um movimento de resistência, que no começo tinha poucas perspectivas de sucesso. Como o Dr. King (Martin Luther King), daria uma voz potente às reivindicações dos oprimidos e à necessidade moral da justiça racial. Ele iria suportar uma prisão brutal, que começou na época de Kennedy e Kruschev e chegou aos dias finais da Guerra Fria. Ao deixar a prisão, sem recorrer ao poder das armas, manteve o país unido – assim como Abraham Lincoln – quando ele ameaçava se quebrar”.

Mandela – o símbolo e os líderes

Dilma o considera a “Personalidade maior do século 20”. Raúl como um homem de valor histórico – líder revolucionário que, agem em grupo, fora do contexto, e através de sua abnegação muda a história ao combater as estruturas sociais. Enquanto Obama, o considera um homem com forte índole moral, nenhum santo, ao contrário, um líder que admitia imperfeições, que era perseverante e prático. Que agia em prol dos seus princípios de maneira habilidosa, entendo as circunstancias que moldavam o seu país e a história.

Obama sempre que pode, tentar associar-se as ações de Mandela, e vai além, associa-o com a história e valores americanos. Raúl, trata-o como líder revolucionário e, posteriormente, associa as imagens de Fidel e Mandela, sendo este, um amigo de Cuba. Dilma vê Mandela como uma inspiração para os líderes dos movimentos sociais e políticos do Brasil, além das proximidades culturais dos dois povos.

Termos citados ao longo do texto

Termos Obama Dilma Raúl
Democracia 4 0 0
Desigualdade 1 1 1
Deus 3 0 0
Governo 2 3 0
História 3 1 1
Humanidade 1 1 1
Igualdade 2 1 1
Injustiça 1 0 0
Instituições 1 0 0
Justiça 7 4 1
Leis 3 0 0
Liberdade 7 2 1
Luta 5 2 4
Paz 2 2 1
Povo 5 6 5
Estados Unidos 3
Americanos 0
Cuba 1
Cubanos 1
Brasil 1
Brasileiros 2
Pessoas Gandhi, Martin Luther King, Kennedy, Kruschev, Lincoln Ninguém Fidel Castro
Fatos Históricos 1ª Guerra Mundial, Guerra Fria, Apartheid Apartheid Apartheid, Colonialismo, Escravidão
Referências a Mandela Pastor, Libertador, Pai, Marido, Amigo, Filho, Mandiba, Líder, Politico, Prisioneiro Líder, Mandiba Profeta, Líder.

Fontes:

>> http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/mundo/noticia/2013/12/confira-a-integra-do-discurso-de-obama-no-funeral-de-mandela-4361412.html

>> http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-cerimonia-oficial-de-exequias-do-ex-presidente-nelson-mandela-joanesburgo-africa-do-sul

>> http://www.granma.cu/portugues/internacionais/11diciem-mandela.html

******

Jefferson Davidson é estagiário, Brasília, DF