Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Militares dopados no controle de mísseis nucleares

O grande pavor dos estrategistas americanos é a possibilidade de armas de destruição em massa caírem em mãos de terroristas. Componentes e materiais usados em arsenais nucleares e químicos são vigiados por eles em todas as partes do mundo. Depois do estrago causado pela derrubada das Torres Gêmeas em 2001 em Nova York, a ideia de um novo ataque em grandes proporções tem atormentado governo e população, a cada confrontação ou escalada de conflitos no Oriente Médio.

Por outro lado, muçulmanos que vivem ou mantêm qualquer tipo de contato com o Ocidente e sua imprensa têm toda razão em tremer de pavor depois que o Guardian (15/1) e o Verge, no mesmo dia, revelaram que oficiais da força aérea norte-americana, do núcleo estratégico que controla os mísseis com ogivas nucleares foram pegos em flagrante “colando” em provas de capacitação através de mensagens de texto. Uma demonstração cabal de despreparo. Outros estão sendo investigados por uso ilegal de drogas.

Problemas com o pessoal das forças armadas não são novidade na imprensa. Assédio sexual, ambiente hostil de trabalho e falhas em proficiência dominavam as queixas contra os militares. Até o major-general Michael J. Carey roubar o show de aberrações e comportamentos abusivos dos militares americanos. Em outubro de 2013, o governo resolveu afastar o veterano e capacitado general Michael J. Carey do comando da 20ª Força Aérea e da Força Tarefa 214 (Task Force 214), as unidades mais letais de todas as forças armadas norte-americanas.

Comportamento bizarro

O homem era responsável por 450 mísseis balísticos intercontinentais em três bases diferentes e foi “aliviado” de seu comando por “falta de confiança em sua liderança e julgamento”. Carey foi investigado pela Força Aérea e não se saiu bem. Não foi bem com as instalações que comandava e comportou-se de forma tão inadequada em visita à Rússia em julho de 2013 que a Força Aérea resolveu investigar melhor o general que comandou a unidade responsável, na Força Aérea, pela força nuclear dos Estados Unidos.

O Washington Post (19/12/2013) publicou uma versão reduzida do relatório de 42 páginas sobre o militar, produzido a partir das investigações da força aérea. De acordo com o documento, o general bebe demais e seu comportamento é inadequado para sua posição. A bebedeira começou durante a viagem para a Rússia. Em uma escala em Zurique (Suíça), Carey perdeu o controle por conta de uma demora e segundo o depoimento de uma fonte não nomeada no documento, “ele parecia bêbado e em área pública falou alto sobre a importância de sua posição como comandante da única força atômica operacional no mundo, e que ele salvava o mundo da guerra todos os dias”.

Quando chegou à Rússia, o general foi indelicado com seus colegas militares, ofendeu muita gente, apareceu acompanhado de mulheres suspeitas em jantar formal, tentou tocar com uma banda que animava uma casa noturna, interrompeu palestras, corrigiu tradutores ao vivo e cambaleou bêbado pela Praça Vermelha. Isso foi demais para o comando da força aérea americana. Apesar de tudo isso, o corporativismo falou mais alto: o comando declarou que o general “não foi afastado por inadequação de instalações sob sua responsabilidade ou mulheres”. Nada foi dito sobre o abuso do álcool. Ou do comportamento bizarro do militar.

Perigo real para o mundo

Os jornais puderam acessar documentação do governo graças à FOIA, a lei federal de liberdade de informação aprovada em 1966 que permite a cada cidadão acesso a dados da administração federal. Quase tudo o que foi publicado veio através desta única fonte. O que nos impõe a suspeita de manipulação do Estado sobre o que se passa nos bastidores do governo federal e seus compromissos muitas vezes viciosos e beligerantes. A população tem acesso ao que o governo federal escolhe para publicar. E o governo é um editor parcial ao extremo. Quem quiser saber mais vai ter que ler as denúncias de Edward Snowden feitas em 2013 ou outros denunciadores audazes, como o WikiLeaks.

De qualquer forma, é sempre saudável um instrumento jurídico que permita acesso, mesmo que limitado, a investigações feitas pelo próprio governo e suas agências. Graças à lei de liberdade de informação, a imprensa pôde fazer o seu trabalho, o general foi punido e perdeu sua posição.

Suas trapalhadas e peripécias na Rússia, somadas ao despreparo dos oficiais comandados por ele, provaram ao mundo que se por um lado o perigo de um novo grande ataque aos Estados Unidos é uma possibilidade concreta, por outro lado a exposição contínua ao combate da tropa americana por mais de duas décadas criou a oportunidade não só para o surgimento de comportamentos inadequados de militares. A extensão e intensidade do empenho do poder militar americano em várias frentes no planeta transformou muitos oficiais em serviço em perigo real para seu próprio país e o mundo.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor